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domingo, 22 de março de 2020

O Conceito de Cabra no Cariri Cearense nos Séculos XVIII, XIX e XX


O Conceito de Cabra no Cariri Cearense nos Séculos XVIII, XIX e XX
                                                                                   

Clarissa Miranda Norões
(advogada) e 
Heitor Feitosa Macêdo
(advogado e pesquisador)


                   Neste artigo, procuramos discutir a definição do termo “cabra” atribuído a pessoas ou determinados grupos humanos em algumas regiões brasileiras, especialmente no Cariri cearense, sul do Estado do Ceará, entre os séculos XVIII, XIX e XX. Atualmente, a definição de “cabra” é considerada, por alguns, como categoria, e, por outros, um conceito. Segundo nos aponta documentação consultada para esta proposta, encontra-se registro escrito do referido termo desde o início do século XVIII, na então capitania do Ceará Grande, espaço em que estava contido o Cariri cearense. Assim, para tentar encontrar a(s) verdadeira(s) semântica(s) do vocábulo “cabra” no espaço-tempo citado, analisaremos algumas narrativas veiculadas em jornais, documentos manuscritos, revistas e obras historiográficas.  
Dança do Maneiro Pau, na Praça da Sé, em Crato/CE, em data anterior a 1962. Fonte: "O Folclore no Cariri", J. de Figueiredo Filho
                 Na região denominada de Cariri Cearense, sul do Estado do Ceará, ainda é comum ouvir-se os termos “caba” (cabra), “caba bom”, “caba ruim”, “caba safado”, “caba véi” (cabra velho), “caba danado”, “cabra da peste”, “caba macho”, “caba caceteiro”, “cabrocha”, “cabinha”, etc., para definir pessoas ou grupos humanos, nem sempre em sentido pejorativo. Sobre isto, importa saber quando surgiu esta classificação, quem eram os cabras e se houve alguma mudança semântica da referida palavra ao longo do tempo.
                   Examinando trabalhos especializados, aparece o estudo de Ana Sara Cortez Irffi, cuja proposta foi analisar o conceito de cabra usado no Cariri cearense durante o século XIX. A referida historiadora afirma que o “desenho dessa categoria” teria sido “forjado ao longo dos oitocentos e parte do século seguinte” e que “passava pela ideia de que tinha um sentido geográfico, entendendo o cabra como sertanejo do Cariri cearense, assim como o caboclo se referia ao Norte do Brasil[1]
                   Esta mesma pesquisadora acredita que a definição de cabra, construída durante o século XIX, estava ligada, inicialmente, às condições de vida da população camponesa caririense, sendo que a dita palavra se referia à categoria de “homens e mulheres pobres e de cor, fossem eles livres, libertos ou escravos”.
                   Irffi também afirma que o emprego do vocábulo cabra consistia em uma categorização construída pela dicção do dominador para se referir ao dominado e que isto foi “reforçado”, sobremodo, a partir da Revolta de Pinto Madeira, de 1831 a 1832, pois, segundo ela:

Nesse sentido, o que mais marca os camponeses é, mesmo sob iguais condições, a ausência de uma identidade coletiva forte, no entanto, outro fenômeno: a construção de uma definição: cabras, que não pressupõe identidade, mas se mostra como uma categoria de referência e identificação empregada por pessoas que se consideram alheias a essa definição. Uma categorização de fora para dentro, ou de cima para baixo, reforçada, sobretudo, a partir dos anos de 1831 e 1832 (...). Após os acontecimentos dos anos de 1831 e 1832, que ficaram conhecidos como a revolta de Pinto Madeira, a tranquilidade pública no Cariri cearense passou, em diversos momentos, a ser sobressaltada pelo medo de uma nova irrupção da rebelião (...). Desses acontecimentos em diante, os moradores livres e pobres do Cariri cearense ficaram conhecidos como cabras e entendidos como predispostos a revoltas e motins.[2]            

                   Diante disso, cabe indagar se o conceito e categoria de cabra realmente surgiram nestas circunstâncias, dentro do tempo e espaço citados, ou seja, se a consolidação dessa definição realmente partiu de uma visão dominadora no Cariri cearense a partir da Revolta de Pinto Madeira.
                   No Ceará, desde a primeira metade do século XVIII, os cabras já eram citados nas “devassas” e “correições” (espécies de inquéritos policiais e processos judiciais) por terem participado de homicídios e conflitos armados ocorridos na década de 1720.
                   No ano de 1727, por exemplo, ao sair da casa do juiz leigo de Aquiraz/CE, o doutor Manoel da Fonseca Marques foi assassinado em uma emboscada. A viúva da vítima disse que o mandante teria sido o sargento-mor Miguel Carneiro da Cunha, pelo fato de o doutor Manoel da Fonseca ter se recusado a defendê-lo numa causa. Entre os acusados do crime, apontam-se alguns índios (“tapuios do Miguel Carneiro da Cunha”) e um “cabra” de Sebastião Pedroso chamado Ascenso, conforme o requerimento da viúva Gracia da Cruz e Silva ao Rei Dom João V:

Sn.or. Em Sinco de Fevr.o do anõ de 1727. vindo de caza do ouv.or Leigo em a Villa dos Aquiras Com.ca do Siarã g.de meo marido o def.to D.or M.el da Fon.ca Marques õ. mataraõ no caminho a treiçaõ. pellas nove horas da noite com hum tiro. eq.m õ m.dou matar foi o Sarg.to mor Miguel Carn.ro daCunha por od.to D.or õ naõ querer̃. defender em huma cauza de que proçederaõ. Alguas razoẽs e Logo a omesmo D.or ameasou od.to Sarg.to mor oq.al he n.al deste Pern.co emora no Pirangi Cap.tnia do Siarã g.de epor hora com receio do dez.or Sẏndic.te Ant.o Marques Cardozo se auzentou dellã e emg.o que foi de seo Paẏ o Capp.am mor. M.el Carnr.o daCunha em avarge tres Legoas mais ou menos desta Villa onde asiste com os seos irmaõs ou primos e com m.ta cautela. q.m comcorreo p.a ad.a morte foi Seb.am Podrozo n.al de Sergipe del Reẏ Cap.tnia da B.a mor.or agora no boqueiram̃ de Jagoaribe destrito domesmo Siarã gr.de pello d.to des.to ser comtra elle em huma cauza que defendia ao Coronel Joaõ de Barros Braga q.m foi vigiar aod.to defunto em caza do d.to ouv.or Leigo euejo dar parte ao tapuẏo do d.to Sarg.to mor eao cabra de Seb.am Podrozo que estavaõ. no caminho esperando que paSsasse meo def.to marido foi hum moço por nome M.el Martins̃. viana eo Teixeirinha todos socios do d.to Sarg.to mor por este lhesdar sinco poldros e vinte sinco mil Reis Pareceme q̉. ouvẏ dizer setirou devaSsa eq od.to Sarg.to mor por ser am.o do d.to ouv.or Leigo subornara astest.as della como poderozo naquella Cap.tnia q.m sahio sõ pronunçiado nadeuasa ouvẏ tambem dizer que foi o d.to Seb.am Podrozo eoseo cabra p̃: nome Assenso [fl. 01].[3]

                   Na apuração de inúmeras infrações criminais cometidas no Ceará, os magistrados da época indigitaram vários indivíduos num rol de criminosos, elaborado em 1730, no qual são encontradas referências diversas a conceitos étnico-raciais, como, por exemplo, os vocábulos “negros”, “pretos”, “crioulos”, “gentios da Guiné”, “mulatos”, “pardos”, “mestiços”, “índios”, “caboclos”, “tapuias”, “mamelucos”, “curibocas” e outros. No entanto, o mais interessante neste rol é a menção a um tal de Pascoal Barbalho, classificado no referido documento como “cabra” e considerado culpado pela morte de Manoel da Fonseca, segundo reza o texto: “Pascoal Barbalho, cabra culpado na morte a Manuel da Fonseca[4].  
                   Aparentemente, a figura do cabra e o seu conhecimento bélico haviam sido aproveitados pelas elites locais, de ascendência europeia, desde os primeiros conflitos armados no Cariri cearense como estratégias de sobrevivência e/ou domínio. Neste espaço, os cabras eram a base dos exércitos, públicos ou privados, sendo fundamentais para decidir os rumos políticos do sertão caririense de outrora[5].
                   No início do século XIX, no Cariri, também são encontrados registros que indicam o envolvimento dos cabras em conflitos políticos, como, por exemplo, na chamada Revolução Pernambucana de 1817, a qual também foi deflagrada nas vilas de Crato e Jardim. Nos autos processuais que apuraram a participação dos “revoltosos” (liberais/republicanos) no referido movimento, são citados sete “cabras do Lameiro”, quais sejam: Antônio da Costa, Antonio Alves Carneiro, Félix Carneiro, Joaquim da Costa, Manuel da Costa, Manuel da Silva e Miguel Justo[6].
Grupo de Maneiro Pau do Lameiro. A professora Lúcia Brito Norões, está de frente ao mestre Cirilo do Lameiro, já falecido.  (Fonte: Coleção João Lindembergue de Aquino, Arquivo do Instituto Cultural do Cariri - ICC)
                   Deve ser acrescentado que o Sítio Lameiro, no século XVIII, fez parte do território da Missão do Miranda, espécie de aldeamento artificial formado por índios e fundado pelo frei italiano Carlos Maria de Ferrara. No entanto, pouco tempo depois de esta aldeia ter sido elevada à vila (Real Vila do Crato, em 1764)[7] por determinação do Marquês de Pombal, os índios nela aldeados foram transferidos para o litoral, no ano de 1779[8], ficando as terras da antiga missão sob o domínio útil da Câmara do Crato, na qualidade de terras foreiras, as quais poderiam ser cedidas a terceiros por meio de enfiteuse[9].
                   No Lameiro era encontrada, ao sopé da chapada do Araripe, uma das maiores fontes d’água de toda a vila cratense, nas cabeceiras do Rio Itaytera, atualmente conhecido por Rio Batateira, lugar sobre o qual ainda hoje pairam tradições indígenas e resquícios de ali ter havido antiga habitação de gente de ascendência africana.
                   O fato é que o Lameiro, em 1811, veio a ser comprado por um indivíduo pertencente às elites locais, Tristão Gonçalves Pereira de Alencar (ou Tristão Gonçalves de Alencar Araripe)[10], filho de Bárbara Pereira de Alencar e um dos chefes da Revolução de 1817 no Cariri.
Maneiro pau: dança guerreira executada por homens do Lameiro, zona rural do Crato/CE, em que fazem uso de cacete de jucá, temperado no fogo (Fonte: Coleção João Lindembergue de Aquino, Arquivo do Instituto Cultural do Cariri - ICC)
           Algum tempo depois do movimento liberal de 1817, na vila do Crato, os cabras, juntamente com os “mulatos”, reaparecem com grande destaque no episódio relativo à votação e juramento da Constituição Portuguesa de 1821, realizando protestos violentos contra a adesão dos caririenses à dita Carta Magna ou a “Lei do Diabo”, e, aparentemente, sendo manipulados pelas elites locais:

Achava-se comandando a Villa do Crato, e as forcas desta Comarca, o Coronel de Commissáo e Major de Linha, Francisco Ferreira de Souza, no mês de Abril, deste ano, e recebendo participação official do Governador da Província, Francisco Alberto Rubim, de ter Sua Magestade, por Decreto de 24 de Fevr.o, Aprovado aConstituiçáo, que fizessem as Côrtes Geraes de Lisboa, quiz publicar por bando esta fausta noticia, porem recebeo hú Officio da Camara, prohibindo-lhe, no Real Nome de Sua Magestade, esta publicação; por influencias do Capitáo Mór da mesma Villa, Jose Pereira Felgueiras, e do Coronel da Cavallaria Miliciana Leandro Bezerra Monteiro. Foi o dito Coronel Commandante á Camara convocando o Vigario da Freguezia, e os ditos Capitao Mór, eCoronel de Milicias, os quais desprezando o parecer do Commandante Geral, e do Vigario; se oppuzerão, dizendo o Coronel, que antes teria as mãos cortadas, Porque assignar semelhante couza; apezar, comtudo, desta repugnancia, sempre cederáo de algua forma e publicou-se. Desta indiscreta oppozição dos ditos chefes, e das expreSsões, que soltaváo facilm.e e sem reflexão, resultou o persuadir-se [fl. 01] O Povo, deque a Constituição era má. Em hum dos últimos dias do dito mes concorrêo aos disturbios da Villa grande numero de Cabras, e Mulatos a pesquizarem esta novidade e dele murmurando em termos ameaçadores, de sorte que vendo-se o dito Coronel Comandante sem forças, para se oppôr a qualquer tentativa dos ditos pardos, e em collizão, recorrêo logo ao Dzor Jozé Raimundo de Passos de Porbem Barboza, Ouvidor, e Creador, que foi desta Comarca, o qual se achava na Villa do Icó, encarregado pelo Governador da Provincia de varias Comissoes importantes, desde que chegou aqui a noticia da mudança de Governo da Bahia, que se pintou, como huã Revolução formal, e se tomaraõ medidas em quanto não veio a relação exacta dos factos, e o dito Dez.or vendo que eu me achava gravem.e: molesto de hua terrível oftalmia, apesar de conhecer o risco de vida a que se expunha, acceitou a nomeação, que lhe dei, de Ouvidôr, pela Lei, e, rapidamente, partio p.a a dita Villa. Antes da sua chegada, no dia 2 de Maio, mais de – 800 – cabras armados assaltaráo aVilla, dizendo que vinhaó matar oCoronel Command.te Geral, por ter obrigado o seuCapitaó Mór, eoCoronel de Milicias a assignarem a Lei do Diabo, mas o dito Coronel Commandante, assim que os avistou, caminhou para eles desarmado, e com toda... [fl. 02].[11]

                   Neste mesmo episódio, contra o juramento da Constituição, destacaram-se dois chefes políticos, o capitão-mor do Crato José Pereira Filgueiras e o coronel Leandro Bezerra Monteiro, os quais obtiveram a adesão das classes menos favorecidas com discursos sobre uma possível ameaça à liberdade dos pardos, cabras e crioulos:

A intrepidêz, e valor, fez-lhes hua falla, acompanhado do Capitão Mor eCoronel de Milicias, que acabou dando vivas a ELRey, sem, comtudo, fallar em Constituição. No dia tres concorrerão outros muitos; mas náo chegarão a entrar na Villa. Continuarão as dous chefes nas suas demonstrações de desagrado contra a Constituição, dizendo que ELRey a tinha Approvado, e Jurado, constrangidamente, ao que se seguirão boatos e dictos capazes de amotinar mais emais, os ditos pardos, cabras, e crioulos, de que há grande numero naquelle districto, e na Villa do Jardim, que he limitrofe, sendo o que mais impressáo lhes fazia, e de ficarem todos, pela nova Lei, reduzidos ao captiveiro, e de ser ella contra a Nossa Religião [fl. 2v][12].                

                   No Cariri, entre os séculos XVIII e XIX, estes cabras, ao lado dos mulatos, pardos e crioulos, faziam parte de uma classe de pessoas livres, que, armados, atuavam junto às elites locais nas tomadas de decisões de cunho político.
                   Ressalte-se que, à época, tais indivíduos também eram conhecidos como “Cerca-igrejas[13] ou “Cercadores de Igrejas[14], o que se dava pelo fato de as atividades eleitorais ocorrerem dentro dos templos católicos. Para ilustrar esta afirmativa, cite-se o ataque protagonizado pelos cabras da Serra de São Pedro (atual município de Caririaçú) à Igreja Matriz da vila do Crato, no dia 5 de agosto de 1821:

No dia 5 do corrente prestei o Juramento á Camara, ao Cap.m Mór, Coronel de Milicias e grande numero de concurrentes, e tudo na caza da Camara debaixo de hú muito Recente docel o Retrato de S.Magestade, e deráo-se repetidos Vivas á Religiaó, a ELREY, ao Serenissimo Senhor Principe Regente, a Real Disnastia de Bragança, as Cortes, e á Cosntituiçaõ que foráo respondidos com enthuziasmo, e Salvas de hua Comapanhia de Milicias. Estava na Igreja com aCamara, e mais Authoridades Ecleziasticas, Civis, e Militares, e já exposto o Santissimo Sacramento, quando se ouviráo gritos e marchando de repente oSargento-Mór de Milicias [fl. 05] Jozé Victoriano Maciel a vér o que era, apenas chegou á porta travéssa, hú Cabra lhe descarregou hua grande pancada na cabeça, que o deixou atordoado, outro correu=lhe uma estocada, que o não varou, por lhe fugir com o corpo, outro disparou-lhe hú tiro, que o ferio gravem.e no braço direito, mas neste mesmo estado investiu para todos, com a maior intrepidez, e dezembaraço, do que atemorizados fugirão para onde estaváo mais de 50 camaradas armados, havendo maior numero em outras distancias. Em vão gritei ao Coronel, e Ten.e Cor.el que socorressem aquelle seu Official que de certo o assassinavão, mas nem elles, nem Official algum se movêo, e menos os soldados da guarda, e apenas o Cap.m Mór sahio depois a apaziguálos, encontrando só dous, que ameaçou e naó prendêo. Grande foi aConfusaõ na Igreja, e todos fugirão. Constou que os Cabras se propunháo a matar o pregador, e atirara aos Assistentes, por saberem que na quelle dia se começara a Elleiçáo Parochial, e supposto se retiraráo timoratos, hiáo dizendo, que á noite voltavaó mais bem acompanhados. Pasmei de saber a falta de providencias dos dous Cheffes, para aquelle dia [fl. 05v] e entrei em desconfiança, pois sabia que elles pertendiaó atribuir ao Povo aquilo mesmo, que tinháo motivado no principio, com o seu pernicioso exemplo, e notificaçoes sediciosas, pois hé certo que aonde os Capitaes-Móres, eCoroneis obedeceráo logo, os Povos seguiráo de bom grado, e sem hezitaçaó, o que se lhe determinou. Pedi com instancia providencias para atalhar algum rompimento noturno, mas observei a maior inacçáo, e retirei-me ao anoitecer, acompanhado do Juiz ordinário, ed’outros m.tos que desampararão aVilla... [fl. 06].[15]   

                   Não bastasse, durante os conflitos pela Independência do Brasil em relação a Portugal, de 1822 a 1823, o Cariri cearense também presenciou movimentos armados, onde os cabras figuravam tanto nos exércitos dos independentistas quanto nas tropas imperiais.
                   Ao lado disso, sabe-se também que Joaquim Pinto Madeira, voltando-se contra este movimento de Independência, montou um exército de cabras sob a alcunha de os “Soldados de Nosso Senhor”, promovendo levantes nas vilas de Lavras, Crato e Jardim, no dia 14 de abril de 1823[16]. Tal episódio é confirmado por Tristão Gonçalves e José Pereira Filgueiras, em carta datada de 20 de abril de 1823:

A machina politica da nossa provincia está dezorganizada. Não resta mais duvida, que a guerra civil entra a mover seus braços para dilacerar-nos. No Crato Jardim e Lavras se organiza um grosso partido contra a santa cauza; e já no Crato se fizerão planos para a reunião de rompimentos de horrorozos attentados, a ponto de se vêr proxima a instalação de um governo dos Europeos da Barbalha, de que erão vogaes, Nascimento, Pinto, outros que são por nós bem conhecidos. No dia 14 do corrente no Crato se levantou um partido furiozo dos soldados de Nosso Senhor Jezus Christo, como lhe chamão os cabras, e depois de haverem solto um soldado, que ahi se achava prezo, á ordem do governo, passarão a atacar a caza de José Dias, e deitando-se-lhe a primeira porta abaixo, fôrão obrigados os moradores a fugir, tendo antes posto fogo a um barril de polvora, que, levando a caza, não matou a um só dos malditos. d’isto Joaquim Pinto, e Francisco Pereira atulharão a villa de um numerozo povo, que de então para cá não se sabe que attentados terão commettido, pois n’este momento nos chegão aqui algumas pessoas fugidas d’aquelle logar e só nos annuncião estes factos e a total indispozição contra a independencia (...) ao menos estamos informados, que os povos do Cariri olhào a estes homens como para anjos tutelares (...) Icó 20 de Abril de 1823, 2º do imperio. Jozé Pereira Filgueiras. Tristão Gonçalves Pereira de Alencar.[17]

                   Contudo, deve ser ressaltado que nem todos os cabras agiam guiados unicamente pela manipulação de Joaquim Pinto Madeira e outros realistas, havendo também, nesta revolta da “cabraria desenfreada”[18], reivindicações de se criar um governo independente, liderado por seus pares, isto é, pelos mesmos “cabras”. Pelo menos é o que se pode concluir de outra carta escrita na vila do Icó, por Filgueiras e Tristão, em 26 de abril de 1823:

Fazem poucas horas, que officiámos a V.S., fazendo-lhes vêr o estado do centro d’esta provincia, e determinando-lhes que se dirigissem á esta villa até o dia 27 do corrente para seguirmos á do Crato, e tomarmos medidas pacificadoras; e n’este momento acabamos de saber com grande horror e sentimento, que os cabras do Crato e villas vizinhas com o maior atrevimento fizerão uma revolta, e reunidos em numero de 2.000 e tantos, proclamarão e se dispoem a fazer um governo a seu molde, declarando a mais sanguinaria e crua guerra a S.M. Imperial, á independencia e a todos os patriotas, a cujo epiteto tem execração.[19]

                   Estes cabras, em diversos momentos, pretenderam romper com o domínio do Estado luso-brasileiro nas imediações da Chapada do Araripe, sul do Ceará, porém, à época dos fatos aqui narrados, interpretou-se, convenientemente, que a dita revolta dos mais de 2.000 cabras[20] era apenas fruto da “negra conspiração” dos absolutistas, conforme Tristão Gonçalves e José Pereira Filgueiras informaram em correspondência do dia 6 de abril de 1823:

...trazem officios do coronel Jozé Victoriano Maciel bem documentados; os ditos officiaes nos informárão do estado tristissimo, em que se achão as villas do Icó, Lavras, Crato e Jardim, que nada differem de uma anarchia, chegando a ponto de haverem tramado a mais negra conspiração com o projeto de nomearem a manoel Antonio Diniz seu governador, ao que este não annuio (segundo o que se nos informa).[21]

                   Todavia, com base nestes dados, não se pode mensurar com exatidão até que ponto os chefes locais manipulavam os cabras e até onde estes usavam aqueles para alcançar seus interesses particulares.
                   Dando prosseguimento à investigação sobre a presença desses cabras, vê-se que, em 1824, os liberais, qual em 1817, tentaram instalar novamente a República em diversas “províncias do Norte” (termo que, até o início do século XX, englobava a atual Região Nordeste), inclusive no Ceará. O fato é que, depois de aderir ao referido movimento, o então presidente provincial, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, pretendeu enviar os deputados cearenses para Recife, a fim de que fosse votada uma Carta Constitucional para as províncias Confederadas. Dessa forma, o percurso para capital pernambucana deveria feito através do Cariri, para onde fora enviado copioso armamento por ordem do governo republicano cearense[22]. No entanto, esta “rebelião” também foi sufocada pelos imperialistas, o que ensejou mais violências no sul do Ceará.
                   Mesmo após a derrocada dos Confederados de 1824, os cabras encontravam-se “desenfreados”, usando de pretextos políticos para cometerem crimes contra as vidas e os bens dos “patriotas” na província cearense, fato que exigiu das autoridades a adoção de medidas severas, como o castigo “com roda de pau”:

9br.o 19 [1825] Officio á Manoel Antonio de Amorim participando-lhe ó de 16 do corr.e o q.to disse o confirmava a bem publico e segurança individual no direito de propriedade em todos os tempos Em dacta de 16 do Corrente escrevi largam.te a VS.a o quanto disse o confirmo o bem publico a segurança individual, e o direito de propriedade em todos os tempos (...) os Assacinos feitos pellos homens pardos do seo termo, os quais sem atenção as Leis, e a este Governo tem morto a quantos querem parece emcrivel que entre humanos se obre desta sorte sem respeito as Autoridades juncando os campos de cadaveres daqueles que apelidão Patriotas só por meras paixoens m.to principalmente ao Cabra Francisco Alves que matou e roubou ao cabo de Esquadra Manoel de Lima, antes do Levantamento das Bandeiras Impriais, o qual sendo serto semelhante atentado o devera mandar prender e conduzilo algemado a esta Capital, e os outros Cabras dezemfriados q.e obrarem, despotismos e mesmos brancos os devera castigar rigorozamente com roda de páo (...).[23]

                   Neste mesmo período, as autoridades constituídas mencionam a necessidade de capturar os “facinorosos” de Quixeramobim, Campo Grande e, próximo às imediações do sul do Ceará, a “cabralhada da Serra do Pereira”[24], bem como o coito de ladrões apelidado de “Peitos Brancos”[25]. Igualmente, o Cariri encontrava-se infestado pelo “sequito faciozo de ladroens, anarquistas[26]. Ademais, no dia 26 de dezembro de 1824, os “cabras levantados do centro” (do interior, do sertão) ameaçavam invadir a vila de Sobral, ao norte da província do Ceará:

Hoje, pelas 9 horas do dia recebi Officios do Sobral em que se me partecipa q’. aquella V.a está ameaçada de ser amanhã invadida pelos Cabras levantados do centro, que em nome de S.M.I. assollão tudo p.r onde transitão, roubando, e commetendo m.mo alguns assassinios. Ordenei ao Gov.or das armas Conrado que partisse pela manhã com 100 homens na Escuna Independencia ou Morte a socorrer e cobrir aquella V.a encarregando-o de restituir p.r todos os meios possiveis a ordem: espero que no dia 29 do corr.e ali se achem. Eu não me tenho poupado ás maiores fadigas, e serei contente se S.M.I. approvar estas medidas a q.m VEx.a levará o conhecimento deste negocio. D.s G.e a VEx.a Palacio do Governo do Ceará 26 de Dezembro de 1824 = Ill.mo e Ex.mo S.r General Lima = Pedro José da Costa Barros.[27]

                   No início do ano seguinte, até o dia 29 de março de 1825, a população da província do Ceará encontrava-se em relativa paz, com exceção dos “cabras do interior”, conforme o testemunho do presidente cearense José Félix de Azevedo e Sá: “Os Habitantes desta Prov.a felism.te vivem tranquilos a exceção dos cabras do interior que tem feito algumas desenvolturas...[28].
                   Além disso, ente 1831 e 1832, por diversos motivos, Pinto Madeira e o padre Manoel de Sousa lideraram uma resistência armada no Cariri, a qual, por algum momento, chegou a ser apoiada por, aproximadamente, 6.000 homens[29], na maioria, gente do povo, denominada de “cabras”, cujas práticas bélicas remontavam à logística militar indígena, isto porque, na falta de armas de fogo, faziam uso do “cacete”, também conhecido na língua autóctone pelos nomes “jucá[30] e “ibirapema[31], sendo ainda hoje utilizado na região do Cariri cearense na manifestação folclórica conhecida por “maneiro pau”.
Ibirapema dos índios Tupinambá. Fontes: "Viagem ao Brasil", do alemão Hans Staden, publicada em 1557
              Estas clavas de madeira, apesar da rusticidade pré-histórica, eram muito eficientes nos combates corpo a corpo, pois os “caceteiros[32] levavam vantagem sobre os inimigos que maneavam facões[33], facas e punhais[34], devido ao alcance e resistência dos pedaços de jucá temperados ao fogo.
               O “quirim” ou “quyri”, tipo de clava mais curta que o normal[35], era bastante apreciado pelos cabras “jogadores de cacete” no Ceará, e, segundo Irineu Ferreira Pinto, foi esta peça que o exército jardinense utilizou durante a rebelião de Joaquim Pinto Madeira, em 1831:
Este padre morava no Jardim do Ceará e era conhecido pelos (sic) alcunhas de PADRE PENCA ou BENZE CACETE porque gostava de pedir penca de bananas e havia benzido uma capoeira proxima a sua residencia, para que os QUYRIS tivessem força sufficiente de quebrar as costellas dos brasileiros amigos da Constituição e inimigos de Pedro I.[36]   

                   Conta-se que o padre Antônio Manuel de Sousa benzia os porretes trazidos pelos soldados antes das batalhas, para que, assim, lutassem sob os auspícios divinos, tornando-se invencíveis, segundo a crença da época. Este fato foi amplamente aproveitado pelos liberais, que, lançando mão de um sistemático processo de ridicularização de seus antagonistas, faziam pilhérias com o vigário Antônio Manoel, apelidando-o, pejorativamente, de “Padre Benze Cacetes[37].
                   O fato é que os cabras, mesmo após a prisão do seu chefe, Joaquim Pinto Madeira, continuaram a resistência armada, conforme se depreende da leitura de uma carta, datada de 14 de fevereiro de 1833, a qual fora remetida pelo padre Carlos Augusto Peixoto de Alencar ao seu primo (o senador Alencar), dizendo-se que, no sul do Ceará: “os cabras malvados, e ladrões jamais deixão de se conservarem insobordinados, e altivos; assassinos, róubos, e ataques a familias inteiras...[38].
                   Outro primo do senador Alencar, o padre Pedro Antunes de Alencar Rodovalho, através de carta escrita no dia 13 de março de 1833, informou que a única solução para o estado em que se encontrava o Cariri era criar a “Província do Crato” e, caso isso não viesse a ocorrer, “intregasse logo aos Cabras para formarem nelle seo Imperio[39].
                   Noutra carta, também dirigida ao mesmo Senador, desta vez, redigida por José Ferreira Lima Sucupira (cunhado de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe), na data de 23 de maio de 1833, revela-se que, mesmo após as prisões de Pinto Madeira e do padre Antônio Manoel de Sousa, os cabras, em boa parte do território do Cariri cearense, estavam “inteiramente independentes”, não reconhecendo as autoridades oficialmente constituídas[40].
                   Mas o que significava ser “cabra”? No início do século XVIII, em 1712, o primeiro grande dicionário da língua portuguesa, de autoria do padre europeu D. Rafael Bluteau, diz que “cabra” era o nome que os portugueses deram aos índios pelo fato de os terem encontrado ruminando erva de bétel, que sempre traziam à boca[41]. Contudo, o padre não indica se este “índio” era o da Índia ou o da América.
Definição de "cabra", segundo o padre Bluteau, em publicação de 1712
                  Diferentemente, outro antigo dicionário, de autoria de um brasileiro residente nas proximidades da costa, Antônio de Moraes Silva, publicado em 1789, descreve que cabra era “o filho, ou filha de pái mulato, e mãi preta, ou as avessas[42].  Neste mesmo sentido, em 1838, opinou o inglês George Gardner, quando de passagem pelo Nordeste do Brasil[43]; o que também foi endossado pelo potiguar Luís da Câmara Cascudo, já no início do século XX[44].
Definição de "cabra", de acordo com Antonio de Moraes Silva, 1789
                    Os lugares das habitações da maioria destes lexicógrafos, qual seja, o litoral e a zona da mata, ajudam a entender o porquê do conceito adotado por eles em relação ao “cabra”, pois, nas regiões citadas, o processo de invasão do “branco” havia se dado nos idos de 1500, o que, naturalmente, contribuiu para um antigo e relativo despovoamento indígena da costa. Além disso, sabe-se que, com a proibição da escravização dos autóctones, a mão de obra nas zonas açucareiras era suprida com negros trazidos da África, possibilitando um maior intercurso sexual entre tais etnias: brancos, negros e mulatos.  
                   No entanto, esse conceito não é único, muito menos absoluto, pois outros autores apontam uma definição diferente para a palavra “cabra”, indicando que, na composição deste tipo étnico, também havia os antigos povos nativos do continente Americano, isto é, os índios.
                   Gustavo Barroso, por exemplo, ao tratar de uma categoria de criminosos que infestaram os sertões nordestinos até meados do século XX, define o cabra como sendo fruto da miscigenação entre o índio e o negro, nos seguintes termos: “Do negro e do índio veio o cafuz ou, melhor, o cabra[45]
                   De maneira semelhante, porém mais ampla, posicionou-se Irineu Pinheiro ao tratar dos cabras do interior nordestino, mais especificamente os do Cariri cearense, revelando que, nas origens destes indivíduos “mestiços”, estava o elemento indígena misturado ao branco e/ou ao negro:

Em todo o Cariri eram as classes inferiores compostas de elementos ignorantes, analfabetos, em que dominavam os cabras, mestiços do negro e do branco ou originários do cruzamento dessas duas raças com o elemento indígena. Eram os cabras, em geral, rixosos, turbulentos. Exímios jogadores de pau, não raro acabavam a cacete, as feiras das cidades, das vilas, dos povoados. No Crato e em outros municípios caririenses, certos donos de sítio, ou de engenho protegiam aqueles que lhes eram moradores. Estabeleciam-se entre os cabras de um sítio e os de outro, ou entre os dos brejos e os dos pés de serra, rivalidades determinadoras de lutas, em que dominava uma arma terrível: o cacete. Mas sempre encontravam os desordeiros a proteção dos donos de engenho a quem pertenciam. Cabras caceteiros houve, cujas façanhas ainda se rememoram, em noites enluaradas, no chão batido dos terreiros das casas dos sítios, ou das fazendas.[46]   
                        
                   É perceptível que esta definição não revela apenas a composição cromossômica deste grupo chamado de cabras, mas vai além, traçando aspectos relacionados aos costumes e tradições dos ameríndios, como, por exemplo, o uso da clava de jucá que, por conseguinte, serve para identificar as práticas guerreiras desses mestiços. Não bastasse, Irineu Pinheiro também descreve as classificações populares dadas aos cabras, entre o final do século XIX e início do século seguinte, verbo ad verbum:
Havia ainda no Cariri os cabras de confiança, cabras bons, sempre prontos a defender pelas armas os patrões, ou a executar-lhes os serviços, de que os incumbiam, contra inimigos políticos, ou particulares. Metiam-se em infucas arriscadas com o mais solene desprezo da vida. Nesses mestiços a quem, no interior, se chamam cabras, há, certamente, em apreciável porcentagem, um bem acentuado fundo de crueldade. E o conceito que deles faz o povo, conceito traduzido na sugestiva expressão: cabra, cobra é a mesma coisa.[47]

                            Em publicações do jornal “O Araripe”, impresso na cidade do Crato (de 1855 a 1865), também são encontradas algumas referências aos cabras, os quais, por vezes, são apontados entre os escravos foragidos. Numa destas edições de “O Araripe”, datada de 1855, é possível obter subsídios para melhor entender o conceito de cabra naquele tempo e lugar:

Ao abaixo assinado figurão dois escravos, em Janeiro de 1846, e forão em demando do Rio S. Francisco, de onde vierão veridicas noticias: os escravos tem os signaes seguintes. Antonio, cabra filho de tapuia com mulato, hade ter a idade de 38 anos, oficial de carpina, e sapateiro, sabe ajudar missa, e algua coiza lẽr: esse escravo consta axar se vendido por um velhaco, ao Coronel Ernesto da Costa Medrado: o outro escravo tambem se xama Antonio, cabra trigueiro, filho de uma molata com negro, é alto em porpoções, tem o rosto redondo, meia barba, dentes limados, pernas grossas, ár devoto, canhoto, e é amigo de contar istorias a meninos: Da se 50$. de gratificaçaõ a quem caturar a qual quer desses escravos, e os entregar ao seo legitimo dono, que é o abaixo assignado morador no sitio curraés do termo da cidade do Crato. Curraes 5 de 9br.o de 1855. Joaquim Antonio Biserra de Meneses.[48]

                   Mesmo com base nesses elementos, a questão ainda permanece meio indecisa, pois, segundo o texto, o cabra poderia ser resultado da miscigenação entre o índio (tapuia) e o mulato ou entre este e o negro. Mas, em outra edição do mesmo jornal, de 1856, lê-se num dos anúncios sobre escravos foragidos a citação a um “cabra fulo, misturado com cabouculo” que havia se evadido na companhia de uma mameluca, fato que, de certa forma, reforça a participação dos indígenas na formação do conceito sobre o cabra no Cariri. Dessa feita, assim era descrita a notícia no referido hebdomadário cratense:

O abaixo assignado faz saber ao publico, que no dia 26 do corrente mes fugira do sitio Riacho do Meio na freguesia de Barbalha, o escravo Manoel, de idade 25 annos pouco mais ou menos, cabra bem fulo, misturado com cabouculo, altura e grossura regular, cabeça grande, cabellos pretos e estirados porem grossos, barba quasi nenhuma, falto de dentes da frente, pernas finas, peis regular, os calcanhares bem rachados: comduzio comsigo uma mulher e a valia-se não se apartar della, a qual é mameluca, idade de 30 e tantos a 40 annos, baxasinha, cabelo preto e caxiado; quem aprehender dito escravo e o levar a casa do annunciante serà bem recompençado. Riacho do Meio 29 de Julho de 1856. Sebastião Rodrigues da Gama e Silva. [49]       
                   Conforme escreveu Clerot, no Brasil, os termos “Caboculo”, “caboclo” ou “caboco” (do tupi, “o que vem do mato”)[50] eram usados para fazer referência aos indígenas, no entanto, desde 1755, o Rei de Portugal havia proibido que o “vassalos” fossem tratados por este vocábulo em razão da carga pejorativa que a dita terminologia havia adquirido ao longo do tempo bem como pela intenção de incentivar os casamentos entre brancos e índios[51].     
                   Ainda, na investigação sobre o conceito do que eram os cabras, sob o critério do espaço geográfico e do tempo em que se inseriam estes sujeitos, constata-se que, no interior cearense, no início da segunda metade do século XIX, o termo “cabra” era aplicado com dúbio sentido, qual seja, para ofender pessoas “brancas” ou para se referir aos descendentes dos índios, conforme registrou em seu diário o médico Francisco Freire Alemão, em 1861, quando esteve em visita a esta parte do País:

Ontem ainda tivemos ocasião de observar como [se] emprega aqui as palavras corno, corna, corninho, corninha nos próprios filhos. O Sr. Raimundo (homem branco distinto do lugar), brincando com uma filhinha de ano, [fl. 223] dizia muitas vezes: “Essa corna, esta corninha”. Em outras ocasiões tenho ouvido senhoras brancas chamarem as filhas cunhã. “Vai ver aquela cunhã”, ou “aquela cunhãzinha que está chorando”. Aos descendentes dos índios chamam cabras (os cabras, a cabralhada, a cabraria, cabroeira, cabreirada etc.), ao homem branco que se porta mal chamam cabra, ao inimigo, ao desafeto igualmente, cabra safado, denominação de desprezo.[52]    

                   Assim, tal apontamento de Freire Alemão permite conhecer mais a fundo o sentido que possuía a palavra cabra em meados do século XIX, no Cariri cearense, pois, estando o autor imitido naquele espaço-tempo e convivendo com os habitantes do local, pôde relatar como se dava a prática do uso da referida terminologia.    

Conclusão

                   Pelo exposto, conclui-se que a terminologia “cabra”, para definir pessoas ou grupos humanos na então capitania do Ceará, já era utilizada desde o século XVIII, passando ao século seguinte, aparentemente, com a mesma semântica. Paralelamente, nota-se que, por todo este período, os ditos cabras desempenhavam papéis beligerantes dentro da sociedade cearense, praticando, na ótica dos códigos de natureza penal, “crimes” contra o patrimônio e contra a vida, às vezes, manipulados por chefes locais, noutras, guiados pela própria vontade.
                   Igualmente, deduz-se que a expressão “cabra”, no Cariri cearense, nos séculos XVIII e XIX, referia-se ao indivíduo de ascendência indígena, puro ou mestiço; livre, liberto ou escravo; de qualquer sexo ou idade; geralmente, oriundo das classes, economicamente, menos favorecidas. No entanto, no final do século XX, o dito vocábulo sofre mudança semântica e perde os sentidos de dicriminação social e de beligerância bem como o sentido pejorativo de cunho étnico-racial, passando a ser usado, mais comumente, para substituir as palavras indivíduo, sujeito, homem, menino (cabinha), menina (cabrocha), etc.
                   Nota-se também que o conceito de cabra surgiu pela visão e dicção dos grupos de ascendência europeia para fazerem menção aos “mestiços” resultantes do intercurso sexual entre pessoas de várias etnias, os quais, à época, ainda não possuía definição dentro do vocabulário formal luso-brasileiro. 


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

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REVISTAS:
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JORNAIS CONSULTADOS:
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DOCUMENTOS:
Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Brasil – Ceará, Crato, 1821, agosto, 22, Crato: OFÍCIO do ouvidor do Crato, José Joaquim Correia da Costa Pereira do Lago, ao presidente das Cortes Gerais de Lisboa [João Batista Filgueiras], sobre os acontecimentos decorridos naquela vila em função do juramento da Constituição. CTA: AHU-CEARÁ, cx. 19, doc. 21. CT: AHU_ACL_CU_017, Cx. 22, D. 1318.
_______. Pernambuco, 1738, março, 31, Recife: REQUERIMENTO da viúva do doutor Manoel da Fonseca Marques, Gracia da Cruz e Silva, ao rei [D. João V], pedindo a prisão do sargento-mor Miguel Carneiro da Cunha, natural de Aquirás, Ceará Grande, mandante do assassinato de seu marido, Manoel da Fonseca Marques, e que se encontra refugiado em um engenho na Várzea, pertencente a parentes. AHU_ACL_CU_015, Cx. 51, D. 4528.
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Artigo publicado na Revista Itaytera nº 48, de 2019, da página 181 à 203. Ao utilizar este material, por favor, cite a fonte, de acordo com a Lei de Direitos Autorais nº 9.610/1998!



[1] IRFFI, Ana Sara Cortez. Capítulos de História Social dos Sertões. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura Editorial, 2017, p. 73.
[2] Ibidem, p. 74.
[3] Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Brasil – Pernambuco, 1738, março, 31, Recife: REQUERIMENTO da viúva do doutor Manoel da Fonseca Marques, Gracia da Cruz e Silva, ao rei [D. João V], pedindo a prisão do sargento-mor Miguel Carneiro da Cunha, natural de Aquirás, Ceará Grande, mandante do assassinato de seu marido, Manoel da Fonseca Marques, e que se encontra refugiado em um engenho na Várzea, pertencente a parentes. AHU_ACL_CU_015, Cx. 51, D. 4528.
[4] Memória Colonial do Ceará, 1726-1731. Tomo 2. Kapa Editorial, 2011, p. 175.
[5] Em Juazeiro do Norte/CE, no ano de 1911, um documento oficial fora escrito pelas autoridades dos municípios caririenses, o “Pacto dos Coroneis”, sendo que, no seu artigo 7º, admitiu explicitamente que a política regional era feita com o apoio militar dos “cangaceiros”, os quais, em nossa concepção, são o resultado da transformação dos referidos “cabras” (MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte: uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri cearense. Fortaleza: Univerrsidade Federal do Ceará, 1990, p. 137).
[6] Revolução de Pernambuco em 1817. Relação dos Réus presos existentes na Cadeia da Relação da Bahia. Biblioteca Digital Luso- Brasileira. Disponível em: <https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/38002>. Acesso em 23 de jun. de 2018, às 14h30min. Ver também: MACÊDO, Heitor Feitosa. A Revolução de 1817 no Ceará. Rio de Janeiro: Revista Terra de Sol, Ano V, nº 5º, 2017, p. 46 e 47.
[7] MACÊDO, Heitor Feitosa. Sertões do Nordeste: Inhamuns e Cariris Novos, Volume I. Crato – CE: A Província, 2015, p. 277.
[8] BEZERRA, Antonio. Algumas Origens do Ceará. Fortaleza – CE: Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 185 e 233
[9] A enfiteuse ou aforamento é um contrato bilateral e oneroso, no qual, por ato inter vivos ou por disposição de última vontade o proprietário do imóvel confere, perpetuamente, a outrem o domínio útil deste, mediante pagamento de uma pensão anual, invariável, chamada de foro. O proprietário tem o domínio direto do imóvel e o enfiteuta, ou foreiro, possui o domínio útil. Destaque-se que o Código Civil de 2002, no seu art. 2.038, aboliu a instituição de novas enfiteuses e subenfiteuses (ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Acquaviva. São Paulo – SP: Editora Rideel/ABDR, [2007-2010], p. 342.
[10] Segundo o Padre Gomes: “Informação em torno da compra por Tristão Gonçalves Pereira de Alencar (ainda não juntara Araripe ao nome) do Sítio Lameiro, 27-3-1811, neste município, a Matias Ferreira de Holanda e sua mulher, Maria Teixeira de Carvalho, que o tinham adquirido de dona Rita da Luz, que, por sua vez, obtivera-lhe o domínio útil da câmara da vila do Crato” (ARAÚJO, Padre Antonio Gomes de. A Cidade de Frei Carlos. Crato ‒ CE: Faculdade de Filosofia do Crato, 1971, p. 48).
[11] Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Brasil – Ceará, Crato, 1821, agosto, 22, Crato: OFÍCIO do ouvidor do Crato, José Joaquim Correia da Costa Pereira do Lago, ao presidente das Cortes Gerais de Lisboa [João Batista Filgueiras], sobre os acontecimentos decorridos naquela vila em função do juramento da Constituição. CTA: AHU-CEARÁ, cx. 19, doc. 21. CT: AHU_ACL_CU_017, Cx. 22, D. 1318.
[12] Ibidem, fl. 02v.
[13] BRÍGIDO, João. Apontamentos para A História do Cariri. Fac-símile da ed. de 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2007, p. 102.
[14] THÉBERGE, Dr. Pedro. Esboço Histórico sobre a Província do Ceará. Fac-símile da ed. de 1869. Tomo II. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 40.
[15] Arquivo Histórico Ultramarino, CEARÁ, CRATO, 1821, agosto, 22. Op. cit.
[16] PRUDÊNCIO, Antônio Ivo Cavalcante. Heróis da Solidão: Províncias do Norte ‒ 1817 a 1824. Fortaleza/CE: Gráfica e Editora Royal, 2011, p. 193 e 194.
[17] Revista Trimestral do Instituto Histórico e Etnográfico do Brasil (IHGB). Tomo XLVIII. Parte I. Rio de Janeiro: 1885, p. 308 a 310. Disponível em: <https://ihgb.org.br/publicacoes/revista-ihgb/itemlist/filter.html?searchword438-from=1885&searchword438-to=1885&moduleId=219&Itemid=174>. Acesso em 28 de jun. de 2018, às 12h19min.
[18] Ibidem, p. 293.
[19] Ib., p. 345 e 346.
[20] Ib., p. 360 e 361.
[21] Ib., p. 267.
[22] THÉBERGE, Dr. Pedro. Esboço Histórico sobre a Província do Ceará. Tomo II. Op. cit., p. 112.
[23] Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). A Confederação do Equador no Ceará: manuscritos, Volume 2. Fortaleza/CE: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2005, p. 142 e 143.
[24] Ibidem, p. 202.
[25] Ib., p. 253.
[26] Ib., p. 249.
[27] Ib., p. 265.
[28] Ib., p. 269.
[29] THÉBERGE. Pedro. Esboço Histórico sobre a Província do Ceará. Fac-símile da ed. de 1869. Tomo III. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 86.
[30] A palavra tupi “jucá” ou “Yucá” significa: ferir, matar (CLEROT, Leon F. R. Glossário Etmológico Tupi/Guarani. Brasília: Edições do Senado Federal, 2011, p. 299).
[31] A “ibirapema”, “Iwera Pemme” ou “Iwera Pome”, foi descrita pelo alemão Hans Staden, o qual foi refém dos índios tupinambás no Brasil, no século XVII (STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Salvador/Bahia: Livraria Progresso, 1955, p. 248 e 249). Ver também: FERNANDES, Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. 3ª ed. São Paulo: Editora Globo S.A., 2006, figuras 4 e 26. 
[32] CABRAL, Tomé. Dicionário de Termos e Expressões Populares. Fortaleza/Ceará: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1973, p. 171.
[33] PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. 2ª ed. Fortaleza/Ceará: Editora IMEPH, 2011, p. 31.
[34] FIGUEIREDO FILHO, J. de. Engenhos de Rapadura do Cariri. Fac-símile da edição de 1958. Fortaleza: Edições UFC, 2010, p. 62.
[35] Gustavo Barroso anotou que: “Quirim é o cacete meio curto, feito de uma vergôntea de duro e fortíssimo jucá, assada, de canela de veado, cheia de estrias, de negra maçaranduba ou coração-de-negro” (BARROSO, Gustavo. Terra de Sol. 8ª ed. São Paulo: ABC Editora, 2006, p. 105). Tomé Cabral registra que “Quiri – sm. – Cacête pequeno” (Op. cit., p. 658).
[36] PINTO, Irineu Ferreira. Datas e Notas para a Historia da Parahyba, Volume II. Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1916, p. 120.
[37] FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri, Volume III. Crato/Ceará, Faculdade de Filosofia do Crato, 1964, p. 21.
[38] Correspondência Passiva do Senador José Martiniano de Alencar. Rio de Janeiro: Anais da Biblioteca Nacional, 1966, p. 253.
[39] Ibidem, p. 153.
[40] Ib., p. 198.
[41] BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra: Collegio das Artes da Comapanhia de Jesus, 1712, p. 21.
[42] SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo Primeiro A=K. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 207.
[43] GARDNER, George. Viagem ao Interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Editora da Universidade do São Paulo, 1975, p. 27.
[44] CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1972, p. 212.
[45] BARROSO, Gustavo. Heróis e Bandidos: os Cangaceiros do Nordeste. Rio ‒ São Paulo ‒ Fortaleza: ABC Editora, 2012, p. 52.
[46] PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. 2ª ed. Fortaleza/Ceará: Editora IMEPH, 2011, p. 31.
[47] Ibidem, p. 34.
[48] O Araripe, nº 19, sábado, 10 de novembro de 1855, p. 04. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=213306&pesq>. Acesso em 24 de jun. de 2018, às 11h15min.
[49] O Araripe, nº 55, sábado, 02 de agosto de 1856, p. 04. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=213306&pesq>. Acesso em 24 de jun. de 2018, às 11h15min.
[50] CLEROT, Leon F. R. Glossário Etmológico Tupi/Guarani. Brasília: Edições do Senado Federal, 2011, p. 109)
[51] O conteúdo deste alvará pode ser visto em: Registro de Autos da Ereção da Vila de Monte-mor o Novo da América, Parte I, Revista do Instituto do Ceará, Tomo V, Fortaleza ‒ Ceará, 1891, p. 86.
[52] ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2011, p. 454 e 455.