Heitor
Feitosa Macêdo
A “língua brasileira” é
uma verdadeira miscelânea de palavras com diferentes origens, tendo como seu
arcabouço não só o português, vernáculo neolatino, de origem Greco-romana, mas
também influências nascidas durante a colonização do continente Americano, com
a adoção parcial das línguas aborígenes, como aparenta ser o termo CANGAÇO.
Figura meramente ilustrativa (Fonte: <http://www.totalclipping.com.br/v1/noticias.php?id=1747>) |
A discussão acerca da origem desta palavra parece ter
arrefecido diante das opiniões de abalizados escritores, como dois dos imortais
da Academia Brasileira de Letras, Gustavo Barroso e Euclides da Cunha, sendo
que, atualmente, os estudiosos, em geral, não têm discordado da teoria adotada
para a formação deste vocábulo, fato que merece ser reavaliado.
Ao contrário do que se pensa, a palavra cangaço não define
apenas a forma do banditismo rural ocorrida nos sertões do Nordeste brasileiro
em épocas passadas, possuindo também outros significados.
Afora o modo de vida adotado pelos indivíduos cangaceiros,
ou seja, o cangaceirismo, Aurélio Buarque de Holanda também registra que
cangaço pode referir-se ao engaço de uvas depois de pisadas e de extraído o
vinho, ou ao conjunto de armas dos cangaceiros, ainda, pode reportar-se aos
objetos de uso de uma casa pobre, bem como ao pedúnculo e à espada do coqueiro,
que se desprendem da árvore quando secos.
Pedro Baptista assegura que, antigamente, em certos recantos
do sertão, cangaço referia-se à ossada, esqueleto de qualquer animal, doméstico
ou selvagem. No mais, observa que o vocábulo “nem sempre designa o homem
armado, o mal fazejo, na linguagem simples”, mas, por vezes, é utilizado para
distinguir o reles guarda-costas do “cabeça do bando”.
Cabe lembrar que os cangaceiros, antes de possuírem tal
denominação, eram chamados, no Ceará, de “caxeados”, devendo-se frisar que, à esta época, já possuíam as mesmas peculiaridades no seu modo de vida, na forma
de agir e, principalmente, na estética, com longas e desgrenhadas melenas.
Os imortais da Academia Brasileira de Letras, Gustavo
Barroso e Euclides da Cunha, foram os responsáveis pelas primeiras asserções
sobre a origem da palavra cangaço, concebendo-lhe como sendo oriunda da língua
portuguesa.
Gustavo Barroso, estudioso incansável do cangaceirismo, foi
responsável por arrematar a teoria mais aceita para explicar a origem da
palavra cangaço. Segundo o referido autor, a terminologia “cangaço” surgiu do
hábito de os antigos bandoleiros se sobrecarregarem de armas, trazendo o
bacamarte passado sobre os ombros, à feição de uma canga de jungir bois, por
isso dizer que estes indivíduos andavam debaixo do cangaço, isto é, de uma
canga metálica, feita de aço. Daí a expressão usada por Euclides, em “Os
Sertões”, ao dizer que alguns indivíduos: “vinham debaixo do cangaço”.
A obviedade e a lei do menor esforço consignam essa teoria
como verdadeira e acima de qualquer suspeita, no entanto, tal afirmativa é, no
mínimo, uma visão simplista, insuficiente para explicar a origem do termo
cangaço, que se mostra bem mais complexa do que se imagina.
Contrariando a pretensa origem lusa do étimo em apreço, Tomé
Cabral afirma que o substantivo masculino cangaço, na segunda acepção apontada
em seu dicionário, com o sentido de esqueleto, “parece, a princípio provir do
tupi CANGUERA (ossada, osso sem carne)”. Completa o autor, citando a opinião de
Batista Caetano, que cangaço tem origem no “abanenga” (língua tupi), sendo
derivado de KANG (osso) ou AKANG (crânio ou cabeça).
No entanto, Tomé Cabral admite haver dúvida em torno da
exata origem do termo cangaço, ponderando que o assunto: “Merece entretanto, um
estudo mais aprofundado a respeito de sua origem, tendo-se em vista a
semelhança gráfica e a quase homofonia entre cangaço e cangalho e sobretudo ao
sentido mais ou menos equivalente”.
Pedro Baptista, no ano de 1929, suscitou a possibilidade de
a palavra cangaço ter origem na língua dos índios Cariris, isto com base na
antiga obra do Padre Luiz Vincencio Mamiani, autor do “Catecismo Kiriri”,
publicado em 1698, na qual está registrado o termo CANGHI, que quer dizer
“bom”. Argumenta Pedro Baptista que esta adjetivação estaria relacionada com a
“compassiva tradição sertaneja” em lembrar-se dos seus heróis “sempre
aureolados de bondade e nobreza d’alma”.
Na Gramática da Língua Kiriri, publicada em 1699, igualmente
da autoria do padre Vincencio, encontramos um termo semelhante, CANGHITÈ, que
se traduz em “obra boa”.
Ao lado disso, em obra recente, Luis Bernardo Pericás sugere
que cangaço poderia ter se originado da palavra CAYACU (Kâyacu), também pertencente
à língua dos índios Cariris, e tendo como significado “lua”. O autor, partindo
do princípio que tal astro liga-se diretamente à noite e, consequentemente, aos
animais de hábito noturno, compara-os aos salteadores: “quase invisíveis, que
surgiriam desavisadamente no meio da noite para realizar os seus ataques”.
Todavia, o próprio Pericás dá pouco crédito a esta hipótese pela inviabilidade
da corruptela.
Portanto, palavras corriqueiras da “língua brasileira”, como
cangaço, podem guardar, no estudo de suas origens, enigmas extremamente
complexos, exigindo pesquisas mais aprofundadas, o que, certamente, revelará
pontos intricados de nossa cultura, fortalecendo a identidade do povo brasileiro
enquanto mestiços detentores de uma língua própria.
(Fonte:
jornal acontece, Região do Cariri - De 30 de outubro a 10 de novembro de 2014,
Nº 53 - Fundado por Antonio Rodrigues Peixoto, p. 06)