Parte III: O Suposto Romance de Bárbara
Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha
Heitor Feitosa Macêdo
Informações dadas ao inglês George
Gardner
Bárbara de Alencar (pintura de Oscar Araripe) |
Inegavelmente,
os habitantes do sertão não ficaram isentos às críticas de seu visitante, o
qual, arrimado num discurso eurocêntrico, condenava tudo o que não lembrasse
seu País de origem. Assim, sobre a Vila do Crato, falou Gardner:
Toda
a população da Vila chega a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou
mestiços que deles descendem. Os habitantes mais respeitáveis são brasileiros,
em maioria negociantes; mas como ganharam a vida, as raças mais pobres é coisa
que não entendo. Os habitantes desta parte da província, geralmente conhecidos
pelo cognome de cariris, são famigerados no país por sua rebeldia às leis. Aqui
foi, e até certo ponto ainda é, embora em menor extensão um esconderijo de
assassinos e vagabundos de toda a espécie vindos de todos os cantos do país.
Embora haja um juiz de paz, um juiz de direito e outros representantes da lei,
seu poder é muito limitado e, ainda assim, quando o exercem, correm o risco de
tombar sob a faca do assassino.
Não é de admirar que
este britânico tenha sido um tanto leviano ao tratar do povo do Crato, pois,
durante os cinco meses que residiu na pequena vila, fez poucos amigos,
estabelecendo minguada intimidade com a população, como ele mesmo revela em sua
obra: Vivi cinco meses no meio desta
gente; mas em nenhuma outra parte do Brasil, mesmo durante mais curta
residência, fiz menos amigos ou vivi em menos intimidade com os habitantes.
Talvez essa antipatia entre ele e os
cratenses tenha sido regada não só por sua condição de estrangeiro, europeu,
mas também por sua religiosidade, posto que era protestante convicto. Logo,
adentrar um espaço naqueles idos, habitado por gente miscigenada e extremamente
católica, não era tarefa agradável.
Obra do inglês George Gardner. |
Segundo o escritor Pedro Jaime de
Alencar Araripe, o inglês havia sido hóspede do Capitão João Gonçalves de
Alencar, no entanto, isto parece possuir um certo exagero, pois, lendo a
obra deste britânico, percebe-se que ele apenas havia visitado a casa deste
filho de Bárbara, no Sítio Pau Seco (atual município de Juazeiro do Norte) e,
mesmo assim, o fez para tratar da doença de olhos que acometia a esposa do
referido capitão.
O certo é que, convivendo com os
moradores daquela pequena urbe, George Garner obteve a informação de que o
vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha, era o progenitor de todos os
filhos de Bárbara:
Raramente
os homens da melhor classe social vivem com as esposas: poucos anos depois do
casamento, separam-se delas, despedem-nas de casa e as substituem por mulheres
moças que estão dispostas a suprir-lhes o lugar sem se prenderem pelos vínculos
do matrimônio. Assim, sustentam duas casas. Entre outros que vivem nesta
situação posso mencionar o juiz de direito, o juiz de órfãos e a maior parte
dos comerciantes. Não é de admirar tal nível de moral, quando se leva em conta
a conduta do clero. O vigário, então, um velho de setenta a oitenta anos, era
pai de seis filhos naturais, um dos quais, educado para sacerdote, depois se
tornou presidente da província e era então senador do Império, conquanto ainda
conservasse seu título eclesiástico. Durante minha estada em Crato veio ele
visitar o pai, trazendo consigo sua amante, que era sua prima, com oito filhos
dos dez que ela lhe dera, tendo além disso cinco filhos de outra mulher, que
falecera ao dar a luz ao sexto. Além do vigário, havia na vila mais três outros
sacerdotes, todos com famílias de mulheres com quem conviviam abertamente,
sendo uma das mulheres esposa de outro homem.
Mas seria possível que
o padre Saldanha fosse o pai de todos os filhos de Dona Bárbara Pereira de
Alencar?
Como ficou demonstrado, na ocasião do
batismo do filho primogênito de Bárbara, João Gonçalves Pereira de Alencar, no
dia 27 de janeiro de 1783, o padre Saldanha foi quem mandou registrar o assento
deste sacramento no livro paroquial. Ao tempo, o padre Saldanha estava com 19
anos de idade, enquanto que Bárbara possuía 23 anos de vida. Não resta dúvida
que, biologicamente, ambos possuíam idade apta a procriar.
Um trineto de Bárbara Pereira de
Alencar, José Carvalho, rebate essa afirmativa de Gardner com base na tradição
oral emanada do seio de sua família, usando como argumento o fato de o capitão
João Gonçalves Pereira de Alencar se parecer com o marido de Bárbara, José
Gonçalves dos Santos, o Surubim Pintado:
Não
posso deixar de, aqui, interromper o NOSSO bom Inglez. João Gonçalves, nunca
foi considerado filho do vigário. Tanta parecença física tinha elle com o pae,
o portuguez marido de D. Barbara, que a calumnia nunca o pôde attingir. O
inglez ‒ é visível ‒ tanto nisto, no numero das mulheres e filhos de José
Martiniano, estava olvidado ou fôra mal e perversamente informado. Não é de
admirar que o fôsse por uma sociedade, como a que descreve com tintas tão
carregadas; como, tambem, não é de estranhar o vilipendio atirado á honra da
heroina que tão alta se elevava naquelle meio, como já notou João Brígido. É
ainda deste mesmo chronista cearense, numa das cartas a que já aludi, a
seguinte affirmação: ‒ <<FILHOS DE SURUBIM, PARA O PUBLICO DO CRATO, ERAM
TODOS OS DE D. BARBARA, MENOS UM ‒ PADRE SENADOR>>. José Gonçalves dos
Santos, marido de D. Barbara, tinha o apellido de SURUBIM-PINTADO “porque tinha
o rosto sarapintado de botelhas”, no diser do mesmo chronista.
Provavelmente, os
comentários sobre a vida amorosa de Dona Bárbara Pereira de Alencar continuavam
sendo propagados abertamente na vila cratense, mesmo depois de sua morte, em
1832. Na época, difundir uma inverdade desta natureza poderia custar caro,
ensejando conflitos sangrentos, pois a honra era um bem preciosíssimo e simples
nódoas eram lavadas a sangue. Desta maneira, é desarrazoado que o inglês e quem
lhe repassou tal informação quisessem se expor ao risco de sofrerem retaliações
violentas, e se estas não ocorriam é sinal de que os “boatos” não causavam
pecha, talvez por não serem de todo inverdadeiros!
Informações dadas por dois
correligionários do Senador Alencar
O
padre Joaquim Dias Martins foi o autor de uma das mais antigas obras sobre a Revolução
Pernambucana de 1817, com o título de “Os Mártires Pernambucanos”, na qual tece
alguns comentários que indicam existir estreitos laços entre o padre Miguel
Carlos da Silva Saldanha, Bárbara Pereira de Alencar e o senador José
Martiniano de Alencar.
Obra do padre Joaquim Martins. |
Em outra passagem, o mesmo padre
Joaquim Dias Martins, ao enaltecer o padre Saldanha, destaca que este:
...era
morador no Crato, e ilustre vigario d’aquella extensa e preciosa parochia,
condecorado com o habito de Christo. Suas parochiaes virtudes o tinhão feito
respeitavel a todas as suas ovelhas: nada porém era comparavel á estima da
ilustríssima ‒ Alencar 1º e seo filho Alencar 2º ‒ e de toda esta familia: a
singular predilecção que tinha por este ultimo, o fazia, ver, ouir, e sentir
pelos orgãos do afilhado, crendo sem hesitar, e abraçando firmemente quando
elle lhe dictava, ainda mesmo sem o entender: felizmente o joven nunca abusou
da sua ascendencia... .
Além
de revelar a aguda simpatia que o padre Saldanha dedicava a José Martiniano de
Alencar (Alencar 2º) e a mãe deste, Barbara Pereira de Alencar (Alencar 1º), o
autor também revela outro indício importante ao expor que José Martiniano nunca
“abusou da sua ascendência”, ou seja, dá a entender que o padre Saldanha estava
entre os ascendentes (ancestrais) do senador Alencar.
Mas como o padre Joaquim Dias Martins
obteve estas informações?
Os manuscritos relativos à obra do padre
Martins, Os Mártires Pernambucanos,
datam de 1823, ou seja, foram elaborados ao longo de seis anos após a Revolução
de 1817. Pela proximidade que tal narrativa guarda com os fatos, é provável que
o autor tenha se baseado no testemunho ocular dos participantes do dito
movimento de 1817, o que inclui o próprio José Martiniano de Alencar, pois
ambos eram correligionários, amigos e mantiveram relativa convivência, pelo
menos é o que dá a entender no seguinte trecho sobre o padre Alencar, quando
este retornava das Cortes de Portugal:
...já
contámos os principaes sucessos da sua vida machinal nos dous precitados
artigos: aqui sómente acrescentaremos o juizo que formámos, quando o vimos
desembarcar em Pernambuco, em 1821, tão gordo, tão alegre e tão desenfadado:
feliz homem! Dissemos: preso sem culpa, perseguido sem causa, martirizado sem
gloria e restituido sem honra: confessamos, todavia, que o povo, em vista da
causa, pensa de um modo mais rigoroso.
Obra do padre Moniz Tavares. |
Outro
colega de José Martiniano de Alencar era o padre Francisco Muniz Tavares (apelidado de “o Discípulo”), desde a
época do Seminário de Olinda e da Academia Paraíso em Recife, na então
Capitania de Pernambuco. Como é sabido, ambos participaram diretamente da
Revolução Pernambucana de 1817, entrincheirados ao lado dos Patriotas. Com a
derrocada da Revolução, foram eles presos nos cárceres baianos, onde puderam
estudar sob a batuta dos irmãos Andrada. Ressalte-se que Dona Bárbara Pereira
de Alencar também estava presa nas mesmas masmorras. Depois de serem soltos, no
ano de 1821, os padres Muniz Tavares e Alencar embarcaram em direção a Portugal
para assumir os cargos de deputados nas Cortes Gerais. Como é perceptível, o
contato entre estes dois indivíduos foi bastante intenso.
Ocorre que no ano de 1840 Francisco
Muniz Tavares publicou a obra “História da Revolução de Pernambuco em 1817”. Tendo
sido uma das testemunhas oculares do fato, Muniz Tavares inclui em sua
narrativa o velho companheiro de lutas, não fazendo rodeios ao dizer que o
então “subdiácono” José Martiniano de Alencar era filho do Vigário do Crato, o
padre Miguel Carlos da Silva Saldanha:
Munidos
tambem de cartas de recomendação, puzerão-se todos dois em caminho. O theatro
onde Alencar podia representar, era a sua villa natal; para ahi proseguio
separando-se logo do seu companheiro, que ficou inerte na Fazenda do Padre Luiz
José. Chegando á casa paterna, elle contou misteriosamente os factos das
Provincias revoltadas exaltando-os, e valendo-se dos meios adequados para
induzir o bom pai a favorece-lo no trabalho de cathechisar o temivel
Capitão-Mor. Foi porém tudo em vão; a pusilanimidade excedia a predileção.
Aquelle Parocho, que mal entendia o seu breviário, e não conhecia outro objecto
de culto se não o seu Deus, e o seu Rei, tremeo ouvindo a narração, e pensando
unicamente na salvação do filho, que já cria perdido, o supplicou a desistir da
empresa.
A
respeito disto, Ruth Alencar tenta desqualificar o autor ao afirmar que ele
“pertence à classe dos caluniadores que mentem patologicamente”, estribando
seus argumentos em especulações pessoais ainda não comprovadas, como, por
exemplo, uma possível inimizade política entre Muniz Tavares e o padre Saldanha,
bem como no fato de Muniz Tavares ter se abeberado nos escritos do padre Francisco
Gonçalves Martins, erroneamente considerado como “o primeiro e único caluniador
de Bárbara de Alencar”.
Tendo em vista que Muniz Tavares e o
senador Alencar foram colegas no Seminário de Olinda, sócios da Academia
Paraíso, participantes da Revolução da Revolução Pernambucana de 1817 e
deputados na mesma legislatura, nas Cortes Gerais de Portugal, em 1821, não
resta dúvida que conviveram de perto, sendo crível que, por esta razão,
conhecessem detalhes da vida privada um do outro.
Fato bastante curioso é que a obra de
Muniz Tavares veio à lume no ano de 1840 e, mesmo diante disto, o senador José
Martiniano de Alencar, no auge de sua carreira política, não tenha rebatido as
supostas “calúnias”. Pelo menos, não se conhece nenhum escrito de Alencar
defendendo a si ou a própria mãe do crime que maculava as suas respectivas
honras.
O Testamento do Vigário Miguel
Carlos da Silva Saldanha
Admitir
que tenha acontecido o tal romance não causa estranheza, isto porque a História
do Ceará está repleta de casos semelhantes, vários padres mantendo relações com
mulheres e com elas formando proles extensas, das quais, muitas compõem boa
parte das famílias tradicionais do Nordeste.
No
começo do século XVIII, são feitas acusações contra o padre jesuíta Ascenso Gago,
sendo ele pai de vários filhos gerados com as índias da aldeia da Serra da Ibiapaba.
Além disso, ele também é acusado de ter, às custas do trabalho indígena, acumulado valores relevantes para servirem de dote a uma de suas filhas:
Representando-se
mais pelos ditos moradores que toda a causa de se não mudar a dita aldeia da
serra da Ibiapaba são os padres da companhia pela conveniência que nela tem,
cuja aldeia só serve de ofensas de Deus, e de inquietações aos moradores
circunvizinhos, causando nelas muito escândalo os padres Ascenso Gago e Manuel
Poderoso com o procedimento, que se manifesta pelos ditos moradores, chegando o
dito Ascenso Gago a dotar com doze ou quinze mil cruzados uma filha, que casou,
cujo dinheiro se ajuntou por meio dos índios, que em seu serviço o ganharam
carregando sal para o Piauí a troco de vacas com que povoou vários sítios.
No
sertão dos Inhamuns, ao lado do Cariri, também no século XVIII, encontrava-se o
padre José Bezerra do Vale amancebado com uma índia jucá, sendo que deste casal
descendem muitas famílias cearenses, como os Andrade, os Gois, os Arrais, os
Abath (do Crato/CE). Há quem diga que o ex-presidente do Brasil Wenceslau Brás também
esteja entre os descendentes do “pecaminoso” relacionamento do padre José
Bezerra do Vale com a dita cunhã.
Comprovadamente,
no Ceará dos séculos passados, são inúmeros os casos de padres entregues à lascívia,
mas, para evitar delongas, apenas alguns serão citados a fim de contextualizar
os fatos aqui tratados.
Em
Russas, o padre Maia deixou larga descendência. No Pereiro, próximo a cidade de
Icó/CE, o padre F. Martins, além de se apossar das terras de um fazendeiro, que
também era filho de um padre, tomou-lhe a esposa, deixando vários filhos no
lugar. Em Uruburetama/CE, o padre Francisco Rodrigues Barbosa era proprietário
de fazenda e pai de família.
No
Crato, o número de pastores entregues ao pecado da carne era significante,
pois, só no ano de 1838, existiam quatro que possuíam filhos e amásias. Entre
estes presbíteros cratenses, um dos que mais chamava a atenção era o padre
Joaquim Ferreira Lima Verde, progenitor de uma das famílias mais numerosas do
Sul cearense e de todos os que possuem esse sobrenome no País. O comportamento
deste padre era tão escancarado e aceito socialmente que foram publicadas no jornal
da cidade O Araripe, em 1856, algumas
acusações contra ele, nas quais, inusitadamente, é chamado de assassino e corno.
Oriundo
de Lisboa, o padre Alexandre Leite de Oliveira se radicou na Vila do Crato
durante o século XVIII, onde se tornou senhor de dois engenhos (Rosário e
Cabreiro). Apesar da sotaina, o dito padre gerou um filho, chamado Antônio
Leite de Oliveira, que também veio a se tornar sacerdote e, palmilhando a mesma
senda paterna e avoenga, produziu numerosa prole, isto por ter se amigado com
Dona Josefa Leonor da Encarnação, com quem teve cinco filhos: Antônio Lima de
Mendonça, Venceslau Patrício, Ana Rakel (ou Rabel), Antônia e Maria Luíza,
sendo todos eles tratados em seu testamento pela alcunha de “afilhados”:
Papel
de doação que faz o padre Antônio Leite de Oliveira do Sítio da Venda aos seus
afilhados cujo papel vai lançado nesta Nota:
Saibam
quantos este público instrumento virem com o teor de um papel de doação que
sendo no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e
doze, aos quatorze dias do mês de Dezembro do dito ano, nesta real Vila do
Crato Comarca do Ceará Grande em seu cartório, por parte do doador me foi
requerido lançasse este papel de doação em Notas para obviar qualquer
inconveniente que poderão padecer pelo tempo futuro e por o reconhecer
verdadeiro e estar a mim distribuído pelo Distribuidor deste Juízo Joaquim José
de Melo, o tomei e aqui o lancei e é o que se segue. Digo eu o padre Antônio
Leite de Oliveira, Clérigo Secular do hábito de São Pedro, que entre os meus bens
que possuo com posse mansa e pacífica há bem assim um Sítio de terras nominado
Venda que há de ter pouco mais ou menos meia légua, que comprei e o tenho por
preço de cem mil réis cujos vendedores foram Antônio Lopes de Andrade e sua
mulher Arcângela Maria a quem logo paguei dita quantia e presenciaram esta
venda e compra Domingos Dias Cardoso e José Joaquim, comprado com dinheiro
adquirido pelas Ordens de Missas e estado clerical sem que entrasse na compra
dele coisa alguma do casal de meus pais e irmãos, cujo Sítio extrema pela parte
sul no riachinho da Venda e descendo pelo rio Salgado abaixo até o curral
queimado com terras de Miguel Álvares, da parte do Norte e do Nascente com o
mesmo rio Salgado e do poente com terras da Canabraba, o qual sítio assim
extremado e como constará de sua escritura a mim passada e por ser verdadeira e
legitimamente meu e não haver sobre ele embargo, nem dúvida e nem outra alguma
coisa que de embargo servir possa, faço doação deste mesmo sítio aos meus
afilhados Antônio Lima de Mendonça, Venceslau Patrício, Ana Rakel (ou Rabel),
Antônia, Maria Luíza, filhos de Dona Josefa Leonor da Encarnação (...).
Mas
não parou por aí, pois, não bastasse o referido padre Alexandre Leite de
Oliveira ser genitor de um outro padre, também teve um neto que se tornou
religioso, o padre João Marrocos Teles, o qual, por sua vez, é o pai do
professor José Joaquim Teles Marrocos, quem ainda tentou seguir a carreira
religiosa, mas acabou sendo expulso do Seminário da Prainha, em Fortaleza/CE.
Aproveitando
o ensejo, deve ser destacado que o referido padre Antônio Leite de Oliveira,
documentalmente, consta como padrinho de batismo de José Martiniano de Alencar.
É curioso notar que Alencar também se tornou padre e constituiu família com uma
“prima de primeiro grau”, demonstrando ter puxado à benção do padrinho,
seguindo a regra do tempo e do meio em que estava inserido.
Essa
permissividade sexual era algo constante na vida daqueles brasileiros
interioranos, incluindo as pessoas mais próximas de José de Alencar, a começar
por seu irmão, Tristão de Alencar Araripe, que teve um filho natural com uma
escrava, o professor Pedro Jaime de Alencar Araripe.
Outro
caso emblemático de licenciosidade ocorreu com o Coronel Maínha, José Francisco
Pereira Maia (filho do pernambucano Francisco Pereira Maia Guimarães, um dos
protagonistas da Revolução de1817 em Crato), pois, depois de ter se apartado da
mulher legítima, foi viver em concubinato com nove mulheres, sendo cinco delas
tias do padre Cícero Romão Batista.
O
fato é que, do litoral ao sertão, dentro e fora da família Alencar, observam-se
muitos religiosos entregando-se aos prazeres da carne, e para que tais
indivíduos não sejam esquecidos, cabe lembrar algumas famílias do Ceará que
encontraram nos padres verdadeiros garanhões, entre eles: os Pompeu,
descendentes do padre Tomás Pompeu de Sousa Brasil (senador do Império); um dos
ramos da família Alencar que provém do padre Pedro Antunes de Alencar
Rodovalho; os Angelitinos Martins de Missão Velha, no Cariri, rebentos do padre
Manuel Antônio Martins de Jesus, que foi deputado provincial; os Aires da
região caririense, que têm como patriarca o padre Manuel Joaquim Aires do
Nascimento (ex-vigário colado do Crato); os Beviláqua, descendentes do padre
José Beviláqua (ex-vigário de Viçosa); e, por último, o exemplo pitoresco do
padre José Gonçalves da Costa, deputado provincial e pai de muitos indivíduos,
o qual chegou ao cúmulo de raptar a filha de um colega de profissão (o padre
Manuel da Silva Sousa) para com ela coabitar.
Já
na segunda metade do século XIX, o comportamento dos religiosos impressionava o
médico Francisco Freire Alemão, que, ao falar sobre a imoralidade do clero e
seculares do Ceará, declarou: “Quanto ao
clero, não será possível achar-se em outro lugar onde sua devassidão exceda, ou
mesmo iguale, ao que se vê nesta província”.
Depois
de toda essa digressão, resta apresentar o testamento deixado pelo vigário do
Crato Miguel Carlos da Silva Saldanha, pelo qual lega seus bens aos filhos do
padre José Martiniano de Alencar com Dona Ana Josefina de Alencar. O testamento
fora feito no dia 16 de fevereiro de 1839 na então Vila do Crato, e diz:
Testamento
solene que faz em notas aberta e publicado o reverendo Vigário Miguel Carlos da
Silva Saldanha.
Saibão
quantos este publico instrumento de testamento virem que sendo no anno de do
nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e trinta e nove, anno
décimo oitavo da independência e do Império aos dezeseis dias do mez de
fevereiro do dito anno nesta Villa do Crato cabeça da comarca da Província do
Ceará em casa do reverendo vigário Miguel Carlos da Silva Saldanha, onde fui
vindo eu Tabelião Público adeante nomeado e assignado, e sendo ahi pelo dito
reverendo me foi dito que queria fazer seu solene testamento aberto e publicado
em notas e por isso me havia mandado chamar para lhe escrever, e que ele o
ditava, o qual é da maneira seguinte: Em nome da Santíssima Trindade Pai Filho
e Espírito Santo em que eu Miguel Carlos da Silva Saldanha firmemente creio e
em cuja fé protesto viver e morrer. Este, o meu testamento de última vontade.
Declaro que sou filho de Manuel Carlos da Silva Saldanha, e de Isabel Maria de
Sousa, naturais da freguesia de Riacho de Sangue donde também sou natural,
declaro e quero ser sepultado na minha Matriz sendo acompanhado pelos
sacerdotes que se acharem, os quais dirão missa de corpo presente por minha
alma; mando que se ergam por minha alma duas Capelas de Missas, outra pelas
almas de meus pais, outra pelas de meus irmãos falecidos e uma pelas almas de
meus fregueses, e mais duas Capelas aplicadas em minha intenção. Deixo para
adjutório da obra de minha Matriz quatrocentos mil reis, e para o azeite do
Santíssimo Sacramento, vinte e cinco mil reis e igual quantia para os pobres de
porta da minha freguesia que acompanharem o meu enterro. Deixo cinqüenta mil
reis para as duas filhas do falecido José Carlos. Rogo em primeiro lugar ao
senhor Senador José Martiniano de Alencar, em segundo lugar ao senhor José Dias
Azedo e em terceiro ao senhor capitão João Pereira de Alencar queiram fazer a
obra pia de ser meus testamenteiros. Declaro que não tenho herdeiros forçados,
e por isso constituo por meus herdeiros universais os filhos de dona Ana
Josefina de Alencar, filha do falecido Leonel Pereira de Alencar, os quais são:
José, Leonel, Ana e Tristão, a quem meus testamenteiros entregarão todas as
minhas fazendas, que por minha morte ficar, tirando somente o que for preciso
para o cumprimento de minhas disposições por ser esta minha última vontade para
ser cumprida depois de minha morte. E deste modo disse ultimava seu solene
testamento e disposição de última vontade, e revogava qualquer outra que
aparecesse, pois era esta sua última vontade, e como assim disse assignou se
seu próprio punho com as testemunhas o reverendo Manuel Joaquim Aires do
Nascimento, o reverendo Pedro Antunes de Alencar Rodovalho, o alferes Canuto
José de Aguiar, Roque Carlos Peixoto de Alencar e Manuel Carlos da Silva
Peixoto, e que Antonio Duarte Pinheiro Tabelião Público o escrevi.
É perceptível
que o padre Saldanha, mesmo tendo vários sobrinhos, filhos de seus irmãos,
resolveu deixar todos os seus bens aos filhos naturais de Ana Josefina de
Alencar com o senador José Martiniano de Alencar. E por que ele teria feito
isso? O senador, presumidamente, já era um homem rico e, em tese, não tinha
parentesco sanguíneo com o padre Saldanha, coisa que era de extrema relevância
na hora de um testamento para aquela gente. Seria mais razoável se o vigário
tivesse testado em favor dos parentes mais próximos, pois o que não lhe faltava
eram sobrinhos!
Além disso, quando o padre Saldanha
nomeia como testamenteiro, em primeiro lugar, o senador José Martiniano,
percebe-se o tamanho da confiança e a estreita relação entre ambos.
Ademais, é importante destacar que
quando chega a vez de o senador Alencar elaborar seu próprio testamento, em
1853, nomeia em primeiro lugar, como testamenteiro, o seu filho primogênito, o
bacharel em direito e escritor José Martiniano de Alencar; em seguida, encomenda
para que se faça, após sua morte, uma capela
de missas em favor de seus pais e outra capela de missas para o seu
padrinho e benfeitor, o padre Saldanha, em agradecimento pelos benefícios por
ele prestados.
CONTINUA!
NOTA: TODOS OS DADOS AQUI
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