CARIRIENSES QUE AINDA UTILIZAM A
LÍNGUA INDÍGENA
Heitor Feitosa Macêdo
Em meados de 2015, na peleja diária do
ganha pão, estive na Vila da Palmeirinha dos Vilar, zona rural do município do
Crato/CE, para fazer uma visita a uma cliente. Na ocasião, parecia que tudo
fluiria como sempre, não ultrapassando as raias da formalidade profissional.
Dona Tica de Jorge. |
Tentando agir dentro das convenções do
meio sertanejo, fui apanhado pela hospitalidade peculiar daquela gente. Começou
com uma água, depois um cafezinho; e a conversa já ia descambando por mais de
duas léguas quando perguntei a Dona Tica de Jorge (Francisca Maria Pereira
Santos), mãe de minha cliente, se ela havia plantado algo naquele ano. Em
resposta, Tica me disse ter semeado fava.
Com o pequeno conhecimento que eu havia
adquirido em conversas que tive com meia dúzia de agricultores, sabia que fava
é uma cultura com a qual nem sempre se obtém sucesso todos os anos. Assim,
fingindo ser doutor no assunto, indaguei qual tinha sido o resultado da
plantação. Foi aí que ela respondeu nos seguintes termos: “a fava tá fazendo um
jererê danado”.
A resposta me causou grande dúvida,
pois, no alto de meus trinta e poucos anos, tendo bacharelado em Direito e um
livro no prelo, não sabia patavina do que ela havia dito, pois “jererê”, até
então, era, para mim, uma palavra vazia de significado, quando muito, seria
alguma espécie de prato baiano ou afro-brasileiro. Santa ignorância!
No entanto, lancei mão da humildade,
coloquei um sorriso amarelo no rosto e perquiri mais uma vez à velha: “Dona
Maria, e o que é jererê?”. Rindo do meu desconhecimento e da indiscrição da
minha curiosidade, ela explicou suscintamente: “meu fi, jererê é inrramar”.
Complementarmente, explicou que a fava crescia volteando seus ramos em torno de
um algum sustentáculo, sendo este, comumente, a haste dos pés de milho. Estava
eu diante de um grande ensinamento da policultura de subsistência, porém,
restava saber de onde ela havia tirado essa palavra, pois, sendo analfabeta, só
poderia ter assimilado da tradição oral.
Dona Tica de Jorge. |
Mais feliz do que envergonhado, por
desconhecer a riqueza do vernáculo falado em meu próprio terreiro, lembrei do
que havia ocorrido com o pesquisador Luís da Câmara Cascudo, o qual, depois de
ter mangado de uma velha quitandeira, pelo fato de essa ter utilizado a palavra
“parança”[1],
ao consultar um antigo dicionário do final do século XVIII, ele constatou, para
sua surpresa, que o termo existia. Assim, seguindo este exemplo, fui buscar
socorro nos dicionários.
O Aurélio afirma que “jererê” faz
referência ao “baseado”, maconha[2].
Já o Houaiss registra duas palavras homônimas (“jererê”): a primeira é repetida
com o mesmo significado dado pelo Aurélio, acrescentando que o vocábulo deriva
da língua africana, mais especificamente, do termo “ngelele”; a segunda remete
à sarna, assumindo acentuação diversa (“jererê” ou “jereré”), com acento agudo
no “e”, sendo que a etimologia desta palavra, nesta segunda acepção, é, de acordo com o mesmo autor, de origem obscura[3].
Mas ocorre que “jereré”, com acento
agudo no “e”, aparece algumas vezes nos dicionários carreando diversos
significados, como, por exemplo, chuvisco ou garoa; rede cônica de pescar,
presa num aro circular, adaptado a uma longa vara que serve de cabo (sendo o
mesmo que puçá e landuá); e, ainda, lepra ou coceira. O mais interessante é
que, neste caso, a referida palavra encontra origem na língua indígena, o tupi,
conforme o volumoso dicionário da enciclopédia Mirador.[4]
Destarte, até aí, alguns dos
dicionários mais clássicos da língua portuguesa só haviam aumentado minhas
dúvidas, pois nenhum falava no movimento da ramagem da maldita fava!
Analisando com maior delonga o caso,
lembrei ter escutado dos moradores das imediações que a família de Dona Tica, “os
Dorotêu”, morava desde priscas eras no território próximo ao distrito cratense
de Ponta da Serra, lá pelas bandas da antiquíssima Fazenda Boqueirão, da Lagoa
Rasa e Jaburú, tangenciando as fraldas da Serra de Caririaçú. Gente, em regra,
de pele acobreada, olhos repuxados e, alguns, com cabelos lisos.
Disse-me alguém que o meninos dos “Dorotêu”,
por volta da década de 1960, andavam nús pelos citados sítios; usavam arcaísmos
da língua para se referirem, por exemplo, a certos tipos de répteis, comumente
conhecidos por calangos, os quais chamavam de “sardão”; além disso, faziam
aluás em potes de barro, adoçando-os com rapaduras, para tanto, metiam o braço
no dito recipiente para dissolver o açúcar. Importa dizer que, entre os
integrantes dessa família, não existe memória que tenham vindo de outro lugar.
Minha investigação via-se, sob este
aspecto, limitada, pois, em regra, a História oficial se encarrega de identificar
as origens da nobreza da terra, deixando na obscuridade negros, índios e
mestiços. Não seria desmedido cogitar que esses discursos históricos tenham,
disfarçadamente, a intenção de apagar a existência dos povos indígenas em
determinados territórios brasileiros, como, por exemplo, no Vale do Cariri,
onde, frequentemente, propala-se que os índios Cariri foram transferidos da
Missão do Miranda (núcleo que originou a cidade do Crato) e levados para as
aldeias do litoral: Parangaba, Messejana e Caucaia.
Talvez, por trás desse argumento, haja
o propósito de negar a atual presença do sangue e da cultura Cariri nas terras
do respectivo Vale. Todavia, apesar da invisibilidade aos olhos das elites,
esta gente sobreviveu amocambando-se pelos matos, dando origem à classe dos
cabras e caboclos; outra parte, integrando a sociedade civil, forma a atual
casta dos trabalhadores rurais (plantadores de cana, comboieiros, vaqueiros,
moradores, etc.) e dos trabalhadores urbanos (empregadas domésticas,
lavadeiras, passadeiras, jardineiros, pedreiros, caseiros, etc.). Boa parte da
nação Cariri está no campo e nas favelas!
Acredito que o principal motivo de não
se investigar o origem dessa gente, através de uma História dos Pobres, se
encontre no fato de a classe dominante se sentir desconfortável ao ver seus
segredos revelados, isto é, ver descortinado o esbulho que fora feito aos
índios da Missão do Miranda. Afinal, hoje, a quem pertencem as maiores áreas de
terras férteis no município do Crato, que haviam sido dadas ao índios à época
do missionamento? Esse é um dos grandes enigmas que envolvem essa gente
marginalizada!
Mas, voltando ao estudo da origem da
palavra “jererê”, no sentido usado pela velha Tica de Jorge, recorri à antiga
gramática da Língua Kiriri, escrita em 1698 por um padre italiano, da Ordem dos
Capuchinhos, Vincêncio Mamiani, o qual esteve nas missões dos índios Cariris
alocadas às margens do Rio de São Francisco. Para minha surpresa, encontrei um
termo bastante parecido: “tererè”, cujo significado é “corrupio”[5]. A
partir daí, tudo começava a fazer sentido, pois a ideia de girar se adequava ao
movimento helicoidal da ramagem da fava que havia sido descrito por Tica.
Gramática da Língua Kiriri ou Cariri, de 1698. |
Entre as tradições sertanejas acerca do
assunto, cabe destacar a crendice em torno dos redemoinhos de vento, pois, para
evita-los, costumava o sertanejo desenhar na areia uma estrela de Davi, também
conhecida por sino-salomão[6].
De certa forma, isto indica que, no catolicismo popular nordestino (fruto do
amalgama entre a cultura indígena e os ritos romanos), estes redemoinhos tinham
um quê de sobrenatural, ou, mais especificamente, demoníaco.
Essa relação de movimentos circulares,
do diabo e da língua indígena é sublimada pela lenda do saci-pererê, entidade
que se desloca no espaço através de remoinhos. Destaque-se que a palavra
“pererê", de origem tupi, é muito semelhante a “tererè” e “gererê”.
Provavelmente, possuem o mesmo sentido, qual seja, rodopiar, girar. A variação
da primeira consoante não causa estranheza, pois, nas línguas indígenas, era
algo bastante comum; como exemplo, cite-se o caso do Rio Jaguaribe, no Ceará,
também pronunciado Gegoaribe[7],
Iaguaribe, Jaguarive, Jaguazibe e Jaguaripe[8].
Penso que tive a sorte de não apenas
escutar, mas, também, ouvir a antiga língua Cariri que ecoa no tempo, num timbre
já esmaecido, nas mesmas vozes marginalizadas, ainda inaudível aos ouvidos dos
estudiosos oriundos das academias.
[1] Ap. MELO, Frederico Pernambucano
de, Guerreiros do Sol, 5ª Ed., São Paulo, A Girafa, 2011, p. 46. Ver também:
Cascudo, Luís da Câmara, Viajando o Sertão, São Paulo, Global Editora, 2009, p.
65.
[2] HOLANDA, Aurélio Buarque de,
Dicionário Aurélio: Dicionário Eletrônico, 5ª Ed., Versão 7.0, Positivo
Informática.
[3] HOUAISS, Antonio, Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009, p. 1131.
[4] Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa, 2ª Ed., São Paulo, Mirador Internacional, 1976, p. 1006.
[5] MAMIANI, P. Luiz Vincencio, Arte
de Grammatica da Nação Kiriri, 2ª Ed., Rio de Janeiro, Typ. Central de Brown
& Evaristo, 1877, p. 24.
[6] MELLO, Frederico Pernambucano
de, Estrelas de Couro: A estética do Cangaço, 2ª Ed., São Paulo, Escrituras
Editora, 2012, p. 50 e 51.
[7] Puntoni, Pedro, A Guerra dos
Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil (1650 –
1720), São Paulo, Fapesp, 2002, p. 167.
[8] Studart, Guilherme, Geografia do
Ceará, Fortaleza - Ceará, Expressão Gráfica, 2010, p. 172 a 179.