O Conceito de Cabra no Cariri
Cearense nos Séculos XVIII, XIX e XX
Clarissa
Miranda Norões
(advogada)
e
Heitor
Feitosa Macêdo
(advogado
e pesquisador)
Neste artigo, procuramos
discutir a definição do termo “cabra”
atribuído a pessoas ou determinados grupos humanos em algumas regiões
brasileiras, especialmente no Cariri cearense, sul do Estado do Ceará, entre os
séculos XVIII, XIX e XX. Atualmente, a definição de “cabra” é considerada, por
alguns, como categoria, e, por outros, um conceito. Segundo nos aponta
documentação consultada para esta proposta, encontra-se registro escrito do
referido termo desde o início do século XVIII, na então capitania do Ceará
Grande, espaço em que estava contido o Cariri cearense. Assim, para tentar
encontrar a(s) verdadeira(s) semântica(s) do vocábulo “cabra” no espaço-tempo
citado, analisaremos algumas narrativas veiculadas em jornais, documentos
manuscritos, revistas e obras historiográficas.
Dança do Maneiro Pau, na Praça da Sé, em Crato/CE, em data anterior a 1962. Fonte: "O Folclore no Cariri", J. de Figueiredo Filho |
Na região denominada de
Cariri Cearense, sul do Estado do Ceará, ainda é comum ouvir-se os termos “caba” (cabra), “caba bom”, “caba ruim”, “caba safado”, “caba véi” (cabra velho), “caba
danado”, “cabra da peste”, “caba macho”, “caba caceteiro”, “cabrocha”,
“cabinha”, etc., para definir pessoas
ou grupos humanos, nem sempre em sentido pejorativo. Sobre isto, importa saber
quando surgiu esta classificação, quem eram os cabras e se houve alguma mudança
semântica da referida palavra ao longo do tempo.
Examinando trabalhos
especializados, aparece o estudo de Ana Sara Cortez Irffi, cuja proposta foi
analisar o conceito de cabra usado no Cariri cearense durante o século XIX. A
referida historiadora afirma que o “desenho
dessa categoria” teria sido “forjado
ao longo dos oitocentos e parte do século seguinte” e que “passava pela ideia de que tinha um sentido
geográfico, entendendo o cabra como sertanejo do Cariri cearense, assim como o
caboclo se referia ao Norte do Brasil”[1].
Esta mesma pesquisadora
acredita que a definição de cabra, construída durante o século XIX, estava
ligada, inicialmente, às condições de vida da população camponesa caririense,
sendo que a dita palavra se referia à categoria de “homens e mulheres pobres e de cor, fossem eles livres, libertos ou
escravos”.
Irffi também afirma que o
emprego do vocábulo cabra consistia em uma categorização construída pela dicção
do dominador para se referir ao dominado e que isto foi “reforçado”, sobremodo, a partir da Revolta de Pinto Madeira, de 1831
a 1832, pois, segundo ela:
Nesse
sentido, o que mais marca os camponeses é, mesmo sob iguais condições, a
ausência de uma identidade coletiva forte, no entanto, outro fenômeno: a
construção de uma definição: cabras,
que não pressupõe identidade, mas se mostra como uma categoria de referência e
identificação empregada por pessoas que se consideram alheias a essa definição.
Uma categorização de fora para dentro, ou de cima para baixo, reforçada,
sobretudo, a partir dos anos de 1831 e 1832 (...). Após os acontecimentos dos
anos de 1831 e 1832, que ficaram conhecidos como a revolta de Pinto Madeira, a
tranquilidade pública no Cariri cearense passou, em diversos momentos, a ser
sobressaltada pelo medo de uma nova irrupção da rebelião (...). Desses
acontecimentos em diante, os moradores livres e pobres do Cariri cearense
ficaram conhecidos como cabras e
entendidos como predispostos a revoltas e motins.[2]
Diante
disso, cabe indagar se o conceito e categoria de cabra realmente surgiram
nestas circunstâncias, dentro do tempo e espaço citados, ou seja, se a
consolidação dessa definição realmente partiu de uma visão dominadora no Cariri
cearense a partir da Revolta de Pinto Madeira.
No Ceará, desde a primeira
metade do século XVIII, os cabras já eram citados nas “devassas” e “correições”
(espécies de inquéritos policiais e processos judiciais) por terem participado
de homicídios e conflitos armados ocorridos na década de 1720.
No ano de 1727, por exemplo,
ao sair da casa do juiz leigo de Aquiraz/CE, o doutor Manoel da Fonseca Marques
foi assassinado em uma emboscada. A viúva da vítima disse que o mandante teria
sido o sargento-mor Miguel Carneiro da Cunha, pelo fato de o doutor Manoel da
Fonseca ter se recusado a defendê-lo numa causa. Entre os acusados do crime,
apontam-se alguns índios (“tapuios do
Miguel Carneiro da Cunha”) e um “cabra”
de Sebastião Pedroso chamado Ascenso, conforme o requerimento da viúva Gracia
da Cruz e Silva ao Rei Dom João V:
Sn.or.
Em Sinco de Fevr.o do anõ de 1727. vindo de caza do ouv.or
Leigo em a Villa dos Aquiras Com.ca do Siarã g.de meo
marido o def.to D.or M.el da Fon.ca
Marques õ. mataraõ no caminho a treiçaõ. pellas nove horas da noite com hum
tiro. eq.m õ m.dou matar foi o Sarg.to mor
Miguel Carn.ro daCunha por od.to D.or õ naõ
querer̃. defender em huma cauza de que proçederaõ. Alguas razoẽs e Logo a
omesmo D.or ameasou od.to Sarg.to mor oq.al
he n.al deste Pern.co emora no Pirangi Cap.tnia
do Siarã g.de epor hora com receio do dez.or Sẏndic.te
Ant.o Marques Cardozo se auzentou dellã e emg.o que foi
de seo Paẏ o Capp.am mor. M.el Carnr.o
daCunha em avarge tres Legoas mais ou menos desta Villa onde asiste com os seos
irmaõs ou primos e com m.ta cautela. q.m comcorreo p.a
ad.a morte foi Seb.am Podrozo n.al de Sergipe
del Reẏ Cap.tnia da B.a mor.or agora no
boqueiram̃ de Jagoaribe destrito domesmo Siarã gr.de pello d.to
des.to ser comtra elle em huma cauza que defendia ao Coronel Joaõ de
Barros Braga q.m foi vigiar aod.to defunto em caza do d.to
ouv.or Leigo euejo dar parte ao tapuẏo do d.to
Sarg.to mor eao cabra de Seb.am Podrozo que estavaõ. no
caminho esperando que paSsasse meo def.to marido foi hum moço por
nome M.el Martins̃. viana eo Teixeirinha todos socios do d.to
Sarg.to mor por este lhesdar sinco poldros e vinte sinco mil Reis
Pareceme q̉. ouvẏ dizer setirou devaSsa eq od.to Sarg.to
mor por ser am.o do d.to ouv.or Leigo
subornara astest.as della como poderozo naquella Cap.tnia
q.m sahio sõ pronunçiado nadeuasa ouvẏ tambem dizer que foi o d.to
Seb.am Podrozo eoseo cabra p̃: nome Assenso [fl. 01].[3]
Na
apuração de inúmeras infrações criminais cometidas no Ceará, os magistrados da
época indigitaram vários indivíduos num rol de criminosos, elaborado em 1730,
no qual são encontradas referências diversas a conceitos étnico-raciais, como,
por exemplo, os vocábulos “negros”,
“pretos”, “crioulos”, “gentios da Guiné”, “mulatos”, “pardos”, “mestiços”,
“índios”, “caboclos”, “tapuias”, “mamelucos”, “curibocas” e outros. No
entanto, o mais interessante neste rol é a menção a um tal de Pascoal Barbalho,
classificado no referido documento como “cabra”
e considerado culpado pela morte de Manoel da Fonseca, segundo reza o texto: “Pascoal Barbalho, cabra culpado na morte a
Manuel da Fonseca”[4].
Aparentemente, a figura do
cabra e o seu conhecimento bélico haviam sido aproveitados pelas elites locais,
de ascendência europeia, desde os primeiros conflitos armados no Cariri
cearense como estratégias de sobrevivência e/ou domínio. Neste espaço, os
cabras eram a base dos exércitos, públicos ou privados, sendo fundamentais para
decidir os rumos políticos do sertão caririense de outrora[5].
No início do século XIX, no
Cariri, também são encontrados registros que indicam o envolvimento dos cabras
em conflitos políticos, como, por exemplo, na chamada Revolução Pernambucana de
1817, a qual também foi deflagrada nas vilas de Crato e Jardim. Nos autos
processuais que apuraram a participação dos “revoltosos” (liberais/republicanos) no referido movimento, são
citados sete “cabras do Lameiro”,
quais sejam: Antônio da Costa, Antonio Alves Carneiro, Félix Carneiro, Joaquim da Costa, Manuel da
Costa, Manuel da Silva e Miguel Justo[6].
Deve ser acrescentado que o
Sítio Lameiro, no século XVIII, fez parte do território da Missão do Miranda, espécie
de aldeamento artificial formado por índios e fundado pelo frei italiano Carlos
Maria de Ferrara. No entanto, pouco tempo depois de esta aldeia ter sido
elevada à vila (Real Vila do Crato, em 1764)[7]
por determinação do Marquês de Pombal, os índios nela aldeados foram
transferidos para o litoral, no ano de 1779[8],
ficando as terras da antiga missão sob o domínio útil da Câmara do Crato, na
qualidade de terras foreiras, as quais poderiam ser cedidas a terceiros por
meio de enfiteuse[9].
No Lameiro era encontrada, ao
sopé da chapada do Araripe, uma das maiores fontes d’água de toda a vila
cratense, nas cabeceiras do Rio Itaytera, atualmente conhecido por Rio
Batateira, lugar sobre o qual ainda hoje pairam tradições indígenas e
resquícios de ali ter havido antiga habitação de gente de ascendência africana.
O fato é que o Lameiro, em
1811, veio a ser comprado por um indivíduo pertencente às elites locais,
Tristão Gonçalves Pereira de Alencar (ou Tristão Gonçalves de Alencar Araripe)[10],
filho de Bárbara Pereira de Alencar e um dos chefes da Revolução de 1817 no
Cariri.
Algum tempo depois do
movimento liberal de 1817, na vila do Crato, os cabras, juntamente com os “mulatos”, reaparecem com grande destaque
no episódio relativo à votação e juramento da Constituição Portuguesa de 1821,
realizando protestos violentos contra a adesão dos caririenses à dita Carta
Magna ou a “Lei do Diabo”, e,
aparentemente, sendo manipulados pelas elites locais:
Achava-se comandando a Villa do
Crato, e as forcas desta Comarca, o Coronel de Commissáo e Major de Linha,
Francisco Ferreira de Souza, no mês de Abril, deste ano, e recebendo
participação official do Governador da Província, Francisco Alberto Rubim, de
ter Sua Magestade, por Decreto de 24 de Fevr.o, Aprovado
aConstituiçáo, que fizessem as Côrtes Geraes de Lisboa, quiz publicar por bando
esta fausta noticia, porem recebeo hú Officio da Camara, prohibindo-lhe, no
Real Nome de Sua Magestade, esta publicação; por influencias do Capitáo Mór da
mesma Villa, Jose Pereira Felgueiras, e do Coronel da Cavallaria Miliciana
Leandro Bezerra Monteiro. Foi o dito Coronel Commandante á Camara convocando o
Vigario da Freguezia, e os ditos Capitao Mór, eCoronel de Milicias, os quais
desprezando o parecer do Commandante Geral, e do Vigario; se oppuzerão, dizendo
o Coronel, que antes teria as mãos cortadas, Porque assignar semelhante couza;
apezar, comtudo, desta repugnancia, sempre cederáo de algua forma e
publicou-se. Desta indiscreta oppozição dos ditos chefes, e das expreSsões, que
soltaváo facilm.e e sem reflexão, resultou o persuadir-se [fl. 01] O Povo, deque a Constituição
era má. Em hum dos últimos dias do dito mes concorrêo aos disturbios da Villa
grande numero de Cabras, e Mulatos a
pesquizarem esta novidade e dele murmurando em termos ameaçadores, de sorte que
vendo-se o dito Coronel Comandante sem forças, para se oppôr a qualquer
tentativa dos ditos pardos, e em collizão, recorrêo logo ao Dzor
Jozé Raimundo de Passos de Porbem Barboza, Ouvidor, e Creador, que foi desta
Comarca, o qual se achava na Villa do Icó, encarregado pelo Governador da
Provincia de varias Comissoes importantes, desde que chegou aqui a noticia da
mudança de Governo da Bahia, que se pintou, como huã Revolução formal, e se
tomaraõ medidas em quanto não veio a relação exacta dos factos, e o dito Dez.or
vendo que eu me achava gravem.e: molesto de hua terrível oftalmia,
apesar de conhecer o risco de vida a que se expunha, acceitou a nomeação, que
lhe dei, de Ouvidôr, pela Lei, e, rapidamente, partio p.a a dita
Villa. Antes da sua chegada, no dia 2 de Maio, mais de – 800 – cabras armados assaltaráo aVilla,
dizendo que vinhaó matar oCoronel Command.te Geral, por ter obrigado
o seuCapitaó Mór, eoCoronel de Milicias a assignarem a Lei do Diabo, mas o dito
Coronel Commandante, assim que os avistou, caminhou para eles desarmado, e com
toda... [fl. 02].[11]
Neste
mesmo episódio, contra o juramento da Constituição, destacaram-se dois chefes
políticos, o capitão-mor do Crato José Pereira Filgueiras e o coronel Leandro
Bezerra Monteiro, os quais obtiveram a adesão das classes menos favorecidas com
discursos sobre uma possível ameaça à liberdade dos pardos, cabras e crioulos:
A
intrepidêz, e valor, fez-lhes hua falla, acompanhado do Capitão Mor eCoronel de
Milicias, que acabou dando vivas a ELRey, sem, comtudo, fallar em Constituição.
No dia tres concorrerão outros muitos; mas náo chegarão a entrar na Villa.
Continuarão as dous chefes nas suas demonstrações de desagrado contra a
Constituição, dizendo que ELRey a tinha Approvado, e Jurado, constrangidamente,
ao que se seguirão boatos e dictos capazes de amotinar mais emais, os ditos
pardos, cabras, e crioulos, de que
há grande numero naquelle districto, e na Villa do Jardim, que he limitrofe,
sendo o que mais impressáo lhes fazia, e de ficarem todos, pela nova Lei,
reduzidos ao captiveiro, e de ser ella contra a Nossa Religião [fl. 2v][12].
No
Cariri, entre os séculos XVIII e XIX, estes cabras, ao lado dos mulatos, pardos
e crioulos, faziam parte de uma classe de pessoas livres, que, armados, atuavam
junto às elites locais nas tomadas de decisões de cunho político.
Ressalte-se que, à época,
tais indivíduos também eram conhecidos como “Cerca-igrejas”[13]
ou “Cercadores de Igrejas”[14],
o que se dava pelo fato de as atividades eleitorais ocorrerem dentro dos
templos católicos. Para ilustrar esta afirmativa, cite-se o ataque
protagonizado pelos cabras da Serra de São Pedro (atual município de Caririaçú)
à Igreja Matriz da vila do Crato, no dia 5 de agosto de 1821:
No
dia 5 do corrente prestei o Juramento á Camara, ao Cap.m Mór,
Coronel de Milicias e grande numero de concurrentes, e tudo na caza da Camara
debaixo de hú muito Recente docel o Retrato de S.Magestade, e deráo-se
repetidos Vivas á Religiaó, a ELREY, ao Serenissimo Senhor Principe Regente, a
Real Disnastia de Bragança, as Cortes, e á Cosntituiçaõ que foráo respondidos
com enthuziasmo, e Salvas de hua Comapanhia de Milicias. Estava na Igreja com
aCamara, e mais Authoridades Ecleziasticas, Civis, e Militares, e já exposto o
Santissimo Sacramento, quando se ouviráo gritos e marchando de repente
oSargento-Mór de Milicias [fl. 05] Jozé
Victoriano Maciel a vér o que era, apenas chegou á porta travéssa, hú Cabra lhe descarregou hua grande
pancada na cabeça, que o deixou atordoado, outro correu=lhe uma estocada, que o
não varou, por lhe fugir com o corpo, outro disparou-lhe hú tiro, que o ferio
gravem.e no braço direito, mas neste mesmo estado investiu para
todos, com a maior intrepidez, e dezembaraço, do que atemorizados fugirão para
onde estaváo mais de 50 camaradas armados, havendo maior numero em outras
distancias. Em vão gritei ao Coronel, e Ten.e Cor.el que
socorressem aquelle seu Official que de certo o assassinavão, mas nem elles,
nem Official algum se movêo, e menos os soldados da guarda, e apenas o Cap.m
Mór sahio depois a apaziguálos, encontrando só dous, que ameaçou e naó prendêo.
Grande foi aConfusaõ na Igreja, e todos fugirão. Constou que os Cabras se propunháo a matar o pregador,
e atirara aos Assistentes, por saberem que na quelle dia se começara a Elleiçáo
Parochial, e supposto se retiraráo timoratos, hiáo dizendo, que á noite
voltavaó mais bem acompanhados. Pasmei de saber a falta de providencias dos
dous Cheffes, para aquelle dia [fl. 05v]
e entrei em desconfiança, pois sabia que elles pertendiaó atribuir ao Povo
aquilo mesmo, que tinháo motivado no principio, com o seu pernicioso exemplo, e
notificaçoes sediciosas, pois hé certo que aonde os Capitaes-Móres, eCoroneis
obedeceráo logo, os Povos seguiráo de bom grado, e sem hezitaçaó, o que se lhe
determinou. Pedi com instancia providencias para atalhar algum rompimento
noturno, mas observei a maior inacçáo, e retirei-me ao anoitecer, acompanhado
do Juiz ordinário, ed’outros m.tos que desampararão aVilla... [fl. 06].[15]
Não bastasse, durante os
conflitos pela Independência do Brasil em relação a Portugal, de 1822 a 1823, o
Cariri cearense também presenciou movimentos armados, onde os cabras figuravam
tanto nos exércitos dos independentistas quanto nas tropas imperiais.
Ao lado disso, sabe-se também
que Joaquim Pinto Madeira, voltando-se contra este movimento de Independência,
montou um exército de cabras sob a alcunha de os “Soldados de Nosso Senhor”, promovendo levantes nas vilas de Lavras,
Crato e Jardim, no dia 14 de abril de 1823[16].
Tal episódio é confirmado por Tristão Gonçalves e José Pereira Filgueiras, em
carta datada de 20 de abril de 1823:
A
machina politica da nossa provincia está dezorganizada. Não resta mais duvida,
que a guerra civil entra a mover seus braços para dilacerar-nos. No Crato
Jardim e Lavras se organiza um grosso partido contra a santa cauza; e já no
Crato se fizerão planos para a reunião de rompimentos de horrorozos attentados,
a ponto de se vêr proxima a instalação de um governo dos Europeos da Barbalha,
de que erão vogaes, Nascimento, Pinto, outros que são por nós bem conhecidos.
No dia 14 do corrente no Crato se levantou um partido furiozo dos soldados de
Nosso Senhor Jezus Christo, como lhe chamão os cabras, e depois de haverem solto um soldado, que ahi se achava
prezo, á ordem do governo, passarão a atacar a caza de José Dias, e
deitando-se-lhe a primeira porta abaixo, fôrão obrigados os moradores a fugir,
tendo antes posto fogo a um barril de polvora, que, levando a caza, não matou a
um só dos malditos. d’isto Joaquim Pinto, e Francisco Pereira atulharão a villa
de um numerozo povo, que de então para cá não se sabe que attentados terão
commettido, pois n’este momento nos chegão aqui algumas pessoas fugidas
d’aquelle logar e só nos annuncião estes factos e a total indispozição contra a
independencia (...) ao menos estamos informados, que os povos do Cariri olhào a
estes homens como para anjos tutelares (...) Icó 20 de Abril de 1823, 2º do
imperio. Jozé Pereira Filgueiras. Tristão Gonçalves Pereira de Alencar.[17]
Contudo, deve ser ressaltado
que nem todos os cabras agiam guiados unicamente pela manipulação de Joaquim
Pinto Madeira e outros realistas, havendo também, nesta revolta da “cabraria desenfreada”[18],
reivindicações de se criar um governo independente, liderado por seus pares,
isto é, pelos mesmos “cabras”. Pelo
menos é o que se pode concluir de outra carta escrita na vila do Icó, por
Filgueiras e Tristão, em 26 de abril de 1823:
Fazem
poucas horas, que officiámos a V.S., fazendo-lhes vêr o estado do centro d’esta
provincia, e determinando-lhes que se dirigissem á esta villa até o dia 27 do
corrente para seguirmos á do Crato, e tomarmos medidas pacificadoras; e n’este
momento acabamos de saber com grande horror e sentimento, que os cabras do Crato e villas vizinhas com o
maior atrevimento fizerão uma revolta, e reunidos em numero de 2.000 e tantos,
proclamarão e se dispoem a fazer um governo a seu molde, declarando a mais
sanguinaria e crua guerra a S.M. Imperial, á independencia e a todos os
patriotas, a cujo epiteto tem execração.[19]
Estes cabras, em diversos
momentos, pretenderam romper com o domínio do Estado luso-brasileiro nas
imediações da Chapada do Araripe, sul do Ceará, porém, à época dos fatos aqui
narrados, interpretou-se, convenientemente, que a dita revolta dos mais de
2.000 cabras[20]
era apenas fruto da “negra conspiração”
dos absolutistas, conforme Tristão Gonçalves e José Pereira Filgueiras
informaram em correspondência do dia 6 de abril de 1823:
...trazem
officios do coronel Jozé Victoriano Maciel bem documentados; os ditos officiaes
nos informárão do estado tristissimo, em que se achão as villas do Icó, Lavras,
Crato e Jardim, que nada differem de uma anarchia, chegando a ponto de haverem
tramado a mais negra conspiração com o projeto de nomearem a manoel Antonio
Diniz seu governador, ao que este não annuio (segundo o que se nos informa).[21]
Todavia, com base nestes
dados, não se pode mensurar com exatidão até que ponto os chefes locais
manipulavam os cabras e até onde estes usavam aqueles para alcançar seus
interesses particulares.
Dando prosseguimento à
investigação sobre a presença desses cabras, vê-se que, em 1824, os liberais,
qual em 1817, tentaram instalar novamente a República em diversas “províncias
do Norte” (termo que, até o início do século XX, englobava a atual Região
Nordeste), inclusive no Ceará. O fato é que, depois de aderir ao referido
movimento, o então presidente provincial, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe,
pretendeu enviar os deputados cearenses para Recife, a fim de que fosse votada
uma Carta Constitucional para as províncias Confederadas. Dessa forma, o
percurso para capital pernambucana deveria feito através do Cariri, para onde
fora enviado copioso armamento por ordem do governo republicano cearense[22].
No entanto, esta “rebelião” também foi sufocada pelos imperialistas, o que
ensejou mais violências no sul do Ceará.
Mesmo após a derrocada dos
Confederados de 1824, os cabras encontravam-se “desenfreados”, usando de pretextos políticos para cometerem crimes
contra as vidas e os bens dos “patriotas”
na província cearense, fato que exigiu das autoridades a adoção de medidas
severas, como o castigo “com roda de pau”:
9br.o
19 [1825] Officio á Manoel Antonio
de Amorim participando-lhe ó de 16 do corr.e o q.to disse
o confirmava a bem publico e segurança individual no direito de propriedade em
todos os tempos Em dacta de 16 do Corrente escrevi largam.te a VS.a
o quanto disse o confirmo o bem publico a segurança individual, e o direito de
propriedade em todos os tempos (...) os Assacinos feitos pellos homens pardos
do seo termo, os quais sem atenção as Leis, e a este Governo tem morto a
quantos querem parece emcrivel que entre humanos se obre desta sorte sem
respeito as Autoridades juncando os campos de cadaveres daqueles que apelidão
Patriotas só por meras paixoens m.to principalmente ao Cabra Francisco Alves que matou e
roubou ao cabo de Esquadra Manoel de Lima, antes do Levantamento das Bandeiras
Impriais, o qual sendo serto semelhante atentado o devera mandar prender e
conduzilo algemado a esta Capital, e os outros Cabras dezemfriados q.e obrarem, despotismos e mesmos
brancos os devera castigar rigorozamente com roda de páo (...).[23]
Neste
mesmo período, as autoridades constituídas mencionam a necessidade de capturar
os “facinorosos” de Quixeramobim,
Campo Grande e, próximo às imediações do sul do Ceará, a “cabralhada da Serra
do Pereira”[24],
bem como o coito de ladrões apelidado de “Peitos Brancos”[25].
Igualmente, o Cariri encontrava-se infestado pelo “sequito faciozo de ladroens, anarquistas”[26].
Ademais, no dia 26 de dezembro de 1824, os “cabras
levantados do centro” (do interior, do sertão) ameaçavam invadir a vila de
Sobral, ao norte da província do Ceará:
Hoje,
pelas 9 horas do dia recebi Officios do Sobral em que se me partecipa q’.
aquella V.a está ameaçada de ser amanhã invadida pelos Cabras levantados do centro, que em
nome de S.M.I. assollão tudo p.r onde transitão, roubando, e
commetendo m.mo alguns assassinios. Ordenei ao Gov.or das
armas Conrado que partisse pela manhã com 100 homens na Escuna Independencia ou
Morte a socorrer e cobrir aquella V.a encarregando-o de restituir p.r
todos os meios possiveis a ordem: espero que no dia 29 do corr.e ali
se achem. Eu não me tenho poupado ás maiores fadigas, e serei contente se
S.M.I. approvar estas medidas a q.m VEx.a levará o
conhecimento deste negocio. D.s G.e a VEx.a
Palacio do Governo do Ceará 26 de Dezembro de 1824 = Ill.mo e Ex.mo
S.r General Lima = Pedro José da Costa Barros.[27]
No
início do ano seguinte, até o dia 29 de março de 1825, a população da província
do Ceará encontrava-se em relativa paz, com exceção dos “cabras do interior”, conforme o testemunho do presidente cearense
José Félix de Azevedo e Sá: “Os
Habitantes desta Prov.a felism.te vivem tranquilos a
exceção dos cabras do interior que tem feito algumas desenvolturas...”[28].
Além
disso, ente 1831 e 1832, por
diversos motivos, Pinto Madeira e o padre Manoel de Sousa lideraram uma
resistência armada no Cariri, a qual, por algum momento, chegou a ser apoiada
por, aproximadamente, 6.000 homens[29],
na maioria, gente do povo, denominada de “cabras”,
cujas práticas bélicas remontavam à logística militar indígena, isto porque, na
falta de armas de fogo, faziam uso do “cacete”,
também conhecido na língua autóctone pelos nomes “jucá”[30]
e “ibirapema”[31],
sendo ainda hoje utilizado na região do Cariri cearense na manifestação
folclórica conhecida por “maneiro pau”.
Ibirapema dos índios Tupinambá. Fontes: "Viagem ao Brasil", do alemão Hans Staden, publicada em 1557 |
Estas clavas de madeira, apesar
da rusticidade pré-histórica, eram muito eficientes nos combates corpo a corpo,
pois os “caceteiros”[32]
levavam vantagem sobre os inimigos que maneavam facões[33],
facas e punhais[34], devido
ao alcance e resistência dos pedaços de jucá temperados ao fogo.
O
“quirim” ou “quyri”, tipo de clava mais curta que o normal[35],
era bastante apreciado pelos cabras “jogadores
de cacete” no Ceará, e, segundo Irineu Ferreira Pinto, foi esta peça que o
exército jardinense utilizou durante a rebelião de Joaquim Pinto Madeira, em 1831:
Este padre morava no Jardim do Ceará e era
conhecido pelos (sic) alcunhas de
PADRE PENCA ou BENZE CACETE porque gostava de pedir penca de bananas e havia
benzido uma capoeira proxima a sua residencia, para que os QUYRIS tivessem
força sufficiente de quebrar as costellas dos brasileiros amigos da
Constituição e inimigos de Pedro I.[36]
Conta-se
que o padre Antônio Manuel de Sousa benzia os porretes trazidos pelos soldados
antes das batalhas, para que, assim, lutassem sob os auspícios divinos,
tornando-se invencíveis, segundo a crença da época. Este fato foi amplamente
aproveitado pelos liberais, que, lançando mão de um sistemático processo de
ridicularização de seus antagonistas, faziam pilhérias com o vigário Antônio
Manoel, apelidando-o, pejorativamente, de “Padre
Benze Cacetes”[37].
O fato é que os cabras, mesmo
após a prisão do seu chefe, Joaquim Pinto Madeira, continuaram a resistência
armada, conforme se depreende da leitura de uma carta, datada de 14 de
fevereiro de 1833, a qual fora remetida pelo padre Carlos Augusto Peixoto de
Alencar ao seu primo (o senador Alencar), dizendo-se que, no sul do Ceará: “os cabras malvados, e ladrões jamais deixão
de se conservarem insobordinados, e altivos; assassinos, róubos, e ataques a
familias inteiras...”[38].
Outro primo do senador
Alencar, o padre Pedro Antunes de Alencar Rodovalho, através de carta escrita
no dia 13 de março de 1833, informou que a única solução para o estado em que
se encontrava o Cariri era criar a “Província
do Crato” e, caso isso não viesse a ocorrer, “intregasse logo aos Cabras para formarem nelle seo Imperio”[39].
Noutra carta, também dirigida
ao mesmo Senador, desta vez, redigida por José Ferreira Lima Sucupira (cunhado
de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe), na data de 23 de maio de 1833,
revela-se que, mesmo após as prisões de Pinto Madeira e do padre Antônio Manoel
de Sousa, os cabras, em boa parte do território do Cariri cearense, estavam “inteiramente independentes”, não
reconhecendo as autoridades oficialmente constituídas[40].
Mas o que significava ser “cabra”? No início do século XVIII, em
1712, o primeiro grande dicionário da língua portuguesa, de autoria do padre
europeu D. Rafael Bluteau, diz que “cabra” era o nome que os portugueses deram
aos índios pelo fato de os terem encontrado ruminando erva de bétel, que sempre
traziam à boca[41].
Contudo, o padre não indica se este “índio” era o da Índia ou o da América.
Definição de "cabra", segundo o padre Bluteau, em publicação de 1712 |
Diferentemente, outro antigo
dicionário, de autoria de um brasileiro residente nas proximidades da costa,
Antônio de Moraes Silva, publicado em 1789, descreve que cabra era “o filho, ou filha de pái mulato, e mãi
preta, ou as avessas”[42]. Neste mesmo sentido, em 1838, opinou o inglês
George Gardner, quando de passagem pelo Nordeste do Brasil[43];
o que também foi endossado pelo potiguar Luís da Câmara Cascudo, já no início
do século XX[44].
Definição de "cabra", de acordo com Antonio de Moraes Silva, 1789 |
Os lugares das habitações da
maioria destes lexicógrafos, qual seja, o litoral e a zona da mata, ajudam a
entender o porquê do conceito adotado por eles em relação ao “cabra”, pois, nas regiões citadas, o
processo de invasão do “branco” havia
se dado nos idos de 1500, o que, naturalmente, contribuiu para um antigo e
relativo despovoamento indígena da costa. Além disso, sabe-se que, com a
proibição da escravização dos autóctones, a mão de obra nas zonas açucareiras
era suprida com negros trazidos da África, possibilitando um maior intercurso
sexual entre tais etnias: brancos, negros e mulatos.
No entanto, esse conceito não
é único, muito menos absoluto, pois outros autores apontam uma definição
diferente para a palavra “cabra”,
indicando que, na composição deste tipo étnico, também havia os antigos povos
nativos do continente Americano, isto é, os índios.
Gustavo Barroso, por exemplo,
ao tratar de uma categoria de criminosos que infestaram os sertões nordestinos
até meados do século XX, define o cabra como sendo fruto da miscigenação entre
o índio e o negro, nos seguintes termos: “Do
negro e do índio veio o cafuz ou, melhor, o cabra”[45].
De maneira semelhante, porém
mais ampla, posicionou-se Irineu Pinheiro ao tratar dos cabras do interior
nordestino, mais especificamente os do Cariri cearense, revelando que, nas
origens destes indivíduos “mestiços”,
estava o elemento indígena misturado ao branco e/ou ao negro:
Em
todo o Cariri eram as classes inferiores compostas de elementos ignorantes,
analfabetos, em que dominavam os cabras,
mestiços do negro e do branco ou originários do cruzamento dessas duas raças
com o elemento indígena. Eram os cabras, em geral, rixosos,
turbulentos. Exímios jogadores de pau,
não raro acabavam a cacete, as feiras das cidades, das vilas, dos povoados. No
Crato e em outros municípios caririenses, certos donos de sítio, ou de engenho
protegiam aqueles que lhes eram moradores. Estabeleciam-se entre os cabras de um sítio e os de outro, ou
entre os dos brejos e os dos pés de serra, rivalidades determinadoras
de lutas, em que dominava uma arma terrível: o cacete. Mas sempre encontravam
os desordeiros a proteção dos donos de
engenho a quem pertenciam. Cabras caceteiros houve, cujas façanhas
ainda se rememoram, em noites enluaradas, no chão batido dos terreiros das
casas dos sítios, ou das fazendas.[46]
É
perceptível que esta definição não revela apenas a composição cromossômica
deste grupo chamado de cabras, mas vai além, traçando aspectos relacionados aos
costumes e tradições dos ameríndios, como, por exemplo, o uso da clava de jucá
que, por conseguinte, serve para identificar as práticas guerreiras desses
mestiços. Não bastasse, Irineu Pinheiro também descreve as classificações populares
dadas aos cabras, entre o final do século XIX e início do século seguinte,
verbo ad verbum:
Havia
ainda no Cariri os cabras de confiança, cabras bons, sempre prontos a defender pelas
armas os patrões, ou a executar-lhes os serviços,
de que os incumbiam, contra inimigos políticos, ou particulares. Metiam-se em
infucas arriscadas com o mais solene desprezo da vida. Nesses mestiços a quem,
no interior, se chamam cabras, há,
certamente, em apreciável porcentagem, um bem acentuado fundo de crueldade. E o
conceito que deles faz o povo, conceito traduzido na sugestiva expressão: cabra, cobra é a mesma coisa.[47]
Em publicações do
jornal “O Araripe”, impresso na
cidade do Crato (de 1855 a 1865), também são encontradas algumas referências
aos cabras, os quais, por vezes, são apontados entre os escravos foragidos.
Numa destas edições de “O Araripe”,
datada de 1855, é possível obter subsídios para melhor entender o conceito de
cabra naquele tempo e lugar:
Ao abaixo assinado figurão dois
escravos, em Janeiro de 1846, e forão em demando do Rio S. Francisco, de onde
vierão veridicas noticias: os escravos tem os signaes seguintes. Antonio, cabra filho de tapuia com mulato, hade
ter a idade de 38 anos, oficial de carpina, e sapateiro, sabe ajudar missa, e
algua coiza lẽr: esse escravo consta axar se vendido por um velhaco, ao
Coronel Ernesto da Costa Medrado: o outro escravo tambem se xama Antonio, cabra trigueiro, filho de uma molata
com negro, é alto em porpoções, tem o rosto redondo, meia barba, dentes
limados, pernas grossas, ár devoto, canhoto, e é amigo de contar istorias a
meninos: Da se 50$. de gratificaçaõ a quem caturar a qual quer desses escravos,
e os entregar ao seo legitimo dono, que é o abaixo assignado morador no sitio curraés do termo da cidade do Crato.
Curraes 5 de 9br.o de 1855. Joaquim Antonio Biserra de Meneses.[48]
Mesmo
com base nesses elementos, a questão ainda permanece meio indecisa, pois,
segundo o texto, o cabra poderia ser resultado da miscigenação entre o índio
(tapuia) e o mulato ou entre este e o negro. Mas, em outra edição do mesmo
jornal, de 1856, lê-se num dos anúncios sobre escravos foragidos a citação a um
“cabra fulo, misturado com cabouculo”
que havia se evadido na companhia de uma mameluca, fato que, de certa forma,
reforça a participação dos indígenas na formação do conceito sobre o cabra no
Cariri. Dessa feita, assim era descrita a notícia no referido hebdomadário
cratense:
O abaixo assignado faz saber ao publico, que no dia
26 do corrente mes fugira do sitio Riacho do Meio na freguesia de Barbalha, o
escravo Manoel, de idade 25 annos pouco mais ou menos, cabra bem fulo,
misturado com cabouculo, altura e grossura regular, cabeça grande, cabellos
pretos e estirados porem grossos, barba quasi nenhuma, falto de dentes da
frente, pernas finas, peis regular, os calcanhares bem rachados: comduzio
comsigo uma mulher e a valia-se não se apartar della, a qual é mameluca, idade
de 30 e tantos a 40 annos, baxasinha, cabelo preto e caxiado; quem aprehender
dito escravo e o levar a casa do annunciante serà bem recompençado. Riacho do
Meio 29 de Julho de 1856. Sebastião Rodrigues da Gama e Silva. [49]
Conforme
escreveu Clerot, no
Brasil, os termos “Caboculo”, “caboclo” ou “caboco” (do tupi, “o que vem
do mato”)[50]
eram usados para fazer referência aos indígenas, no entanto, desde 1755, o Rei
de Portugal havia proibido que o “vassalos”
fossem tratados por este vocábulo em razão da carga pejorativa que a dita
terminologia havia adquirido ao longo do tempo bem como pela intenção de
incentivar os casamentos entre brancos e índios[51].
Ainda,
na investigação sobre o conceito do que eram os cabras, sob o critério do
espaço geográfico e do tempo em que se inseriam estes sujeitos, constata-se
que, no interior cearense, no início da segunda metade do século XIX, o termo “cabra” era aplicado com dúbio sentido,
qual seja, para ofender pessoas “brancas”
ou para se referir aos descendentes dos índios, conforme registrou em seu
diário o médico Francisco Freire Alemão, em 1861, quando esteve em visita a
esta parte do País:
Ontem
ainda tivemos ocasião de observar como [se] emprega aqui as palavras corno,
corna, corninho, corninha nos próprios filhos. O Sr. Raimundo (homem branco
distinto do lugar), brincando com uma filhinha de ano, [fl. 223] dizia muitas vezes: “Essa corna, esta corninha”. Em
outras ocasiões tenho ouvido senhoras brancas chamarem as filhas cunhã. “Vai
ver aquela cunhã”, ou “aquela cunhãzinha que está chorando”. Aos descendentes
dos índios chamam cabras (os cabras,
a cabralhada, a cabraria, cabroeira, cabreirada etc.), ao homem branco que se
porta mal chamam cabra, ao inimigo,
ao desafeto igualmente, cabra safado,
denominação de desprezo.[52]
Assim, tal apontamento de
Freire Alemão permite conhecer mais a fundo o sentido que possuía a palavra
cabra em meados do século XIX, no Cariri cearense, pois, estando o autor
imitido naquele espaço-tempo e convivendo com os habitantes do local, pôde
relatar como se dava a prática do uso da referida terminologia.
Conclusão
Pelo exposto, conclui-se que
a terminologia “cabra”, para definir
pessoas ou grupos humanos na então capitania do Ceará, já era utilizada desde o
século XVIII, passando ao século seguinte, aparentemente, com a mesma
semântica. Paralelamente, nota-se que, por todo este período, os ditos cabras
desempenhavam papéis beligerantes dentro da sociedade cearense, praticando, na
ótica dos códigos de natureza penal, “crimes”
contra o patrimônio e contra a vida, às vezes, manipulados por chefes locais,
noutras, guiados pela própria vontade.
Igualmente, deduz-se que a
expressão “cabra”, no Cariri
cearense, nos séculos XVIII e XIX, referia-se ao indivíduo de ascendência
indígena, puro ou mestiço; livre, liberto ou escravo; de qualquer sexo ou
idade; geralmente, oriundo das classes, economicamente, menos favorecidas. No
entanto, no final do século XX, o dito vocábulo sofre mudança semântica e perde
os sentidos de dicriminação social e de beligerância bem como o sentido pejorativo
de cunho étnico-racial, passando a ser usado, mais comumente, para substituir
as palavras indivíduo, sujeito, homem, menino (cabinha), menina (cabrocha), etc.
Nota-se também que o conceito
de cabra surgiu pela visão e dicção dos grupos de ascendência europeia para
fazerem menção aos “mestiços” resultantes do intercurso sexual entre pessoas de
várias etnias, os quais, à época, ainda não possuía definição dentro do
vocabulário formal luso-brasileiro.
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REVISTAS:
Revista Terra de Sol, Ano V, nº 5º, 2017, p. 46 e 47. In: MACÊDO,
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Revista Trimestral do Instituto Histórico e
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Janeiro: 1885.
JORNAIS CONSULTADOS:
O Araripe, nº 19, sábado, 10 de novembro de
1855, p. 04.
_______. nº 55, sábado, 02 de agosto de 1856,
p. 04.
DOCUMENTOS:
Arquivo
Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Brasil – Ceará, Crato, 1821,
agosto, 22, Crato: OFÍCIO do ouvidor do Crato, José Joaquim Correia da Costa
Pereira do Lago, ao presidente das Cortes Gerais de Lisboa [João Batista
Filgueiras], sobre os acontecimentos decorridos naquela vila em função do juramento
da Constituição. CTA: AHU-CEARÁ, cx. 19, doc. 21. CT: AHU_ACL_CU_017, Cx. 22,
D. 1318.
_______.
Pernambuco, 1738, março, 31, Recife: REQUERIMENTO da viúva do doutor Manoel da
Fonseca Marques, Gracia da Cruz e Silva, ao rei [D. João V], pedindo a prisão
do sargento-mor Miguel Carneiro da Cunha, natural de Aquirás, Ceará Grande,
mandante do assassinato de seu marido, Manoel da Fonseca Marques, e que se
encontra refugiado em um engenho na Várzea, pertencente a parentes.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 51, D. 4528.
Arquivo
Público do Estado do Ceará (APEC). A
Confederação do Equador no Ceará: manuscritos, Volume 2. Fortaleza/CE:
Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2005.
Correspondência Passiva do Senador José
Martiniano de Alencar. Rio de Janeiro: Anais da Biblioteca Nacional, 1966.
MEMÓRIA
COLONIAL DO CEARÁ, 1731-1736. Tomo 1. Kapa Editorial, 2011
______, 1726-1731. Tomo 2. Kapa Editorial,
2011, p. 175.
Registro de Autos da Ereção da Vila de
Monte-mor o Novo da América, Parte I, Revista do Instituto do Ceará, Tomo V,
Fortaleza ‒ Ceará, 1891.
Revolução de Pernambuco em 1817. Relação dos
Réus presos existentes na Cadeia da Relação da Bahia. Biblioteca Digital Luso-
Brasileira. Disponível em: <https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/38002>. Acesso
em 23 de jun. de 2018, às 14h30min.
Artigo
publicado na Revista Itaytera nº 48, de 2019, da página 181 à 203. Ao utilizar
este material, por favor, cite a fonte, de acordo com a Lei de Direitos Autorais
nº 9.610/1998!
[1] IRFFI,
Ana Sara Cortez. Capítulos de História
Social dos Sertões. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura Editorial, 2017,
p. 73.
[2] Ibidem, p. 74.
[3] Arquivo
Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Brasil – Pernambuco, 1738, março,
31, Recife: REQUERIMENTO da viúva do doutor Manoel da Fonseca Marques, Gracia
da Cruz e Silva, ao rei [D. João V], pedindo a prisão do sargento-mor Miguel
Carneiro da Cunha, natural de Aquirás, Ceará Grande, mandante do assassinato de
seu marido, Manoel da Fonseca Marques, e que se encontra refugiado em um
engenho na Várzea, pertencente a parentes. AHU_ACL_CU_015, Cx. 51, D. 4528.
[4] Memória Colonial do Ceará,
1726-1731. Tomo 2. Kapa Editorial, 2011, p. 175.
[5] Em Juazeiro do Norte/CE, no ano
de 1911, um documento oficial fora escrito pelas autoridades dos municípios
caririenses, o “Pacto dos Coroneis”,
sendo que, no seu artigo 7º, admitiu explicitamente que a política regional era
feita com o apoio militar dos “cangaceiros”, os quais, em nossa concepção, são
o resultado da transformação dos referidos “cabras”
(MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte:
uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri cearense. Fortaleza: Univerrsidade
Federal do Ceará, 1990, p. 137).
[6] Revolução de Pernambuco em 1817.
Relação dos Réus presos existentes na Cadeia da Relação da Bahia. Biblioteca
Digital Luso- Brasileira. Disponível em: <https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/38002>.
Acesso em 23 de jun. de 2018, às 14h30min. Ver também: MACÊDO, Heitor Feitosa.
A Revolução de 1817 no Ceará. Rio de Janeiro: Revista Terra de Sol, Ano V, nº 5º, 2017, p. 46 e 47.
[7] MACÊDO, Heitor Feitosa. Sertões do Nordeste: Inhamuns e Cariris
Novos, Volume I. Crato – CE: A Província, 2015, p. 277.
[8] BEZERRA, Antonio. Algumas Origens do Ceará. Fortaleza –
CE: Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 185 e 233
[9] A enfiteuse ou aforamento é um
contrato bilateral e oneroso, no qual, por ato inter vivos ou por disposição de última vontade o proprietário do
imóvel confere, perpetuamente, a outrem o domínio útil deste, mediante
pagamento de uma pensão anual, invariável, chamada de foro. O proprietário tem
o domínio direto do imóvel e o enfiteuta, ou foreiro, possui o domínio útil.
Destaque-se que o Código Civil de 2002, no seu art. 2.038, aboliu a instituição
de novas enfiteuses e subenfiteuses (ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Acquaviva. São Paulo
– SP: Editora Rideel/ABDR, [2007-2010], p. 342.
[10] Segundo o Padre Gomes: “Informação em torno da compra por Tristão
Gonçalves Pereira de Alencar (ainda não juntara Araripe ao nome) do Sítio
Lameiro, 27-3-1811, neste município, a Matias Ferreira de Holanda e sua mulher,
Maria Teixeira de Carvalho, que o tinham adquirido de dona Rita da Luz, que,
por sua vez, obtivera-lhe o domínio útil da câmara da vila do Crato”
(ARAÚJO, Padre Antonio Gomes de. A Cidade
de Frei Carlos. Crato ‒ CE: Faculdade de Filosofia do Crato, 1971, p. 48).
[11] Arquivo
Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Brasil – Ceará, Crato, 1821,
agosto, 22, Crato: OFÍCIO do ouvidor do Crato, José Joaquim Correia da Costa
Pereira do Lago, ao presidente das Cortes Gerais de Lisboa [João Batista
Filgueiras], sobre os acontecimentos decorridos naquela vila em função do
juramento da Constituição. CTA: AHU-CEARÁ, cx. 19, doc. 21. CT: AHU_ACL_CU_017,
Cx. 22, D. 1318.
[12] Ibidem, fl. 02v.
[13] BRÍGIDO, João. Apontamentos para A História do Cariri.
Fac-símile da ed. de 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2007,
p. 102.
[14]
THÉBERGE, Dr. Pedro. Esboço Histórico sobre a
Província do Ceará.
Fac-símile da ed. de 1869. Tomo II. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara,
2001, p. 40.
[15] Arquivo Histórico Ultramarino,
CEARÁ, CRATO, 1821, agosto, 22. Op. cit.
[16] PRUDÊNCIO, Antônio Ivo Cavalcante. Heróis da Solidão: Províncias do Norte ‒ 1817 a 1824.
Fortaleza/CE: Gráfica e Editora Royal, 2011, p. 193 e 194.
[17]
Revista Trimestral do Instituto Histórico
e Etnográfico do Brasil (IHGB).
Tomo XLVIII. Parte I. Rio de Janeiro: 1885, p. 308 a 310. Disponível em: <https://ihgb.org.br/publicacoes/revista-ihgb/itemlist/filter.html?searchword438-from=1885&searchword438-to=1885&moduleId=219&Itemid=174>.
Acesso em 28 de jun. de 2018, às 12h19min.
[18] Ibidem, p. 293.
[19] Ib., p. 345 e 346.
[20] Ib., p. 360 e 361.
[21] Ib., p. 267.
[22] THÉBERGE, Dr. Pedro. Esboço Histórico sobre a Província do Ceará.
Tomo II. Op. cit., p. 112.
[23] Arquivo Público do Estado do
Ceará (APEC). A Confederação do Equador
no Ceará: manuscritos, Volume 2. Fortaleza/CE: Secretaria de Cultura do
Estado do Ceará, 2005, p. 142 e 143.
[24] Ibidem, p. 202.
[25] Ib., p. 253.
[26] Ib., p. 249.
[27] Ib., p. 265.
[29] THÉBERGE. Pedro. Esboço Histórico sobre a Província do Ceará.
Fac-símile da ed. de 1869. Tomo III. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara,
2001, p. 86.
[30] A palavra tupi “jucá” ou “Yucá” significa: ferir, matar (CLEROT, Leon F. R. Glossário Etmológico Tupi/Guarani. Brasília: Edições do
Senado Federal, 2011, p. 299).
[31] A “ibirapema”, “Iwera Pemme”
ou “Iwera Pome”, foi descrita pelo
alemão Hans Staden, o qual foi refém dos índios tupinambás no Brasil, no século
XVII (STADEN, Hans. Viagem ao Brasil.
Salvador/Bahia: Livraria Progresso, 1955, p. 248 e 249). Ver também: FERNANDES,
Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. 3ª ed. São Paulo: Editora Globo S.A., 2006, figuras 4 e
26.
[32] CABRAL, Tomé. Dicionário de Termos e Expressões Populares.
Fortaleza/Ceará: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1973,
p. 171.
[33] PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução
de 1914. 2ª ed. Fortaleza/Ceará:
Editora IMEPH, 2011, p. 31.
[34] FIGUEIREDO FILHO, J. de. Engenhos de Rapadura do Cariri.
Fac-símile da edição de 1958. Fortaleza: Edições UFC, 2010, p. 62.
[35] Gustavo Barroso anotou que: “Quirim é o cacete meio curto, feito de uma
vergôntea de duro e fortíssimo jucá, assada, de canela de veado, cheia de
estrias, de negra maçaranduba ou coração-de-negro” (BARROSO, Gustavo. Terra de Sol. 8ª ed. São Paulo: ABC
Editora, 2006, p. 105). Tomé Cabral registra que “Quiri – sm. – Cacête pequeno” (Op. cit., p. 658).
[36] PINTO, Irineu Ferreira. Datas e Notas para a Historia da Parahyba,
Volume II. Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1916, p. 120.
[37] FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri, Volume III.
Crato/Ceará, Faculdade de Filosofia do Crato, 1964, p. 21.
[38] Correspondência
Passiva do Senador José Martiniano de Alencar. Rio de Janeiro: Anais da
Biblioteca Nacional, 1966, p. 253.
[39] Ibidem, p. 153.
[41]
BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra: Collegio das Artes da Comapanhia de Jesus, 1712,
p. 21.
[42] SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo
Primeiro A=K. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 207.
[43] GARDNER, George. Viagem ao Interior do Brasil: principalmente
nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos
de 1836-1841. São Paulo: Editora da
Universidade do São Paulo, 1975, p. 27.
[44] CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1972, p. 212.
[45] BARROSO, Gustavo. Heróis e Bandidos: os Cangaceiros do
Nordeste. Rio ‒ São Paulo ‒ Fortaleza: ABC Editora, 2012, p. 52.
[46] PINHEIRO, Irineu. O
Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de
1914. 2ª ed. Fortaleza/Ceará: Editora IMEPH, 2011, p. 31.
[48] O Araripe, nº 19, sábado, 10 de
novembro de 1855, p. 04. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=213306&pesq>.
Acesso em 24 de jun. de 2018, às 11h15min.
[49] O Araripe, nº 55, sábado, 02 de
agosto de 1856, p. 04. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=213306&pesq>.
Acesso em 24 de jun. de 2018, às 11h15min.
[50] CLEROT, Leon F. R.
Glossário Etmológico Tupi/Guarani.
Brasília: Edições do Senado Federal, 2011, p. 109)
[51] O conteúdo deste alvará pode ser
visto em: Registro de Autos da Ereção da Vila de Monte-mor o Novo da América,
Parte I, Revista do Instituto do Ceará, Tomo V, Fortaleza ‒ Ceará, 1891, p. 86.
[52] ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão.
Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2011, p. 454 e 455.