ANTIGAS
FAZENDAS - SERTÃO DOS INHAMUNS: A CASA DO ESTREITO
Heitor
Feitosa Macêdo
As antigas habitações humanas ajudam a contar parte da
história dos povos sob múltiplos aspectos, no que concerne à técnica, aos
hábitos e costumes, dentre outras matérias correlatas. Tudo isto possibilitando
a análise do passado a partir das antigas construções que abrigaram os
personagens motores da nossa história.
Casa do Estreito, Arneirós/CE. |
O “homem colonial” arranchou-se primeiramente em nichos que
pouco variavam das cavernas pré-históricas, verdadeiras choças, algumas
circulares, de influência indígena, algumas de palha, outras entremeadas com
barro e pedra. Pouco depois, predominou a casa quadrangular, espalhada pelos
sertões há algumas centenas de anos.
Essas vetustas edificações de alvenaria tendem a
extinguirem-se pelas intempéries naturais, mas outro fator preponderante reside
no hábito nefando de o sertanejo não preservar devidamente os principais
monumentos representativos de sua história. Neste sentido, poucos são os que
hesitam em danificar as antigas casas abandonadas para retirar-lhes a matéria
prima, reaproveitando-a em construções mais recentes e menos significativas.
Essa ameaça visa tanto às portentosas casas senhoreais
quanto os casebres construídos durante o ciclo do gado. Indiscriminadamente, a
predominante construção de rústica taipa, ou as edificações de pedra e cal, são
alvos da incúria dos “matutos” que, levados pela globalização cultural,
alinham-se à moderna uniformização de suas residências.
Assim, inicialmente arrancam-lhe as telhas canais, enormes,
moldadas em eras passadas sobre as coxas dos cativos. Em seguida, extraem a
grossa madeira de lei que reveste o vertical telhado, geralmente composto de
cedro, imune aos cupins, penetrável apenas pelos grossos pregos artesanais, que
unem o madeiramento, este, lavrado a golpes de machado por carpinas das eras
passadas.
Ruínas da Casa do Estreito. |
Em seguida, vitimam as
paredes centenárias que, com espessuras superiores a um metro de largura,
suficientemente resistiriam a uma bala de canhão. Os casarões dos antigos
senhores paulatinamente convalescem pelas mãos que lhes retiram os imensos
tijolos, os quais ainda guardam em suas superfícies as marcas de dedos dos seus
remotos construtores, certamente escravos-pedreiros.
Algumas vezes, em vez do tijolo adobe, a casa é composta de pedra e cal, conferindo grande solidez ao conjunto arquitetônico. As pesadas lascas de imensas pedras, entremeadas pelo hidróxido de cálcio, obtido a partir de outras rochas, formam verdadeiro penedo habitacional, à semelhança dos fortes medievais. Em razão disto, tais casas haveriam de transpor séculos, não fosse a deletéria ação humana.
Algumas vezes, em vez do tijolo adobe, a casa é composta de pedra e cal, conferindo grande solidez ao conjunto arquitetônico. As pesadas lascas de imensas pedras, entremeadas pelo hidróxido de cálcio, obtido a partir de outras rochas, formam verdadeiro penedo habitacional, à semelhança dos fortes medievais. Em razão disto, tais casas haveriam de transpor séculos, não fosse a deletéria ação humana.
Ao final, apenas uma pequena elevação de terra recobre o
antiquíssimo alicerce, que o sertanejo chama de murundu, e, por vezes, ainda
repousa nessa superfície algum fragmento de telha ou tijolo, como cruzes postas
sobre túmulos de cadáveres anônimos, devorados pelo tempo.
Essas catacumbas dormem silentes, penetrando no
esquecimento, uma a uma, enquanto o concreto armado invade os campos, cheio de
ferro e cimento, bem acima dos primeiros lares de nossa antiga gente.
Em razão disso, é premente registrar uma dessas edificações,
hoje, literalmente arruinada. Trata-se da casa da Fazenda Estreito, localizada
no município de Arneirós/CE, à margem direita do Rio Jaguaribe.
A história dessa edificação confunde-se com a trajetória dos
seus moradores e das gerações que se sucederam sob o seu teto. Portanto, cabe
mencionar o seu primeiro senhor, o célebre Coronel João de Araújo Chaves.
Desde o início da ocupação do território cearense a família
do dito coronel esteve presente, pois seus bisavós haviam migrado do Baixo São
Francisco (Penedo/AL), durante a expansão do ciclo econômico do couro, compondo
as primeiras levas de desbravadores daqueles sertões.
À época dessa migração, tal grupo já era abastado, porém, na
Capitania do Ceará, haveria de conquistar enorme poder, através dos “serviços
reais”: devassando o território, capturando índios e pagando tributos à Coroa,
ao passo que adquiriam patentes do oficialato, bem como terras de sesmarias de
sertão adentro.
Por
relevantes razões o governo português malquistou-se com os Araújo Chaves,
tratando-os com verdadeira mão de ferro. Um dos motivos deu-se por conta de o
referido grupo ser confundido com os seus primos, os Feitosa, envolvidos na
guerra de 1724. Apesar da participação discreta dos Araújo Chaves neste
conflito, a indistinção entre as duas famílias fora inevitável, ganhando foros
de generalidade.
O outro motivo deu-se quase cem anos depois que os Araújo
Chaves se alocaram no Ceará, quando enfrentaram grande percalço, ao que tudo
indica, em decorrência de seu crescente poder, o que causava incômodo às
autoridades. Este momento é representado com a prisão do dito Coronel Manoel
Martins Chaves em 1805, realizada pessoalmente pelo governador João Carlos Augusto
d'Oeynhausen e Gravembourg, Marquês de Aracati e afilhado da Rainha D. Maria I, a
Louca.[1]
Os Araújo Chaves dominavam hegemonicamente o cume da
Ibiapaba, na região Norte do Ceará, na Serra dos Cocos, enquanto que nos
Inhamuns dividiam o poder com os seus parentes, os Feitosa.
Entre os bisavós do Coronel João de Araújo Chaves destacam-se
o Capitão-mor José de Araújo Chaves e o Coronel João Ferreira Chaves, irmãos
que haviam se tornado grandes latifundiários no território cearense,
principalmente no Acaraú e nos Inhamuns.
Na Ribeira dos Inhamuns, mais precisamente no Rio
Carrapateira, em Tauá/CE, apeou-se o avô paterno do Coronel João de Araújo
Chaves, com igual nome e mesma patente militar. Então, o primeiro Coronel João
de Araújo Chaves era o fundador da Fazenda Carrapateira, sendo sucedido por seu
filho, homônimo, o Sargento-mor João de Araújo Chaves.
O Coronel João de Araújo Chaves “do Estreito” era, desde o
seu avô, o terceiro com este mesmo nome. Havia nascido em “berço de ouro”, fato
que se somaria ao seu talento militar, possibilitando sua ascensão como uma das
figuras mais destacadas da época.
Ao que tudo indica, foi o edificador da Casa do Estreito,
pois é o primeiro a ter o seu nome ligado à dita propriedade, ou seja, “Coronel
João de Araújo Chaves do Estreito”. Entretanto, a data da construção deste
imóvel não é conhecida, podendo-se apenas presumir que tenha ocorrido no início
do século XIX.[2]
Depois de atingir a idade adulta, João de Araújo Chaves
(futuro Coronel de Cavalaria) adentrou a vida militar, na qual lograria grande
sucesso. À época, ao lado da liderança militar estava o poder da administração
pública, sendo o oficialato, além de um dever beligerante, também uma
incumbência política. Nesses termos, o Coronel João de Araújo Chaves (do
Estreito) substituiu ao pai, o Sargento-mor João de Araújo Chaves[3],
no ônus militar e na gestão pública.
Mas todo esse poderio
era dividido principalmente com um dos irmãos do dito Coronel, o riquíssimo
Antonio Martins Chaves, domiciliado na Fazenda São Bento, possuidor de setenta
e cinco fazendas[4]
e o último Capitão-mor do Ceará[5].
Este, já ancião, no dia 11 de março de 1851, era chefe do partido liberal, e
encontrava-se preso por conta da perseguição promovida pelos membros da família
Fernandes Vieira.[6]
Esses dois irmãos haviam contraído casamento dentro da
família Feitosa, sendo todos ligados ao partido liberal. O Capitão-mor Antonio
Martins Chaves casou-se com D. Maria Primeira de Araújo Chaves (filha do
Capitão Leonardo de Araújo Chaves e D. Rita Alves Feitosa),[7] enquanto
que o Coronel João de Araújo Chaves contraiu núpcias com D. Josefa Alves
Feitosa (filha do Tenente-coronel Eufrásio Alves Feitosa)[8].
Os feitos militares do Coronel João de Araújo Chaves estão
intimamente ligados aos principais episódios bélicos da época, iniciando o
exercício de tais funções a partir de 1823, na “Guerra de Independência do
Brasil”, depois, em 1824, quando participou contra a Confederação do Equador,
e, em 1832, guerreando contra Joaquim Pinto Madeira, na chamada “Guerra do
Pinto”.
Ruínas da Casa do Estreito. |
Pela arquitetura da
referida casa, com detalhes bastante requintados para os sertões daquele tempo,
com platibandas, biqueiras, alvenaria de pedra e cal etc., é provável que tenha
sido construída no início do século XIX. Representando não só um estilo
arquitetônico, mas o modus vivendi
dos sertanejos das eras passadas.
Por fim, atualmente, o solar do Estreito foi desapropriado pelo Governo Federal, encontrando-se em ruínas, ilhadas pelas águas do Jaguaribe, prestes a entrar em total esquecimento. Certamente, a história da Casa do Estreito confunde-se com a história de um povo, estando ameaçada pelo abandono e pelo descaso público.
Por fim, atualmente, o solar do Estreito foi desapropriado pelo Governo Federal, encontrando-se em ruínas, ilhadas pelas águas do Jaguaribe, prestes a entrar em total esquecimento. Certamente, a história da Casa do Estreito confunde-se com a história de um povo, estando ameaçada pelo abandono e pelo descaso público.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
Bezerra, Maria do Carmo Lima, Notas sobre Casas e Fazendas dos Inhamuns,
Brasília, Edições do Senado Federal, Volume 185, 2012.
Chandler, Billy Jaynes, Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns: A História
de uma Família e uma Comunidade no Nordeste do Brasil – 1700-1930,
Fortaleza-CE, Edições UFC, 1981.
Freitas, Antônio Gomes de, Inhamuns (Terra e Homens), Fortaleza-CE,
Editora Henriqueta Galeno, 1972.
Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, O Cearense, 1º de abril de 1852, p. 02, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=709506&pesq= Acesso em:
20/03/2013.
[1] O Coronel Manoel Martins Chaves
foi acusado da morte de um juiz ordinário Antonio Barbosa Ribeiro, na Vila Nova
Del’Rei, atual cidade de Guaraciaba do Norte.
[2] Maria do Carmo Lima Bezerra
registra que a dita casa teria sido erguida na segunda metade do século XVIII,
porém, afirma que seu fundador teria sido o “Coronel José de Araújo Chaves”, o
que não condiz com realidade, pois não há nenhum indivíduo com este nome, José
de Araújo Chaves, utilizando a patente mencionada, de coronel (In Notas sobre
Casas e Fazendas dos Inhamuns, Brasília, Edições do Senado Federal, Volume 185,
2012, p. 100).
[3] Freitas, Antônio Gomes de,
Inhamuns (Terra e Homens), Fortaleza-CE, Editora Henriqueta Galeno, 1972, p.
69.
[4] Chandler, Billy Jaynes, Os
Feitosas e o Sertão dos Inhamuns: A História de uma Família e uma Comunidade no
Nordeste do Brasil – 1700-1930, Fortaleza-CE, Edições UFC, 1981, p. 158.
[5]
Chandler, Billy Jaynes, Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns: A História de uma
Família e uma Comunidade no Nordeste do Brasil – 1700-1930, Fortaleza-CE,
Edições UFC, 1981, p. 61.
[6] Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, O Cearense, 1º de abril de 1852, p. 02, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=709506&pesq=
Acesso em: 20/03/2013.
[7] Feitosa, Leonardo, Tratado
Genealógico da Família Feitosa, Fortaleza-CE, Imprensa Oficial, 1985, p. 60.
[8] Ibidem, op. cit., p. 59.