ARMADURAS SERTANEJAS DE
COURO
Heitor Feitosa Macêdo
Sob
um viés econômico, pode-se dizer que a invasão
branca do interior do território brasileiro se deu por força de três
atividades básicas, batizadas pelos nomes de ciclos econômicos (da cana-de-açúcar, do ouro e do gado). Porém, foi
o criatório do gado que mais contribuiu para a ocupação portuguesa do interior continental, antigamente conhecido pelo nome
genérico de sertão.
Vaqueiro dos Inhamuns/CE. |
A
cultura desenvolvida em torno da atividade da pecuária extensiva ditou costumes
que ainda podem ser vistos no sertão pré-globalizado, a exemplo das vestimentas
de couro utilizadas pelos vaqueiros, coisa que não surgiu de modismos ou
frivolidades estéticas, mas da necessidade de adaptação ao meio ambiente.
As
couraças usadas pelos vaqueiros possuem uma finalidade principal, qual seja,
proteger seus usuários dos danos causados pelos obstáculos que se apresentam
nos campos de pastoreio, em especial, a vegetação espinhenta, pois, durante o
ato de rastrear (rastejar) e
perseguir os animais dispersos pelos pastos, caules, galhos e espinhos podem
matar, cegar ou ferir gravemente.
Como
é sabido, até o início do século XX, os campos de pastoreio se encontravam
desimpedidos pelas cercas, permitindo que as manadas migrassem por grandes
distâncias, alimentando-se no chamado fundo
de pastos. Dessa maneira, ao vaqueiro da fazenda e aos seus camaradas cabia a tarefa de reunir o
gado, principalmente na época da ferra,
quando a marca do dono era gravada com um ferrete em brasa na epiderme dos
animais, símbolo que atestava a propriedade de um indivíduo, o fazendeiro,
sobre os referidos semoventes.
Com essa incumbência, o vaqueiro, no cimo do pequeno e veloz
cavalo sertanejo (conhecido por pé-duro ou pangaré), adentrava a mata para arrebanhar
o gado, em perseguições titânicas, envelopados em couro animal (de caprinos,
bovinos ou de veados), à feição de armaduras vermelhas, vulgarmente chamadas de
gibões ou véstias. Mas os designers dessas
vestimentas protetoras variavam, a depender do sertão, ou melhor, do ambiente.
Entretanto, não bastava serem as roupas dos vaqueiros feitas
de couro; também exigiam elas proporções e desenhos diferentes, capazes de
atenderem às necessidades impostas pelos diferentes tipos de vegetação. Assim,
por exemplo, o gibão usado no sertão dos Cariris Novos (Cariri cearense) não é
o mesmo utilizado no sertão cearense dos Inhamuns. No primeiro, em razão da
densidade da flora (Mata Atlântica, Cerradão e Cerrado), o chapéu tem de ser
confeccionado com a aba mais curta, geralmente de três dedos, pois, durante a correria
no interior das matas, tal objeto tende a ser comprimido contra o rosto do
vaqueiro, mas, pelo seu pequeno diâmetro, a visão não fica prejudicada. Já o
chapéu do vaqueiro inhamunsense tem a aba mais longa, em regra, com quatro ou
cinco dedos de comprimento, isto em decorrência de ser a cobertura vegetal
menos densa (caatinga), e, por isso, geralmente, não chega a encobrir os seus
olhos. Outro motivo para a variação do tamanho das abas do chapéu do vaqueiro
remete ao índice pluviométrico e à incidência de luz solar em determinados
lugares, pois as abas maiores protegem os olhos do excesso de luminosidade,
porém, em regiões chuvosas, estas abas, quando molhadas, tendem a desabar sobre
a fronte do vaqueiro.
Igualmente, mesmo em sertões vizinhos, as calças utilizadas
pelos vaqueiros também não são as mesmas, havendo alguns diferentes tipos: a puxe, a roladeira, a perneira e a
guarda. Fato que também se deve ao
tipo de cobertura vegetal de cada área.
Vaqueiro do Cariri, CE. Fonte (Blog Caririhistória) |
Por último, a respeito das outras duas calças, perneiras e guardas, utilizadas no sertão do Seridó (entre os estados do Rio
Grande do Norte e Paraíba), leciona Lamartine de Faria que as perneiras são bem justas, terminando em
bicos que protegem o dorso do pé, atadas por correias que passam por baixo das
alpercatas; já as perneiras, mais
usadas no litoral-agreste, são menos apertadas e mais curtas, não se
prolongando até o dorso do pé, etc.
Como se percebe, a adaptação do homem interiorano ao meio
constitui uma necessidade de sobrevivência, pena que o estudo da funcionalidade
dessas couraças ainda seja tímido e que os compêndios escritos se ocupem,
preponderantemente, da simples estética dessa arqueologia antropológica que
representam tais armaduras epiteliais, outrora, ferramentas indispensáveis para
a economia e para existência de um povo em grande parte do Brasil.