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sexta-feira, 1 de novembro de 2019

A Relação do Cariri cearense com o Guerreiro do Povo Kariri Mandu Ladino




A Relação do Cariri cearense com o Guerreiro do Povo Kariri Mandu Ladino

                                                                                      Heitor Feitosa Macêdo
        
         Antes de passar à análise histórica sobre Mandu Ladino, gostaria, primeiramente, de perguntar se algum dos leitores conhece ou se recorda do nome em língua nativa de algum(a) índio(a) que tenha habitado o território chamado de Cariri cearense ou mesmo qualquer parte da Chapada do Araripe? Em caso positivo, o senhor ou a senhora pode nos brindar com uma sucinta biografia desse indivíduo? Além da denominação genérica da Rua dos Cariris Novos, em Crato/CE, existe alguma outra rua, praça, logradouro, prédio ou instituição que carregue o prenome de algum desses povos originários da Região do Cariri ?
         Creio que essa dificuldade seja a mesma da maioria da população caririense, o que, inevitavelmente, representa autodesconhecimento! Algo grave, principalmente quando se trata de um espaço com grande concentração de escolas e universidade, que, desde o século XIX, goza da presença de intelectuais (eruditos) ligados à pesquisa histórico-regional, a exemplo de João Brígido dos Santos, Pedro Théberge e as dezenas ou centenas de mestres e doutores da LDB (Lei de Diretrizes e Bases, nº 9.394/1996).
Obra do holandês Albert Eckhout, "Dança dos Tapuias", pintada entre 1637 a 1644


1- Tribos ou Etnias que passaram pelo Cariri

            A crônica mais remota sobre a região aponta a existência de quatro “tribos” de tapuias (ou seja, diversas etnias indígenas que não falavam a língua Tupi) em guerra pelo domínio do referido espaço, quais sejam, os Inhamuns, os Kalabaças, os Kariris e os Kariús, conforme aponta João Brígido dos Santos, com base na tradição oral da família Bezerra de Menezes e Arnaud (brancos invasores aparentados da família d’Ávila, da Casa da Torre, na Bahia).
         Ademais, dentre os povos indígenas que tiveram passagem pelo Cariri, são conhecidos pela historiografia, oralidade e alguma documentação os Humã, os Xocó, os Jucá, os Jenipapo, os Quixeréu, os Quixelô, os Karacunê, os Icozinho, os Kurianense, os Ansu, os Karacuim, os Karacoxoê e os Buxixé.         
         Além dessas, existiram outras tribos, pelo menos, é o que aponta a pesquisa documental, pela qual se constata que, nas imediações da Chapada do Araripe, também habitaram os Janduim, os Ubatês, os Meatanz, os Icós e os Urius. Pari passu, Recentemente, em minha monografia em Arqueologia Social Inclusiva (URCA/Fundação Casa Grande e Universidade de Coimbra), comprovo que índios tupis também estiveram presentes nas imediações da Chapada do Araripe, a exemplo dos Tabajaras, que pertenciam ao grupo dos Tupinambás (Ver: “Implicações da Territorialização Branca do Cariri Cearense e a Invisibilidade Indígena no atual Ordenamento Jurídico Brasileiro sob a ótica da Arqueologia Histórica-cultural”).
         Como se percebe, diversos nomes nativos das tribos ou etnias são conhecidos, porém, o mesmo não ocorre em relação aos indivíduos pertencentes a estes grupos mencionados. Nos assentamentos paroquiais, principalmente do século XVIII, encontram-se menções a índios, contudo, já batizados com nomes cristãos.

2- Nomes Nativos de Índios que Habitaram o Cariri

            J. de Figueiredo Filho menciona “alguém já afirmou” que, no Cariri, existiu um cacique chamado Miranda, que teria emprestado tal denominação à Missão de mesmo nome, a qual deu início ao núcleo urbano da atual cidade do Crato. Todavia o próprio autor atribui grande descrédito a esta versão.
         Ainda, em busca de um nome, sabe-se que o médico carioca Francisco Freire Alemão, ao chegar ao Cariri cearense, visitou algumas partes da Chapada do Araripe. No dia 2 de fevereiro de 1860, quando este indivíduo se encontrava no Exú/PE, em conversa com Luiz Pereira de Alencar (irmão do Barão do Exú), obteve informações sobre o povoamento branco do lugar e sobre os conflitos com os índios, que se estenderam até o século XIX.
         Segundo informações dadas a Freire Alemão, o português Leonel de Alencar Rego (avó paterno de Bárbara Pereira de Alencar) chegou ao Exú no ano de 1710. Porém, sua permanência não foi pacífica, posto que foram lançadas diversas bandeiras contra os índios, sendo que estas escaramuças se estenderam por três gerações. Em conversa com Freire Alemão, Luiz Pereira de Alencar confessou ter presenciado o índio José Angelim e a esposa deste, despidos, terem se lançado debaixo da rede de seu pai para pedir perdão e se submeter. Ademais, Luiz acrescentou que, em tempo recente, havia falecido o último dos Caracuim, Pascoal do Rego:

O Sr. Luiz Pereira me deu várias informações a respeito da cultura e criação destes lugares, que escrevi em outra parte, e o que me disse a respeito de seus avós primeiros colonos aqui é o seguinte: Vieram de Portugal, se bem me lembro, três irmãos: uma senhora, que se casou, creio que para as partes do Jardim (no Ceará), e dois homens destes, Leonel de Alencar Rego, seu bisavô e avô do senador Alencar, foi quem veio estabelercer-se neste lugar, conquistando terras [f. 253] dos índios Caracuis e Ansus. Esta luta com os índios durou até seus pais, em cujo tempo ainda se lançaram bandeiras contra os pobres índios, e sendo ele menino ainda se lembra de ver o índio José Angelim com sua mulher, nus, entrarem pela sala e se lançarem embaixo da rede onde estava seu pai, pedindo-lhe perdão e submetendo-se. Ainda não há muito tempo que morreu com avançada idade, o último dos Caracuis, chamado Pascoal do Rego. Diz o Sr. Luiz Pereira que estes índios eram bem-apessoados e de cor clara. Devia ser em 1710 que o Sr. Leonel de Alencar se estabeleceu neste lugar, sendo a sua casa no lugar onde hoje tem casa o Sr. Gualter: o sítio Araripe aqui perto de Caiçara, mais próximo ao rio (riacho Rugido).    

            Já no dia 26 do mesmo mês e ano, Alemão encontrava-se na então vila do Jardim/CE, onde entrou em contato com um “velho caboclo” (índio) de 98 anos de idade, para que este lhe desse notícia sobre a história da localidade. Em sua narrativa, o dito caboclo, nascido em 1762 e chamado Gonçalo de Sá, disse que, no Exú, em sua mocidade, todos os habitantes eram índios (“vermelhada”) e se chamavam Exú:

Depois do almoço tivemos muita visita de curiosos, já de doentes. A meu pedido o Sr. Rosa tinha mandado buscar um velho caboclo, para dar-me nostícias sobre as antiguidades do Jardim; chegou o caboclo, montado a cavalo, ainda bem forte, conversador, jovial e tendo as suas faculdades mentais bem conservadas. Eis aqui o que obtive dele: chama-se Gonçalo de Sá, nasceu no Riacho da Brígida, em 1762 (tem hoje 98 anos) e foi batizado em Cabrobó pelo visitador Gonçalo Coelho de Lemos. A respeito do Exu nos disse que quando se entendeu era tudo [f. 261] ali uma vermelhada, isto é, todos os habitantes eram índios, chamados Exu. Os primeiros povoadores brancos foram Francisco José dos Santos, Inácio Caetano, Julião Maia, Felipe de Souza, de mais se não lembra. O avô do senador Alencar era Joaquim Pereira de Alencar, comandante do Corpo de Ordenanças, e habitou em Caiçara (...). 

            Mas, quais eram os nomes desses índios em suas respectivas línguas?
         Thereza Oldam de Alencar apresenta uma tradição oral sobre a existência do cacique Araripe e de uma trineta dele, Tereza Terra.
         Fora isso, no Arquivo Histórico Ultramarino da Torre do Tombo/Portugal, são encontrados diversos nomes de índios ligados aos grupos que tiveram passagem pelo Cariri cearense, principalmente em razão da Guerra Civil de 1724 (Ver Revista Itaytera nº 48, p. 63 a 110). No rol de culpados do Icó, por exemplo, na primeira metade do século XVIII, são relacionados inúmeros prenomes de índios, às vezes, qualificados como caboclos ou tapuias:

1- Amaro tapuia escravo do tenente João da Cunha, culpado em devassa
2- Antônio da Cunha índio culpa de morte
3- Andreza índia culpa de morte
4- Antônio caboclo por alcunha o Caim culpa de morte
5- André, tapuia escravo de Francisco Cavalcante culpa de morte
6- Antônio da Costa índio culpa de morte
7- Baltazar, tapuia governador dos mais de nação Genipapo culpa de mortes
8- Caetano índio da aldeia da Perangaba, culpa de morte
9- Catarina Ferreira, índia, culpa de morte
10- Duarte, tapuia escravo de Gonçalo de Oliveira, culpa de morte
11- Domingos, índio, culpado em devassa
12-  Luísa, tapuia forra, culpa de morte
13- Manuel, tapuia escravo do tenente José Asso com culpa de morte
14- Maniquesia, por alcunha Índio, culpa de morte
15- Marçal, índio da aldeia da Caucaia, culpa devassa
16- Tomé Cariu escravo do coronel João de Barros Braga, culpado em morte
17- Antonio Gomes, culpado na morte feita ao tapuia por nome o Marcapo
18- Cosmo escravo do capitão Bento da Silva, culpado na devassa da morte do tapuia por nome Macheor
19- Manuel escravo do comissário Pedro de Sousa, culpado na devassa da morte de um tapuia por nome Nader, da nação Cariri e do ferimento que se fez a outro tapuia da mesma nação
20- Félix escravo do capitão Antônio Nunes Ferreira, culpado na devassa a morte feita a um tapuia por nome Mandu escravo do tenente-coronel Estevão de Sousa ambos culpados na morte da devassa da morte feita a José Moreira
21- Francisco papacu, culpado na devassa da morte feita ao principal dos canindés
22- José, tapuia escravo de José Correa Peralta, culpado em furtos
23- Paulo, tapuia, culpado na devassa da morte feita a João Montes

            Como se pode notar, alguns índios são mencionados através de seus nomes originários, a exemplo dos tapuias Marcapo, Macheor, Nader (da “nação” Kariri) e, sugestivamente, Mandu.
         Esses índios aqui listados teriam habitado o atual território do Cariri cearense?
         A lógica hegemônica atual sobre fronteiras e residência fixa segue um raciocínio importado da Europa. Logo, o espaço geográfico batizado de Cariris Novos também é oriundo desse entendimento trazido pelo branco invasor, bem como a questão envolvendo naturalidade e domicílio.

3- Relativização do Conceito de Fronteiras: Branco x Índio

            Os índios entendiam o espaço de maneira diferente da maneira, oficialmente, imposta pela civilização caucasiana, pois, em regra, os índios migravam constantemente, sobremaneira o grupo chamado de tapuias, a exemplo dos Kariri.                  
         Florestan Fernandes explica um pouco do movimento migratório dos Tupinambá (índios da língua geral, o Tupi), que vagavam constantemente em busca da “Terra sem Males” ou “Paraíso Terreal” ou, ainda, Vapabuçú:

Duas fontes fazem referência ao motivo que presidia as grandes migrações dos tupinambá, levando-os a abandonar um habitat em busca de outro. Era a crença na existência da terra sem males, ou do Paraíso Terreal, como escrevia Heriarte, e na possibilidade de ela ser alcançada pelos seres humanos.

            O padre capuchinho baiano, frei Vicente de Salvador, em obra escrita em 1627, informa que os tapuias Aimorés ficavam estabelecidos em um mesmo lugar por apenas três ou quatro anos, tempo em que o material de suas choupanas levava para apodrecer:

Não moram mais em uma aldeia que enquanto lhes não apodrece a palma do teto das casas, que é o espaço de três ou quatro anos, e então a mudam parra outra parte, escolhendo primeiro o principal, com o parecer dos mais antigos, o sítio que seja alto, desabafado, com água perto e terra a propósito de suas roças e sementeiras (...). 

            Caso parecido foi testemunhado por outro padre capuchinho, o francês Claude D’Abbeville, em seus escritos de 1614, quando esteve no Maranhão, entre os índios Tupinambá. Sobre estes, disse o referido padre que permaneciam numa localidade por apenas cinco ou seis anos: “Disse-nos então Japiaçu que seu único pesar residia no fato de serem forçados, ele e os seus, a abandonar Juniparã, para se fixarem dentro de cinco ou seis luas acerca de meia légua dali (pois costumavam mudar de lugar e de residência cada cinco ou seis anos)”. 
         Para boa parte dos tapuias, esses prazos de estada eram bem menores. No final da década de 1640, o holandês Pierre Moreau, ao falar sobre os Janduim, no sertão do Rio Grande do Norte, asseverou que estes costumavam pousar em determinados lugares por apenas seis meses: “Os tapuias, porém, nação mais brutal, que vivem completamente nus nas matas, como vagabundos (havendo alguns que habitam em comum nas aldeias ou vilas, mas que se locomovem de seis em seis meses para serem mais sadios e andam por todos os lugares”. Como se pode deduzir, estas andanças serviam como exercício físico (“para serem mais sadios”) e, também, como estratégia para dominar o conhecimento sobre a geografia do continente.
         O padre da Companhia de Jesus, Luiz Figueira, em seus alfarrábios datados de 1608, quando esteve missionando os índios na serra da Ibiapaba, na capitania do Ceará Grande, relatou que os Tapuias estacionavam em determinados lugares por apenas dois dias:
O modo de viver destes he andar sempre como os antigos feitos cõ sua casa movida e todas suas riquezas e alfaias são seu arco e frechas cõ q´ cassão, e aonde achão de comer hai dormem sem cama nem rede mais q´ o chão ecomo andão muitos raramente achão em hum lugar de comer dous dias arréo pello q´ quase infallimente ã tão cada dia hua e duas legoas.

            O governador da capitania da Bahia, Francisco Barreto, em correspondência escrita ao rei de Portugal, com data de 14 de maio de 1662, esclarece sobre a inviabilidade de a Coroa fazer guerra aos Janduim e Araucanos, no sertão da Paraíba, tendo em vista o fato de estes “bárbaros” serem errantes, principalmente em período de guerra:
O que posso dizer a VMg.de sobre esta materia he, que nem os/ Barbaros Janduins podem vir a fazer a guerra com os Arauc=/ canos; porque nem disciplina, nem Cavallos, nem animo tem para/ exercicio algum militar politico; nem Diogo Coelho de Albuquer/ que poder bastante para os vir offender pro Certam & deixar/ segura a Capitania que Governa distando da da Parahiba cento è/ cessenta è sinco Legoas, nem Mathias de Albuquerque Maranhão/ em prender a guerra que pretende: porque ir buscar os/ janduins ao Certam (donde nam ha duvida ferem muitos)/ nunqua chegarà a vencellos, ainda que desbarate grande/ parte: èpara os esperar na Campanha da Parahiba, nam he/ naçam que venha com exercito formado a dar batalha. E/ nesta impossibilidade da peleja, ècontingencia do modo com que/ inopinadamente costumo dar, senam pode condusir gente, para/ lhes resistir em parte certa: nem no Certam a tem, em que os/ offendam: porque ainda que haja nelle Aldeas, sam natural=/ mente errantes, è muito mais quando tem guerras.

            No ano de 1704, Pedro Carrilho de Andrade enviou ao Rei de Portugal, Dom Pedro II, um “memorial de notícias e lembranças acerca da paz e guerra com o gentio do Estado do Brasil”, no qual fala dos índios da capitania do Ceará que ocupavam a Ribeira do Jaguaribe, a qual englobava o que viria a ser chamado de Sertão dos Cariris Novos.
         Neste seu memorial, Carrilho cita alguns hábitos dos “gentios bárbaros de corso”, entre eles os dos tapuias Janduim, Uriu, Paiacu, Karatiu e dos seus aliados (“anexos”). As informações prestadas pelo referido autor reafirmam a prática do nomandismo desses índios que, segundo ele, andavam sempre de corso (do latim “curso”, isto é, correr), volantes (móveis) e com suas casas às costas:

Tenho declarado as inconstantes condições destes bárbaros infiéis e suposto que há alguns gentios que se conservam com seus reverendos padres missionários mas é por que são de outras castas e nações aldeados que tem suas casas choupanas e lugares certos e usam de suas lavouras e plantas poucas ou muitas ainda que todos usam do exercício da caça mas não estes que tenho dito que andam sempre de corso e volantes com a casa às costas.

4- A Guerra dos Bárbaros ou Confederação dos Cariris
           
            As primeiras invasões do litoral brasileiro pelo branco provocaram deslocamentos em massa de muitos povos nativos, que se direcionaram para o interior do continente. Muitos destes haviam optado por fazer resistência armada ao invasor. As tribos e/ou etnias indígenas se confederaram para lutar no seio dos sertões, ensejando um dos maiores e mais longos ciclos de conflitos do Brasil, a Guerra dos Bárbaros.
         A chamada Guerra dos Bárbaros ou Confederação dos Cariris, segundo Pedro Puntoni, teve início nas Guerras do Recôncavo Baiano, entre 1651 a 1679, e se protraiu no tempo-espaço, atingindo os sertões nordestinos, incluindo as capitanias da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Piauí e Ceará, tendo durado, mais ou menos, até 1720.
         O território que mais tarde veio ser denominado de Cariris Novos, nas abas da Chapada do Araripe, lado cearense, tanto servia de refúgio quanto de rota de fuga para esses povos insurretos ao domínio Luso e foi um dos últimos redutos a ser invadido, efetivamente, pelos brancos.
         Cabe citar que a família d’Ávila, dona da poderosa Casa da Torre, na Bahia, obteve em data de sesmaria toda área ao redor da Chapada do Araripe, desde 1658, contudo, não conseguiu tomar posse da parte correspondente ao Cariri em decorrência dos tapuias bárbaros que infestavam o lugar, conforme os documentos inéditos que apresentei na Revista Itaytera nº 47.
         É apenas no início do século XVIII, mais precisamente, em 1703, que alguns brancos penetram o dito território e iniciam o soerguimento de fazendas de criar gado. Entretanto, os índios Icó, Kariri e Karatiu se aliaram para expulsar os ditos invasores.
         Esta informação é oferecida pelo soldado Manoel Dias Pinheiro, que, em 1707, estando no presídio do Rio Jaguaribe (isto é, no Forte de São Francisco Xavier, no atual município de Russas/CE), revelou que os tapuias Icó, Kariri e Karatiú estavam unidos num levante contra os brancos da Ribeira dos Icós, incluindo Manoel Rodrigues Ariosa, considerado por alguns pesquisadores como o primeiro povoador do Cariri cearense:  
Meu Sn.or oq proxima m.te/ hâi denouo nesta Comquista hê es=/ tar noCertaõ dos Icôz trez nacsoiz/ de Barbaroz inCorporadoz, Icôs, Cari=/ riz eo Caratihû destruhindo os gadoz/ q o anno paSsado foraõ p.a as povoaçoiñz/ nouas deuarios homẽnz, eprinsipaL/ m.te gados doCapp.am Mor M.el Carnr.o e=/ ManoeL Rois Ariozâ, eIa lhe ma=/ tarâo Hu̓ homên qLá tinhaõ, os ma=/ iz naõ quizeraõ eisprementar o proprio/ Retiraraosê, e nesta forma são infez=/ tadaz as mais pouoaçõiz de Baixo/ pondo emserco aos uaqueiroz nos seuz/ Corraiz; e faLaçe q dis o Tapuŷa q/ sô os homeñz da Torre an de meter/ gadoz nas tais Terraz, eoq mais sea=/ treuem a dizer hê, q Todoz q desta/ parte p.a aquella forem q os hande ma=/ tar; ReCorremsê aoCap.m mor inte=/ ressadoz aRequererem o mandar-lhes dar/ guerra, naõ sej oq se aIustarâ auista [fl. 09] Auista daserteza deste damno epre=/ iuizo q Cauzaõ estez Barbaroz; Huz soLdadoz deste pre=/ Zidio por seacharem nûz e dezpidoz/ cometem aos seuz ofeçiaiz nesta oCa=/ Ziaõ procurasoiñz p.a com ellaz preten=/ derem devs.a ordem p.a se lhes darem az/ suaz fardaz uensidaz; digo Hûa/ aCada Hû q tem uensido mais q/ saõ aLgũs q deixei ficar neste/ prezidio por capaxez, vs.a como/ Paj dos soLdadoz lhez premita o me=/ yô depoderem ser Remediadoz; (...) pre=/ Zidio deIaguoaribe 17 deMayo de=/ 1707. OBendito Soldado devs.a. Manu:el Diaz Pinhr.o [fl. 09v].

            Disto, infere-se que os Kariri não eram os únicos habitantes nas imediações da região do Cariri. Ademais, esta tribo ou nação não tinha esta região como seu único habitat, pois encontram-se inúmeros registros de sua presença em diferentes partes do Nordeste brasileiro, como nos Cariris Velhos, na Serra da Borborema/PB; nas margens do Rio de São Francisco; no Piauí e no CE, não só ao sul desta última capitania, mas, também, na região Norte, na Serra da Ibiapaba, conforme reza a representação da câmara do Povo do Ceará, no ano de 1719:

Terceiro, diminuindo-se as forças da aldeia, que tinham sido sempre o braço forte da capitania e ribeiras circunvizinhas, voltariam os tapuias agora afugentados, como eram os “Anaús, Jagoarigoaras, Curiús, Caratiús, Curadiús, Cariús, Cariry, Icós, Yacos, Yucês” e muitos outros que ainda viviam pela serra [da Ibiapaba] até à de Araripe, destruindo família de índios e guerreando os moradores.

´           É perceptível que, no início do século XVIII, os mesmos índios que habitavam o Cariri, também andavam fazendo resistência armada na divisa entre os atuais Estados do Piauí e Ceará. Ressalte-se que, até o ano de 1880, grande parte do litoral piauiense pertencia ao Ceará. 
         A partir de agora, de posse dessas informações, passemos a analisar um pouco da história de Mandu Ladino.

5- Quem foi Mandu Ladino?
           
            Mandu é nome de origem Tupi (“Mand-u”, isto é, “manda” = molho, feixe + “u” = natá, andar) e quer dizer o feixe que anda, em alusão a uma espécie de fantasma “que nas mascaradas festivas das aldeias, se apresenta envolto em palha, como um feixe de folhas secas”, segundo o tupinólogo Leon Clerot. Já o termo “Ladino” vem da língua morta, o latim, de “latinu”, significando inteligente, astuto.
         Nascido em São Miguel do Tapuio/PI, próximo à divisa com o Ceará, Mandu Ladino pertencia à tribo dos Aranhi, tendo ficado órfão aos 12 anos de idade, quando foi remetido a um aldeamento de índios Kariri, no Boqueirão, a 70 léguas de Recife/PE, cujos missionários eram padres da Ordem dos Capuchinhos (Barbadinhos).
         Nesta Missão indígena, presenciou a doutrina rígida dos padres, que tentavam combater os ritos religiosos desses povos nativos, queimando ídolos, vestimentas, proibindo o culto à jurema, etc. Desta maneira, insatisfeitos, Mandu Ladino fugiu deste aldeamento artificial e foi se unir aos índios Kariri que tentavam chegar ao Vale do Longá, na capitania do Piauí. Contudo, no caminho, foi ele preso e escravizado.
         No cativeiro, numa fazenda de criar gado, Mandu Ladino se tornou vaqueiro, como de costume naquela época, já que os tapuias conheciam bem a geografia da região e, também, porque conseguiam, facilmente, perseguir animais a partir dos rastros, predicados, estes, que facilitavam a localização dos gados tresmalhados nas grandes pastagens, ainda não limitadas por cercas. Em tal ofício, de vaqueiro e passador de gado, ele entrou em contato com diversas tribos indígenas residentes pelos campos, estabelecendo novas alianças.
         Ocorre que, em 1708, o Rei de Portugal ordenou que fosse feita cruenta guerra aos tapuias bárbaros, sendo disto encarregado o mestre-de-campo Antonio da Cunha Souto Maior, o qual não mediu esforços para massacrar sadicamente diversas tribos. O padre jesuíta João Guedes, em seu parecer, narra as cenas de horror vividas pelos Anapuruaçu, que, perseguidos por homens a cavalo, tinham suas cabeças cortadas por espadas, em uma espécie de esporte praticado pelo referido mestre-de-campo:

Porém o que mais os exasperava, fora um “bárbaro folguedo” que o mestre-de-campo fizera com os tapuias Anapuruassus. Montado a cavalo, ele, o seu irmão Pedro da Cunha, e Luís Pinheiro, ouvidor no “Maranhão”, mandara soltar alguns tapuias que tinha presos, obrigando-os a correr, e depois, cavalgando atrás deles cortavam-lhes a cabeça. O capitão Tomás do Vale Portugal, que se prezava de ser grande corredor, corria a pé e fazia o mesmo, até que cansados, entregaram o resto dos tapuias a outros, obrigando-os a matá-los. Tudo isto tinha feito com que os tapuias que estavam no arrial se revoltassem, matando primeiro alguns soldados do Maranhão e depois o próprio mestre-de-campo.   
                                              
            O mesmo Antonio da Cunha Souto Maior, em 1709, havia feito pazes com o que restava das tribos tapuias, alojando essa gente em um arraial às margens do Rio Parnaíba/PI, onde passou a usar a mão de obra indígena nas suas fazendas, remetendo daí grandes boiadas para a Bahia e Minas Gerais, onde eram vendidas.
         Não bastasse a escravização, esses tapuias também tiveram suas mulheres e filhas raptadas e estupradas por soldados do Maranhão; seus filhos foram vendidos; muitos foram enforcados, desterrados, e, outros, mortos à “catanadas”, numa espécie de tourada ou vaquejada na qual os tapuias eram usados no lugar dos bois. Foi em meio a estas atrocidades que Souto Maior assassinou a irmã de Mandu Ladino, bem como o esposo desta. Isto é o que denuncia o padre jesuíta Antonio de Sousa Leal:

Em 1709 depois de muitas guerras, Antônio da Cunha Soto-Maior fizera a paz com os que ainda restavam destes tapuias, exceptuados os Anapuruassus, e assim tivera licença no Maranhão para fazer um arraial na Ribeira da Parnaíba, obrigando dez “nações” que então estavam em paz a lá “assistir” e os que não tinham missionários, com as suas famílias. Fizera com eles muitos currais e caminhos e mandara muitas “boiadas” suas e de outras pessoas para a Baía e Minas. Os soldados do Maranhão tiravam-lhes as mulheres e filhas, e tratavam-nos como escravos, sem qualquer recompensa. Além disto, enforcara quatro ou cinco “Arayos”, desterrara e mandara matar outros, entre os quais uma irmã do Mandu Ladino e o seu marido; vendera muitos filhos os Anapurusmirins, Cristis e Vidais a quem clamava seus escravos, e dizia que, quando acabassem os “bravos”, mataria e cativaria os “mansos”. Também matara muitos dos Anapuruassus, largando-os do arraial um a um “mandando-os correr de cauallo, e a pé como touros às catanadas com grandes rizadas, e alegria.     

            Conta-se que Mandu Ladino testemunhou o assassinato da própria irmã, o que lhe causou grande revolta e, ao mesmo tempo, serviu de estopim para deflagrar uma rebelião juntamente com outros índios, no ano de 1712. Assim, mataram o mestre-de-campo Antonio da Cunha Soto Maior, oficiais, soldados, vaqueiros e incendiaram grande parte das capitanias do Piauí e do Ceará:

Durante dois pediram alivio para tantos maes, e, como nada conseguissem, juntaram-se a todas as tribos do arraial, excepto os índios e os tapuias Uruguas e Acaoanguassus, e mataram o mestre-de-campo, os capitães, a maior parte dos soldados e alguns vaqueiros, e queimaram grande parte do Piauí e capitania do Ceará.

            Como se pode perceber, o “Levante Geral dos Índios”, comandado por Mandu Ladino, estendeu-se ao Ceará, atingindo seu ápice no ano de 1713, quando, na vila do Aquiraz, mais de 200 pessoas brancas foram mortas por diversas tribos tapuias confederadas, entre elas os Paiacu (Baiacu), os Anacé, os Jaguaribara, os Kanindé, os Tremembé, os Acriú e os Areriú (Arariú). Tal levante só foi dirimido em 1715. Contudo, o movimento continuou nas terras piauienses, aproximadamente, até 1726.
         Ainda, em 1716, às margens do Parnaíba, Mandu Ladino foi ferido e, ao tentar atravessar um rio, acabou se afogando, sendo que a glória dessa morte coube a Manuel Peres, conforme pontua Lima Sobrinho: “A outro morador, Manuel Peres, dever-se-ia a morte de Mandu-Ladino, junto ao Parnaíba”. Paralelamente, o padre Domingos Ferreira Chaves, em carta datada de 23 de novembro de 1719, aponta que os índios Tabajara, da Aldeia da Ibiapaba, também foram responsáveis por dar combate aos homens de Mandu Ladino e aos Kaikai:

Primeiro que tudo, a proposta do mestre-de-campo Bernardo de Carvalho Aguiar (pedindo para a conquista do Piauí 400 índios, a desanexação da aldeia da serra da Ibiapaba da jurisdição do Ceará, e cem soldados do Maranhão contra os quais daria 40 ou 50 dos moradores e vaqueiros do Piauí, ao todo 700 homens de guerra), fora escusada e falsa, servindo apenas os particulares interesses do mestre-de-campo. Fora desnecessária, porque para acabar com 50 ou 60 tapuias do partido do Mandu Ladino, que eram os que então restavam dos 400 que tinham destruído e saqueado o arraial de S. Majestade, bastava a mesma gente que os reduziria a tão pequeno número quando ainda possuíam 300 armas de fogo “granadeiras” e muitos barris de pólvora e munições (...). A experiência provava a inutilidade de tal pedido, pois logo que o mestre-de-campo se embarcara, os índios Tabajaras por duas vezes que saíram com seus cabos e 200 homens, não só acabaram com 50 ou 60 do Mandu Ladino, mas ainda com outros tantos “Cahicahys”.   

            Muitos afirmam que Mandu Ladino pertencia ao grupo dos índio Kariri, o que é bastante razoável, já que, depois de órfão, foi criado em uma missão deste mesmo povo bem como se uniu a ele durante sua fuga, quando foi escravizado. Outro elemento que reforça essa tese é o fato de os Quiriri ou Kiriri, que são os mesmos Kariri, terem habitado o território da capitania do Piauí, inclusive nos afluentes do Rio Itaim, próximo à Chapada do Araripe:

Desde fins do século anterior, Francisco Dia de Siqueira, Capitão-Mor da Conquista do Piauí, vinha reprimindo em ambas as margens do Parnaíba, em seu curso inferior, os Precatis, Cupinharões, Anapurus e Curatês, bem como os Quiriris que ocupavam, então, os rios Itaim (Poti) e Piracuruca.    

6- E qual a relação de Mandu Ladino com o Cariri cearense?  

            De acordo com a classificação oficial do IPECE (Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará, ano 2010), o Cariri cearense possui três divisões: macro, meso e micro.
         A Macrorregião do Cariri cearense compreende 42 municípios, sendo eles: Campos Sales, Salitre, Assaré, Potengi, Araripe, Farias Brito, Altaneira, Nova Olinda, Santana do Cariri, Granjeiro, Caririaçú, Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Missão Velha, Aurora, Barro, Milagres, Abaiara, Brejo Santo, Porteiras, Jardim, Mauriti, Jati, Pena Forte, Saboeiro, Catarina, Acopiara, Quixelô, Orós, Icó, Umari, Baixio, Ipaumirim, Lavras da Mangabeira, Cedro, Várzea Alegre, Cariús, Tarrafas, Antonina do Norte, Jucás e Iguatu.
         Já a Messorregião engloba 25 municípios, quais sejam: Campos Sales, Salitre, Assaré, Potengi, Araripe, Farias Brito, Altaneira, Nova Olinda, Santana do Cariri, Granjeiro, Caririaçú, Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Missão Velha, Aurora, Barro, Milagres, Abaiara, Brejo Santo, Porteiras, Jardim, Mauriti, Jati e Pena Forte.
         Em terceiro lugar, segundo a mesma classificação do IPECE, a Microrregião do Cariri é composta por apenas oito municípios: Nova Olinda, Santana do Cariri, Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Jardim e Porteiras. Mas este conceito de Cariri não é absoluto, existindo outras concepções.
         Porém, no senso comum, o conceito de Cariri não obedece às mesmas regras estáticas de fronteiras convencionadas pelo plano administrativo, político, religioso, etc. O contorno do espaço chamado de Cariri é sempre plural.
         Sobre esse tema, Rosemberg Cariri, em publicação de 2008, aponta cinco visões sobre as fronteiras da Região do Cariri, para tanto, leva em conta critérios variados, como as águas, o clima, a administração, a história e a cultura.
         De acordo com o citado autor, a primeira visão sustenta-se na conformação da bacia hidrográfica (vertentes dos rios) e na qualidade do solo, reduzindo o Cariri ao vale recostado no sopé da Chapada do Araripe, compreendendo as cidades do Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha.
         A segunda visão está calcada no clima, constituindo-se o Cariri de 11 municípios: Abaiara, Barbalha, Brejo Santo, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Milagres, Missão Velha, Porteiras, Nova Olinda e Santana do Cariri.
         A terceira visão delimita geograficamente o Cariri com base na estrutura administrativa, açambarcando todo o extremo meridional do Estado do Ceará, com uma área de 15.934 Km2, com 26 municípios: Abaiara, Barbalha, Brejo Santo, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Milagres, Missão Velha, Porteiras, Nova Olinda, Santana do Cariri, Altaneira, Antonina do Norte, Araripe, Assaré, Aurora, Barro, Campos Sales, Caririaçu, Farias Brito, Granjeiro, Jati, Mauriti, Penaforte, Potengi e Várzea Alegre.
         A quarta visão sobre as fronteiras caririenses liga-se ao processo de formação histórica e à cultura comum do povo, numa área que já havia sido suscitada pelo senador José Martiniano de Alencar, em 1839, para sediar a província do Cariri, unindo o Cariri do Ceará, do Pernambuco e da Paraíba.
         Conclui Rosemberg, apontando uma quinta visão acerca das fronteiras em comento que “é muito pobre a definição do Cariri apenas como um espaço geográfico”, devendo-se levar em conta, além desse fator, o elemento histórico e cultural, o que dilata os limites do Cariri aos sertões do Piauí, da Bahia, de Alagoas, de Sergipe e do Rio Grande do Norte, compondo toda essa extensão o “território físico e cultural da grande Nação Cariri”.
         Acerca dessa construção de divisões espaciais do homem sobre a Terra, Albuquerque Júnior, ao falar dos Cariris Velhos, leciona que as fronteiras nem sempre são definidas, geometricamente, no plano físico, político, administrativo, econômico, mas, também, em diversas linhas que se conectam com as impressões vistas e ditas pela coletividade bem como pelas vivências pessoais dos indivíduos em seus respectivos hábitats, envolvendo memórias, histórias, cultura, identidade e, sobretudo, sentimentos e emoções, elementos estes capazes de atribuir significados ao ambiente material:
Do que passo a falar agora, o espaço que tentarei figurar narrativamente neste texto, é aquele que posso chamar de meu Cariri, pois partirei das minhas lembranças, das minhas vivências caririzeiras para dar a ele uma paisagem, fazê-lo ganhar realidade como conjunto de imagens, sensações, acontecimentos, informações, desenhando para ele uma topografia narrativa, dotando-o de cores, cheiros, experiências táteis, gustativas, auditivas, fazendo-o aparecer como espaço natural, econômico, social, cultural. Como ele é fruto de experiências pessoais e coletivas, como ele é fruto das recordações que se relacionam a experimentação de apenas uma parte, de um lugar específico no interior de toda a área assim nomeada, é preciso que, como toda memória, eu a situe precisamente nas coordenadas de espaço e tempo.       
  
            A pergunta que não quer calar é a seguinte: quando se menciona um índio pertencente à nação Cariri, a exemplo de Mandu Ladino, nascido no século XVII, é possível obedecer à mesma lógica territorial de hoje, importada da Europa?
         O espaço que veio a ser batizado de Cariri, ao sul da então capitania do Ceará Grande, só surge com esse nome, aos olhos dos portugueses, a partir de 1703, quando Manoel Rodrigues Ariosa penetra nas cabeceiras do Rio salgado, acima da Cachoeira do Cariris (Cachoeira de Missão Velha/CE) e estabelece um curral de gado próximo à Lagoa dos Cariris, entre os atuais município de Juazeiro do Norte e Crato.
         Depois disso, este lugar também veio a ser chamado de Sertão dos Cariris, e, em meados de 1714, recebe o batismo de Sertão dos Cariris Novos, para diferença-lo dos Cariris Velhos da Paraíba, na Serra da Borborema. Ou seja, ao tempo do nascimento de Mandu Ladino, ainda não existia Cariri cearense e o simples Sertão do Cariri era apenas um espaço em construção, na visão/dicção dos brancos invasores.
         Pode-se dizer que, quando ainda não existia Cariri, Mandu já era um Kariri e seu povo habitava esta e outras partes do que, hoje, chama-se Nordeste, deslocando-se constantemente, conforme seus hábitos ancestrais.
         Mas será que Mandu Ladino não deu nenhuma contribuição para a cultura do Cariri cearense?
         Falar no povo Kariri é a mesma coisa que falar em um grupo étnico formado por milhares de indivíduos com parentescos sanguíneos mútuos e, principalmente, com uma mesma identidade histórico-cultural. Não importa qual o dialeto falado (Dzbucuá: no Rio de São Francisco; Kipéia: na Serra dos Cariris; Camuru: na Aldeia de Pedra Branca/BA; ou Sabujá: na Serra da Chapada/BA), são todos eles índios Kariri, guerreiros armados de cacetes de jucá, empunhando suas ofensivas hyhytés ao som dos maracás de cabaça e feijões, pifes de taboca, alpargatas de croá, fumando cachimbos cheios de badzé, bebedores de jurema e manacá, roedores de pequi, adoradores dos assombrados umbuzeiros, comedores de carne humana e de preás.
         Ser Kariri, em seu sentido étnico, independe do território. Na verdade, trata-se de um conceito transindividual.
         Dizer que os Kariri não legaram nenhuma herança cultural a atual população caririense seria mero equívoco. E em sendo Mandu Ladino também Kariri, não teria ele contribuído, mesmo que de maneira indireta, para a construção do caldeirão cultural dos caririzeiros?
         Conforme já expus, Mandu foi, talvez, no século XVIII, o maior líder que se tem notícia da nação dos Kariri. Rebelou milhares de índios, do Piauí ao Ceará. E, em que pese ainda não haver comprovação palpável, não teria o Mandu Ladino passado pelo território do Cariri cearense?
         Isso é perfeitamente possível, sobremodo, pela proximidade espacial entre os lugares em que ele aparece nas narrativas e a Chapada do Araripe, o Cariri, um dos últimos redutos de resistência armada feita pelos índios aos brancos invasores.
         Com quantos Mandu já não nos deparamos dentro e fora do Cariri? Chico de Mandu, João de Mandu, Zé de Mandu, Antonio de Mandu e assim por diante. Esse quase sempre é o prefixo de pessoas pobres, mestiças, habitantes dos pés serra, dos campos, das comunidades e favelas. É a força do inconsciente coletivo de resistência que lhes sobrou, isto é, a cultura, ainda hoje vista no Cariri, como no pau da bandeira, onde repousa a corrida de toras; no maneiro pau, os cacetes de jucás (“iucá” = ferir, matar) ainda ressoam as vozes ancestrais; nas bandas Cabaçais, os pífaros de taboca (“” = tronco; “bóca” = furado) persistem; na lapinha, a tapuia sai do mato para ver o menino Jesus.
           
7- Conclusão

            O Cariri cearense, como toda a toda a região que engloba a Chapada do Araripe, não deve se furtar de rememorar os povos Kariri e os demais tapuias que foram esbulhados/usurpados, mortos, escravizados, estuprados, torturados e marginalizados pelos brancos ancestrais de boa parte da população caririense. Esses fatos não se perderam no tempo, pois suas consequências ainda estão presentes e nos pertencem.
         Nossos brasões de sangue são responsáveis, de algum modo, pelo genocídio e pelo desequilíbrio identitário dessa gente tapuia e tupi. Em regra, batemos palmas para suas festividades, mas não nos integramos. Igualmente, costumamos escrever sobre sua cultura, a dita popular, no cimo de nossos gabinetes, quase sempre numa visão vertical.    
         Nossa perspectiva estática sobre a relação homem-espaço, às vezes, não nos permite compreender que os povos originários não concebiam seu pertencimento a áreas territoriais delimitadas, convencionalmente, por linhas imaginárias. Dessa feita, é verdadeira incongruência considerar que um Kariri não é Caririense!
         Ademais, é salutar que a pequena burguesia “intelectual” (re)conheça esse importante fato histórico, não à guisa de inclusão social, mas como ato de respeito pela contribuição do povo Kariri para com a cultura dita “popular”.
         Porém, tal (re)conhecimento não deve pairar apenas sobre nomes genéricos, como os Kariri, os Kariú, os Kalabaça, etc., pois corre-se o risco de perpetuarmos a política de invisibilidade dessa gente, dissolvendo indivíduos em multidões. Ao contrário, devemos primar pela identificação pessoal daqueles que estiveram à frente dos seus grupos, comandando resistências e conservando valores ancestrais.
         Por fim, acredito que o líder Mandu Ladino deva ser considerado como símbolo de luta, resistência e existência do povo Kariri também no Cariri cearense, pois, em qualquer parte do planeta, seja no Cariri Novo, Cariri Velho, Cariri cearense, Piauí, Pernambuco ou Rio de São Francisco, esta gente sempre é a mesma.