CARIRI CANGAÇO NO CARIRI CEARENSE:
SETEMBRO DE 2015
1. PRÓLOGO
Nos
dias 23, 24, 25 e 26 de setembro de 2015, ocorreu mais um evento engendrado
pela agremiação chamada Cariri Cangaço,
reunindo historiadores e pesquisadores dos quatro cantos do Nordeste, sob a
coordenação de Manoel Severo.
Deve ser ressaltado que, apesar do
título que batiza a confraria, Cariri Cangaço,
o objetivo dos seus organizadores não é fazer apologia ao banditismo de
outrora, muito menos heroicizar personagens ligados ao cangaceirismo, o qual
não era formado apenas por cangaceiros, mas também por coronéis, políticos,
magistrados, policiais, padres, campesinos e, inclusive, mulheres.
Grosso modo,
pode-se dizer que toda a sociedade da época, estabelecida naqueles rincões,
vivia a era do cangaço, à guisa de uma verdadeira instituição social, onde não
havia margem para escolhas dentro daquele tempo e espaço.
Assim,
apesar do preconceito e das agruras que ainda causam repulsa (tendo em vista o
cometimento de furtos, roubos, estupros, assassinatos, mutilações, etc.) a
imagem do cangaceiro que nos foi relegada coincide apenas com um de seus tipos,
exatamente no que se enquadrava o famanaz Lampião (Virgulino Ferreira da Silva),
caracterizado não só por crimes e pela estrambótica estética, mas, principalmente,
pelo lado em que estava entrincheirado, oposto à oficialidade, isto é, contra o
Estado. Fato que poderia ser facilmente modificado pela oportunidade e
conveniência dos governos e de seus gestores, que não eram menos cangaceiros
que os primeiros.
Desprezar esses acontecimentos é a
mesma coisa que renegar a própria história, seja ela política, social ou
antropológica. Afinal, fomos agentes (ativos e/ou passivos) dessas práticas e
não é exagero dizer que também somos, em parte, o resultado delas.
2. O EVENTO
Durante os quatro dias de reuniões
protagonizadas pelo Cariri Cangaço, muita coisa pôde ser discutida, apesar do tempo
exíguo para as conversas de tantos espíritos apaixonados.
Contudo, farei um resumo apenas de
alguns dos encontros nos quais estive presente, destacando o que mais me chamou
a atenção.
2.1. RELÍQUIA DO BANDO LAMPIÔNICO
Na noite do dia 23, na cidade do
Crato/CE, foi exibida a película do longa metragem que conta a redescoberta de
um casal de cangaceiros do grupo de Lampião, Moreno e sua esposa Durvinha, os
quais no começo do século XXI ainda eram vivos, residindo em Minas Gerais,
décadas depois de terem abandonado a vida bandoleira.
A tez acobreada, os olhos amendoados e
os cabelos linheiros como setas acusam a possível origem cromossômica do casal
de cangaceiros, certamente, mamelucos e/ou cafuzos, como a maioria dos caboclos
do interior do Nordeste.
A saga de um indivíduo que entrou para
a vida do crime depois de ter sido violentamente surrado pela polícia, sob a
acusação der ser o autor do furto de um bode, e que durante o suplício, ao ser
chamado de ladrão, retrucava, insistentemente, sou um cidadão, ajuda a reconstituir um quadro comum no passado do
Nordeste, onde a falsa imputação de um crime e a arbitrariedade das autoridades
tinham o condão de lançar indivíduos na vida do crime, sendo estes motivados,
algumas vezes, pelo sentimento de justiça e vingança.
O logística usada pelos cangaceiros e
pela polícia-volante (não menos cangaceira) remontam ao tempo das
expedições bandeirantes, quando as guerrilhas demandavam estratégias mistas,
cooptadas nos embates indígenas e nas antigas técnicas militares portuguesas,
como emboscadas; perseguição a partir de rastros; armas de fogo usadas por
combatentes em constantes deslocamentos; etc.
Porém, no vídeo, o ex-cangaceiro Moreno
demonstra, com originalíssimos trejeitos, parte da movimentação rápida
utilizada para se livrar dos projéteis, cabendo destacar a posição de tiro com
fuzil, em pé, acomodando-se lateralmente, a fim de reduzir a superfície de
contato do corpo, e, consequentemente, diminuir a probabilidade de ser alvejado
na região ventral.
É curioso ver que, mesmo tendo residido
tantos anos em uma região cuja cultura é relativamente diversa, o casal manteve
a tradição da sua terra natal, como, por exemplo, o sotaque carregado,
pronunciando os fonemas ti e di linguodentais, falando com som
arrastado, entre outras características do português arcaico que os habitantes
do sertão do Nordeste ainda mantêm.
No meio de tudo isso, a
interessantíssima história desses dois ex-cangaceiros é regada por um romance
mal sucedido, pois Durvinha, quando entrou para o dito bando, o fez apaixonada
por um cangaceiro bem-apessoado, chamado Virgíneo, contudo, foi após a morte
deste que se uniu a Moreno. Sem papas na língua e na presença do esposo,
confessa, sem o menor receio, que o seu grande amor ainda era Virgíneo.
Ademais, cabe salientar que ela nunca atirou em ninguém, pois tinha medo de
pegar em armas, evidenciando comportamentos, admiravelmente, antagônicos dentro
do cangaço.
2.2. O PACTO DOS CORONÉIS
Na tarde do dia 24, na cidade de Lavras
da Mangabeira/CE, houve uma conversa entre os pesquisadores/historiadores,
sendo assistida por vários estudantes do distrito de Quitaiús, tendo como tema
o Pacto dos Coronéis em Juazeiro do Norte, datado de 1911.
O
assunto tratado girava em torno do uso do cangaço pra fazer política regional,
isto porque no dia 04 de outubro de 1911, ano da inauguração da cidade de
Juazeiro do Norte, alguns coronéis do sul cearense, intendentes municipais
(espécie de prefeitos ‒ chefe do poder executivo), se reuniram nesta localidade
para firmarem publicamente um acordo mútuo, sob a direção do padre Cícero Romão
Bastista, comandante supremo do município recém-inaugurado.
Neste dia, Juazeiro deixava de ser uma
mera vila para passar à capital do cangaceirismo regional, e o padre Cícero o coronel dos coronéis.
O encontro destes chefes políticos no
Cariri cearense resultou numa espécie de tratado de paz, sendo batizado pelo padre
Cícero de artigos de fé política.
Porém, existem outras denominações para este mesmo fato, como pacto de paz, pacto de harmonia política, aliança
política, conferência política,
e, mais usualmente, pacto dos coronéis.
O
fato é que o pacto pretendia por fim à série de deposições municipais (sendo o
cargo de prefeito disputado à bala),
bem como firmar o compromisso de apoio ao velho babaquara então presidente do Estado do Ceará, Antonio Pinto
Nogueira Acióli. Porém, o artigo sétimo mencionava a condição de abrir mão dos
cangaceiros, o que tornava tudo aquilo uma utopia, afinal, o coronel só existia
em função destes bandidos e vice-versa.
Dos
19 líderes convocados para a sessão, apenas 17 deles ou seus representantes
compareceram e assinaram a ata. Os pactuantes eram chefes das cidades de:
Missão Velha, Crato, Juazeiro do Norte, Araripe, Jardim, Santana do Cariri,
Assaré, Várzea Alegre, Campos Sales, São Pedro do Cariri, Aurora, Milagres, Porteiras,
Lavras, Barbalha, Quixará (Farias Brito) e Brejo dos Santos.
Por fim, das nove cláusulas
estabelecidas, pouco foi cumprido, como, por exemplo, o apoio ao presidente
estadual, que, inclusive, veio a ser reconduzido ao dito cargo, em 1914, pelas armas,
principalmente, dos cangaceiros, chefiados por seus respectivos coronéis sul
cearenses. Isto prova a existência da simbiose entre o coronelismo e o cangaço.
A
medida tinha vários propósitos, dentre eles o fim das deposições municipais que
estavam ocorrendo na região, pois os chefes políticos se aboletavam neste cargo
usando da força. Para tanto, faziam uso de verdadeiros exércitos privados,
compostos por capangas e cangaceiros.
Apesar
da farta bibliografia que existe em torno do tema, alguns pontos permanecem sem
solução, como afirmou Joaryvar Macedo, ao dizer que este: “tem sido um dos assuntos controvertidos da crônica política do Cariri,
inclusive quanto a quem o concebeu. A sua ideação já foi atribuída por
estudiosos ao Padre Cícero, ao doutor Floro, ao coronel Antônio Luís Alves Pequeno,
ao presidente Nogueira Acióli, ao doutor Arnulfo Lins e Silva, então juiz de
Barbalha” (Império do Bacamarte, p. 139).
Assim,
já tendo sido o pacto em comento algo bastante explorado pelos estudiosos,
coube aos painelistas fazerem
digressões em outros aspectos, como apontar algumas origens remotas do
coronelismo, do tempo da ocupação sesmarial, bem como abordar a influência
psíquica da figura mística do padre Cícero sobre os coronéis, cangaceiros,
jagunços, capangas e o povo.
Ao
final da tarde, o grupo fez excursão pela cidade de Lavras da Mangabeira,
conhecendo os pontos principais que envolveram a invasão cangaceira da dita
urbe no começo do século XX, isto por ensejo do resgate histórico feito por
João Calixto e publicado em livro.
Heitor Feitosa Macêdo e o escritor Voldi Ribeiro, Lavras da Mangabeira, na tarde do dia 24 de setembro de 2015 |
2.3. O PADRE CÍCERO
Em que pese ser a bibliografia sobre o
padre Cícero bastante extensa, ainda restam pontos a serem revelados, e foi com
esse mesmo mote que houve a reunião na noite do dia 25 de setembro de 2015, em
Juazeiro do Norte.
Os palestrantes discorreram sobre
aspectos místicos e genealógicos do Santo Padre, enveredando tanto pela psique
quanto pela árvore de costados de Cícero Romão Batista, apresentando uma ótica
singular sobre o poder da crença no catolicismo popular e a possível influência
que os ancestrais do dito sacerdote exerceram sobre o seu comportamento.
3. EPÍLOGO
Este é apenas um breve resumo do que
pude acompanhar nas poucas horas em que estive acompanhando o referido evento.
Confesso que tive que provar uma moderada dose de convivência para afastar o
preconceito que o título per si
impõe, Cariri Cangaço, pois, como
ficou dito, o compromisso deste sodalício não é enaltecer tal espécie de
banditismo, mas poder compreender melhor os fatos que envolvem a sociedade
nordestina, principalmente, a sertaneja.
Futuramente, com expansão deste
movimento para outros estados e regiões do País, ocorrendo a inserção de mais
estudiosos sobre o cangaço e temas correlatos, estes encontros constituirão uma
importante ferramenta para a elucidação histórica de uma sociedade encravada há
séculos nos antigos sertões do Norte.
Talvez não seja exagero, mas acredito
que esse sinergismo poderá oferecer algumas respostas ou orientações para
aqueles que estudam a história, a sociologia, a antropologia e o direito (principalmente
no ramo da criminologia) concernente à civilização
do couro, sociedade esta formada por gente interiorana, do semiárido
nordestino, que ainda existe e, por isso, precisa ser vista e escutada não como
vítima, mas como sujeitos de sua própria história.