Parte I: O Suposto Romance de Bárbara
Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha
Heitor Feitosa Macêdo
Mesmo
depois da anistia dos patriotas presos durante a Revolução Pernambucana de 1817,
um dado gerado por essa guerra, na esfera da informação, se protraiu no tempo,
trespassando os séculos sem uma resposta definitiva. Trata-se do episódio que
envolveu Bárbara Pereira de Alencar e o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha
(Silva Peixoto) num suposto romance.
Imagem idealizada de Bárbara de Alencar. |
Este
evento já foi abordado por vários pesquisadores e historiadores, que sempre se
posicionaram ferrenhamente em um dos lados desta trincheira. Alguns defenderam
que D. Bárbara de Alencar teria sido vítima de um esquema difamatório originado
pela maledicência de seus inimigos; outros são veementes em afirmar que Dona
Bárbara, mesmo sendo casada com o português José Gonçalves dos Santos, foi
amante do vigário do Crato, o padre Saldanha.
Mas
qual dessas duas opiniões merece maior crédito?
A
resposta será difícil, porque as evidências até hoje conhecidas são mínimas para
afirmar com exatidão a ocorrência de tal enlace, mas, por outro lado, também
não são suficientes para negar o referido. Daí, qual a melhor solução e que
importância tem um evento, aparentemente, tão insignificante como este?
Tentando
solucionar o problema, será feita uma exposição sistematizada de todos os
informes que açambarcam o tema, isto para podermos alcançar melhor nível de
compreensão sobre o fato e, a partir disso, um julgamento mais equilibrado.
Os
principais autores e seus argumentos são os seguintes:
A Controvérsia
Atualmente, a verdade sobre o envolvimento amoroso de Bárbara Pereira de Alencar com o padre Miguel Carlos da
Silva Saldanha se tornou algo controverso nas fontes que tratam do assunto,
pois, enquanto algumas afirmam que Bárbara foi amásia do padre Saldanha, outras
negam a ocorrência do referido evento.
Os
registros até agora encontrados sobre o tal namoro são muito antigos, e desde o
ano de 1817, à época da Revolução Pernambucana. As autoridades e os inimigos
dos patriotas de 1817 afirmaram
abertamente que D. Bárbara e o padre Saldanha eram amantes, o que também fora
adotado pelos antigos cronistas, como João Brígido e Pedro Théberge, os quais puderam conviver com alguns dos personagens contemporâneos do fato mencionado.
Contudo,
também houve quem, além de negar o ocorrido, defendesse a honra da matriarca
alencarina, mesmo que em réplicas apaixonadas, à guisa de autodefesa ao orgulho
do vetusto e poderoso clã sertanejo.
Entre
os que afirmam a veracidade do enlace de Bárbara com o dito padre estão o
ex-governador da Capitania do CE Manoel Ignácio de Sampaio, padre Francisco
Gonçalves Martins, George Gardner, João Brígido dos Santos e Pedro Thebérge.
Negando
a existência do romance entre Bárbara e o padre Saldanha encontram-se: Pedro
Jaime de Alencar, José Carvalho, Ruth Alencar, J. C. Alencar Araripe e o padre
Antônio Gomes de Araújo.
Neste
caso, por óbvio, não sendo possível obter a rainha das provas, ou seja, a
confissão dos supostos amantes, nos resta apenas averiguar elementos que sejam
capazes de levar a uma conclusão lúcida, para tanto, confrontando os diferentes
discursos que pairam em trono deste evento.
O Primeiro e o Principal Difamador
de Bárbara de Alencar
Depois
do perdão de 06 de fevereiro de 1818 (por Aviso de 02 de outubro de 1820),
Bárbara Pereira de Alencar foi libertada do cárcere na Bahia no dia 17 de
novembro de 1820, e retornou ao Cariri. Porém, seus bens haviam sido
sequestrados pela Coroa Portuguesa e uma parte de seus sítios foram leiloados,
ou melhor, foram à hasta pública.
Um desses sítios, o Pontal, onde
residira o padre Saldanha, bem próximo ao Sítio Pau Seco, bucólica residência
de Bárbara, fora adquirido em hasta pública pelo padre Francisco Gonçalves
Martins, o que culminou numa disputa judicial entre o adquirente e Bárbara de
Alencar. Ressalte-se que a animosidade entre tais contendores existia desde o
movimento de 1817, como será exposto.
O padre Martins era baiano, natural de
Santo Amaro, e neste lugar havia feito parte da Ordem dos Carmelitas Calçados
com o nome Frei Francisco de São José, contudo, veio a se afastar da dita ordem
religiosa.
Em
1817, o padre Francisco Gonçalves Martins já era um homem maduro, com 43 anos
de idade, havendo uma interessante notícia de sua compleição física na data de
1824, quando já possuía 50 anos de idade, nos seguintes termos: de estatura ordinária, corpo magro, rosto
descarnado, olhos grandes e pardos, com sobrancelhas grossas, nariz afilado,
boca ordinária, lábios grossos e possuindo todos os dentes da frente.
O
tal sacerdote mantinha relações estreitas com os magnatas da época, pois, além
de ser amigo e partidário de um dos descendentes do Caramurú (Diogo Álvares
Correia) em terras caririenses, o coronel Leandro Bezerra Monteiro, também fora
procurador de um parente deste, Antônio Joaquim Pires, o derradeiro senhor da
poderosa Casa da Torre, principal sede da riquíssima família baiana dos Garcia
d’Ávila.
Quando
da Revolução de 1817 no Cariri, o padre Martins foi designado por seu
correligionário, o coronel Leandro Bezerra Monteiro, para ir ao engenho do
capitão-mor José Pereira Filgueiras no intento de trazê-lo com palavras ao
grêmio do partido realista, o que serve para demonstrar um pouco do fervor do
padre pela monarquia e pela elite direitista da época.
Pelo exposto, o contexto ganha maior
transparência, pois é patente que, já havendo a rivalidade no plano político
entre o padre e a família Alencar (republicanos x monarquistas), a arrematação
do Sítio Pontal serviu de estopim para mais um embate direto entre os dois
partidos. Ademais, o padre Martins acusou o Vigário Miguel Carlos da Silva
Saldanha e Tristão Gonçalves Pereira de Alencar de terem ordenado um ataque ao
Sítio Pontal, à noite e com homens armados, certamente na tentativa de reaver
as ditas terras por meio da força.
Não
bastasse tantos desdouros, durante as guerras de Independência do Brasil, em
que os caririenses estiveram envolvidos até 1823, a família Alencar, formando
umas das principais lideranças desse movimento, se rivalizou novamente com o padre
Francisco Gonçalves Martins que, ao lado de outros figurões da época, se
posicionou contra à Independência, e, quando esta foi finalmente alcançada,
terminou sendo preso e remetido às enxovias do litoral pernambucano:
Mandada
abrir devassa pelos dois chefes da Expedição (José Pereira Filgueiras e Tristão
de Alencar Araripe), o padre Francisco Gonçalves Martins foi preso sob a
acusação de conspirar contra a causa do Brasil na companhia de alguns outros.
Como juiz e escrivão no processo instaurado contra o sacerdote, figuraram
respectivamente o citado Francisco Pereira Maia e José Pedro Nolasco de
Carvalho, primo de Tristão e sobrinho de Bárbara de Alencar. Julgado e
condenado, o réu padre Francisco Gonçalves Martins foi mandado em cadeias à
justiça de Recife, acompanhado dum ofício de Tristão, membro do Governo desta província.
De sua prisão em recife, o réu apelou para o Supremo Tribunal de Justiça de
Pernambuco, ao qual estava subordinada a Justiça do Ceará. O agravo do padre
Francisco Gonçalves Martins, escrito de seu cárcere, constituiu, ao mesmo
tempo, um libelo contra os seus inimigos políticos e pessoais de Crato, os
quais o haviam levado à prisão e condenação.
Dessa
forma, o padre Martins não economizou tinta para fazer sua defesa frente às
acusações dos seus inimigos, os quais foram atacados mordazmente, tecendo, sem
rodeios, que Bárbara de Alencar era “manceba
teúda e manteúda” do Vigário do Crato, isto é, do padre Miguel Carlos da
Silva Saldanha.
Um
dos netos de Bárbara de Alencar, filho natural de Tristão de Alencar Araripe,
Pedro Jaime, corroborou os motivos que teriam levado à dita difamação,
entretanto, como era de se esperar, defende a honra de sua avó, negando que
tenha havido o romance:
Dona
Bárbara, que perdera todos os bens materiais no confisco da contrarrevolução,
percebia agora, manchado pela maledicência, um bem maior: a sua honra de mulher
honesta, mãe de família exemplar. Segundo o mísero e infame sacerdote, Padre
Martins, que havia arrematado em hasta pública o Sítio Pontal, de propriedade
de Dona Bárbara, ao ver-se envolvido em demanda judicial, em torno do dito
sítio, começou a fomentar, por vingança, uma campanha de injúria e difamação em
torno da honra da veneranda senhora. Passou a divulgar que José Martiniano, o
filho mais novo de Dona Bárbara, não seria de seu marido, o comerciante
português José Gonçalves dos Santos, mas sim do Vigário do Crato, Padre Miguel
Carlos da Silva Saldanha. Essa infâmia precisava ser rebatida com veemência,
por não ter o menor cabimento.
Até
hoje, o dito padre tem carregado a culpa de ser o primeiro propagador da referida
infâmia contra D. Bárbara Pereira de Alencar. Todavia, encontramos outro
indivíduo, em tempo bastante remoto, afirmando por escrito que esta matrona era
amásia do padre Saldanha, e, ao que tudo indica, em data anterior ao labéu do
padre Francisco Gonçalves Martins.
Nos
extratos do Ofício nº 11, do dia 13 de agosto de 1817, do governador do Ceará
Manoel Ignácio de Sampaio, enviado a um dos desembargadores responsáveis pela
apuração do levante de 1817, consta uma afirmação categórica, certamente a mais
antiga que se tem notícia acerca do suposto namoro de Bárbara de Alencar e da
perfilhação de seu filho caçula, cuja paternidade é atribuída ao padre
Saldanha:
Nas
cadeias da fortaleza daquela vila se acham presos à ordem de Sua Majestade,
Maximiano Gomes da Sila, espião e propagador das doutrinas de Carvalho, o Padre
Francisco Manuel de Barros , cujo crime consta do documento nº 28, Gregório
José de Lemos, e Antônio da Costa Vilar, cujo crime consta dos documentos nos
29 e 30, além dêste os 8 indivíduos que mais figuraram na revolta do
Crato que são o Padre José Martiniano de Alencar, seu irmão Tristão Gonçalves
Pereira de Alencar, seu irmão o Padre Carlos Pereira de Alencar, sua mãe
Bárbara Pereira de Alencar, o vigário do Crato o Padre Miguel Carlos da Silva
Saldanha, pai do padre José Martiniano, Francisco Joaquim de Gouvêa e Inácio
Tavares Benevides, parentes daquele Alencar, e o Padre Frei Francisco de Santa
Ana Pessoa, parente do infame João Ribeiro Pessoa de Melo.
Como
se percebe, os boatos quanto à infâmia de Bárbara de Alencar já circulavam, por
escrito, desde agosto de 1817, o que leva a crer que o padre Martins não foi o
primeiro a publicar em letras as notas difamatórias, e, pelo visto, era ele
apenas um dos principais a fazer a dita imputação contra a honra da referida
matriarca.
CONTINUA!
NOTA: TODOS OS DADOS AQUI
APRESENTADOS SÃO RESPALDADOS EM FONTES ESCRITAS, CONTUDO, ESTAS SÓ SERÃO
REVELADAS QUANDO DA PUBLICAÇÃO EM LIVRO DE NOSSA AUTORIA.
Nenhum comentário:
Postar um comentário