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domingo, 24 de junho de 2018

A Participação dos d’Ávila e da Casa da Torre na Invasão a Capitania do Ceará




A Participação dos d’Ávila e da Casa da Torre na Invasão a Capitania do Ceará
                                                                                              Heitor Feitosa Macêdo
Ainda no século XVI, pouco tempo depois do “achamento” do Brasil, alguns portugueses migraram para as terras do Novo Mundo, ocupando primeiramente o litoral, e, entre esta gente, estavam velhos personagens da história nacional, como Diogo Álvares Correia, celebrizado pela alcunha de “Caramuru”, o qual se estabeleceu numa das praias baianas, em Itapuã (pedra redonda). Então, o “filho do trovão”[1] casou-se com uma índia Tupinambá, conhecida por Paraguaçu ou Guaibim-Pará (mar grande ou rio grande[2]), cujo nome cristão era Catarina Álvares[3].
Ruínas da Casa da Torre, BA.

Quase que na mesma época, outro português, chamado Garcia de Ávila (d’Ávila), havia chegado ao Brasil juntamente com o governador-geral Mem de Sá. Como nesse tempo a Bahia era o centro mais desenvolvido da Colônia, Garcia d’Ávila resolveu ir residir em uma de suas praias, escolhendo um alto denominado de Tatuapara (tatu bola), onde ergueu uma casa-forte, feita de barro, e nela pôs a índia Francisca Rodrigues, com a qual viveu maritalmente. A casa foi batizada de “Casa da Torre de São Pedro de Rates”, ficando mais conhecida por “Casa da Torre”.


Algum tempo depois, uma filha de Garcia d’Ávila, por nome Isabel d’Ávila, uniu-se matrimonialmente a Diogo Dias, neto do referido Caramuru, originando-se desse casal uma longa descendência, a qual habitou a referida Casa da Torre por mais de trezentos anos, sendo que dessa estreita relação, entre a família d’Ávila e o dito imóvel, surgiu uma verdadeira sinonímia, isto é, falar no sobrenome d’Ávila equivalia dizer também Casa da Torre.
As primeiras gerações dos d’Ávila que se sucederam nesta casa-forte eram de sertanistas, que, para aumentar suas posses, invadiam o interior do continente à cata de terras, pedras preciosas, ouro, prata, salitre e índios. Assim, movidos por esta ambição, esses Caramuru cruzaram os sertões, dominando quase todo o território compreendido pela atual Região Nordeste do Brasil.
Durante suas migrações pelo interior do continente brasileiro, da margem esquerda do Rio de São Francisco, os d´Ávila subiram pelo curso do Rio Pajeú, através da capitania de Pernambuco, por onde foram esbarrar nos paredões da Chapada do Araripe. Desviando de tal elevação geológica, por ambos os lados: à direita, marcharam pelos sertões da Paraíba; já à esquerda, rumaram em direção ao Piauí, ocupando parte destes vastos espaços com suas sementes de gados. Além disso, para garantir a aquisição destes sertões “recém-descobertos”, os d’Ávila requeriam a posse sobre tais áreas às autoridades competentes, alegando serem terras devolutas, desaproveitadas e desertas.  
Todavia, apesar de o povo da Casa da Torre ter explorado e adquirido vastas áreas nos sertões ao redor da Chapada do Araripe (PE, PB e PI), por que também não o teria feito em relação à capitania do Ceará?
Tal questionamento ainda gera muita polêmica na atualidade, dividindo os estudiosos entre os que negam a presença de gente a serviço dos d’Ávila (Casa da Torre) no CE e os que afirmam o contrário.           

1 O Impasse sobre o Tema        
Uma antiga discussão sobre a ida dos representantes da Casa da Torre à capitania do Ceará perdura até o presente momento, havendo discordância cíclica entre grandes historiadores, divididos dicotomicamente: de um lado, os que negam a presença dos d’Ávila e sua gente no Ceará; e, do outro, aqueles que afirmam que os representantes da Casa da Torre estiveram, no período colonial, em terras cearenses.
Apesar dos acalorados debates que o assunto já gerou, pouco se descobriu nesse sentido, até hoje não sendo apresentadas evidências suficientes para se fazer qualquer afirmação segura sobre o tema, restando parcos elementos que só aumentam as dúvidas, sem trazer nenhuma informação substancial e segura.
Dr. Pedro Théberge

1.1 Os que defendem que gente a serviço da Casa da Torre esteve no Ceará
A tradição oral foi a primeira voz a divulgar que a Casa da Torre teria sido a primeira desbravadora e possuidora das terras no sul do Ceará. Estas informações foram dadas pelos descendentes dos primeiros “povoadores brancos”, mais precisamente, por um filho do brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro e uma bisneta do coronel João Correia Arnaud, ambos parentes dos d’Ávila.


Os responsáveis pelo registro escrito das duas versões orais foram João Brígido[4], Pedro Théberge[5], Tristão de Alencar Araripe (Conselheiro)[6] e o professor Bernardino Gomes de Araújo[7]. Estes autores publicaram as referidas “crônicas” ainda no século XIX. Assim, como era de se esperar, esses primeiros registros influenciaram um considerável número de historiadores e pesquisadores, que trataram de propagar quase que invariavelmente a mesma versão.
Conselheiro Tristão de Alencar


Ao lado desses cronistas do século XIX, que acreditam que gente a serviço da Casa da Torre esteve no sul no Ceará, estão também Pedro Calmon[8], Luiz Alberto Moniz Bandeira[9], Vinícius Barros Leal[10], Vieira Júnior[11], Rosiane Lima Verde Vilar Mendonça[12], Antonio José Oliveira[13], etc.

1.2 Os que negam que gente a serviço da Casa da Torre esteve no Ceará
Contrapondo-se às ideias dos “cronistas” do século XIX, os escritores do período positivista negaram fervorosamente que gente a serviço da Casa da Torre tivesse adentrado à capitania do Ceará, explorando e requerendo terras.
Os principais expoentes dessa corrente foram o Barão de Studart[14] e, principalmente, Antonio Bezerra[15], os quais, munidos de farta documentação sobre a ocupação do Ceará (cartas de datas e sesmarias), não vislumbraram o nome da Casa da Torre no processo de ocupação do solo cearense e, por isso, negaram tal ocorrência pela falta de “fontes primárias”, ou seja, conferiram inexistência a um fato que não puderam provar.
Antônio Bezerra
Essa corrente ganhou muitos adeptos, constando entre seus simpatizantes pesquisadores de renome como Raimundo Girão[16], Carlos Studart Filho[17], José Aurélio Câmara[18], Padre Antônio Gomes de Araújo, Irineu Pinheiro[19], Yony Sampaio[20] e outros.

2 Antigas Evidências de que pessoas a serviço da Casa da Torre estiveram na Capitania do Ceará Grande
Ao longo dos acirrados debates entre os especialistas, os elementos usados como prova da presença dos d’Ávila no Cariri cearense sempre foram rebatidos pelos integrantes da corrente contrária (os positivistas e seus adeptos), pois fatos narrados pela oralidade e crônicas históricas não convenciam diante da falta de documentos “comprobatórios”.


Desta feita, a partir de agora, serão arroladas as principais evidências existentes sobre a estada de pessoas a serviço da Casa da Torre no território do Cariri cearense, a começar pelos elementos aduzidos pelos primeiros estudiosos, elementos estes que serão complementados por novas fontes, extraídas de uma documentação ainda inédita, na maioria, oriunda do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal.

2.1 A Lagoa da Torre ou Lagoa do Corgo        
Alguns dados já haviam sido cogitados por João Brígido e Pedro Théberge no que se refere à presença da Casa da Torre no sul do Ceará, sendo um dos mais significantes a chamada Lagoa da Torre, como foi batizada a lagoa onde, segundo a tradição, os indivíduos da Casa da Torre teriam acampado nas proximidades do Icó/CE, depois de marcharem pelos Cariris Novos, seguindo pelas margens do Rio Salgado.
Antes do ano 1862, o médico francês Pedro Théberge, residente na Vila do Icó, dedicou algumas páginas à história sobre a presença de gente da Casa da Torre no Ceará, isto ao falar sobre a “descoberta” do Cariri feita por um negro da fazenda Várzea, pertencente aos D’ávila mas administrada por um tal de Medrado:
Partiu pois com alguns Cariris para o rio de San’ Francisco, e levou-os à fazenda da Várzea onde foram não só bem acolhidos, como ainda o seu pedido de socorro atendido. O mesmo intendente da casa da Torre, de quem acima falamos, desejando estender os domínios da sua procuradoria, mandou para o Cariri uma bandeira de 200 homens às ordens de João Correia Arnaud, da família Caramuru. Chegou esta bandeira até a Cachoeira da Missão Velha, porém nada mais fez do que explorar o país, visto o estado de anarquia em que encontrou os índios. Continuaram seu caminho pelo rio Salgado abaixo até perto de sua foz no Jaguaribe, e nesta derrota plantaram arraial perto de uma lagoa que se acha nas imediações da cidade do Icó, a qual denominavam Lagoa da Torre, apelido que ainda hoje conserva. Aí tiveram um encontro com os índios da tribo Icòzinhos, depois do qual voltaram para o Cariri, onde não deixaram estabelecimento algum, a não ser uma caiçara, pouco distante da Cachoeira, e umas novilhas e dois touros situados. Este primeiro reconhecimento teve lugar pouco mais ou menos em 1670. Fui informado deste fato e dos seguintes por um escrivão interino que leu esta crônica num livro do Cartório, que entregou a outro; e nesta mudança extraviou-se dito livro, que nunca mais pude encontrar, não obstante os esforços que empreguei.[21]   

Apesar de Théberge ter se fundamentado, em parte, na tradição oral que permeava a memória do povo daquele tempo, também se respaldou em documentos, mesmo que indiretamente, pois, como disse o autor, obteve tais informações de um escrivão, o qual havia lido tudo isto em um livro do Cartório do Icó.
Antonio Bezerra menciona que a Lagoa da Torre estava localizada ao sul da cidade do Icó, porém, ataca a tese de João Brígido e Pedro Théberge utilizando os documentos sesmariais, anotando que a Lagoa da Torre se chamou, primitivamente, de Lagoa do Corgo, e com este nome a obteve por sesmaria, em 28 de abril de 1707, o coronel Sebastião Lopes de Souza. Ainda, sobre a dita lagoa, acrescenta Bezerra que:
Ficava ela nas ilhargas da data do coronel João da Fonseca Ferreira, dono da sesmaria do Icó, e a êste veio a pertencer por troca que fez com o seu proprietário, conforme os depoimentos do coronel Teodosio Nogueira, e das outras testemunhas na ação já referida, intentada pelo capitão-mor Bento da Silva e Oliveira contra os herdeiros do coronel Francisco de Montes Silva em 1743. Ora, para se dar o nome de Torre ao lugar que já tinha o de Corgo, é preciso supor a conquista posterior ao ano de 1707, o que não é possível e nem o admite a tradição, que afirma terem ali acampado os bandeirantes na era de 1590, cento e dezasete (sic) anos antes da data da sesmaria do coronel Sebastião.[22]

O argumento de Antonio Bezerra é robusto, porque, realmente, se a dita lagoa foi pedida como sesmaria na data de 1707, com o nome de Lagoa do Corgo, na concepção deste autor, o outro nome, Lagoa da Torre, só poderia ter sido dado em momento posterior à referida data, indicando que a Casa da Torre não teria se antecipado na aquisição dessas terras, muito menos teria adquirido qualquer nesga desse solo depois de 1707, pois não há qualquer menção à Casa da Torre nos documentos das sesmarias do Ceará.


Porém, não atinou Antonio Bezerra que a palavra “corgo” era uma variante de “córrego”[23], sendo uma expressão bastante utilizada para identificar áreas inundadas por corrente d’água. Ao lado disso, era frequente que uma mesma porção de terra fosse pedida, sucessiva ou simultaneamente, por pessoas não associadas, o que ensejava o registro de uma sesmaria, na mesma localidade, com nomes diversos, conforme eram apresentados os requerimentos por cada peticionário perante as autoridades alocadas no distante litoral. 
Às vezes, intencionalmente, um sesmeiro, tentando esbulhar outro, peticionava uma sesmaria já ocupada, fazendo uso de uma denominação diversa da que constava nos Livros das Sesmarias e da Fazenda Real, com o objetivo de alcançar, de má-fé, uma doação de terras, o que, posteriormente, gerava litigância entre tais sesmeiros.
Como já foi dito, “corgo” era uma denominação bastante comum na época para identificar certas localidades, inclusive, uma data de sesmaria anterior à data de 1707, na “Ribeira do Jaguaribe”[24].
Dessa maneira, não é impossível que a Casa da Torre tenha estado nessa lagoa, ao sul da cidade do Icó, fato que pode ter ensejado o nome “Lagoa da Torre”[25]. Aparentemente, as expressões “Lagoa da Torre” e “Lagoa do Corgo” foram usadas, concomitantemente, para definir o mesmo espaço, mas, no decorrer do tempo, a primeira expressão teve preponderância[26].
Ademais, a Casa da Torre e os moradores do Cariri vieram a disputar o referido espaço, como será demonstrado em momento oportuno, e, por isso, é compreensível que cada uma das partes fizesse uso de argumentos que pudessem favorecer a sua própria causa, tentando excluir seus adversários do domínio das terras. Assim, ao tempo destas disputas, é lógico que, negar a existência do topônimo Lagoa da Torre, seria uma maneira de tentar suprimir a presença de pessoas a serviço da Casa da Torre no Ceará e, consequentemente, a posse dos d’Ávila sobre as áreas do litígio.

2.2 A Sesmaria indicada por Tristão de Alencar Araripe e João Brígido


João Brígido dos Santos não restringiu suas investigações apenas ao campo da tradição oral, que, em sua opinião, “inspirava tão pouca confiança”[27], assim, buscou fontes documentais, como, por exemplo, nos “arquivos da antiga segunda comarca”[28], isto é, nos manuscritos da Comarca do Crato, criada desde 1816[29]. Acrescente-se que, por volta de 1860, todos os antigos arquivos da Câmara da referida cidade estiveram na posse de João Brígido[30].
João Brígido


O espírito investigador de João Brígido impulsionava sua leitura tanto para velhos livros manuscritos como para obras importantes, assim, esmiuçando os escritos de Tristão de Alencar Araripe, identificou uma sesmaria doada em 1688 à Casa da Torre. Segundo Tristão de Alencar, essa doação foi feita em favor do coronel Francisco Dias Ávila e de mais quatro pessoas, sendo que a área compunha-se de 10 (dez) léguas de comprimento no Rio Jaguaribe, cujas margens estavam ocupadas pelos índios, que impediam o povoamento, ao passo que esses peticionários se propunham a dominar tais aborígenes.[31]
Certamente, em vista das dificuldades técnicas para fazer cópias de arquivos dessa natureza, Tristão de Alencar e João Brígido não apresentaram a referida carta de sesmaria na íntegra, gerando a incredibilidade de outros estudiosos, que combateram essa evidência sob o argumento de não a ter encontrado. Foi este o mote utilizado por Antonio Bezerra:
Não encontrei essa sesmaria, nem dela tive notícia senão pelo Conselheiro Araripe, que lhe dá publicidade a página 65 da Historia da Provincia do Ceará, de onde a extraiu o coronel João Brígido nas mesmas palavras. Se por acaso foi concedida, não foi registrada nem teve efeito; pois que em terras da capitania não consta haja alguma situada por pessoa ou pessoas da casa da Torre, da qual era chefe o referido coronel Dias de Avila, que tinha a sua residência a 12 léguas da cidade da Baía.[32]

Perante este dilema, J. de Figueiredo Filho se fez a seguinte pergunta: “Teria feito o Cariri parte de sesmaria dos bandeirantes da Casa da Torre da Bahia – os Ávilas?”[33]. E a resposta dada por ele foi a de que: “Isto nunca foi comprovado e sua presença, nestas paragens, permanece incógnita”[34]. Porém, paradoxalmente, Figueiredo Filho ressalta que Renato Braga havia encontrado uma sesmaria doada à Casa da Torre no território cearense, nos seguintes termos:
Figueiredo Filho


Os colonos baianos, não se foram aqui os principais titulares das terras de sesmarias, co-povoadores de latifúndios de léguas. Consagraram-se, assim, fecundos e co-fundadores do Cariri, depois co-partes em sua revelação ao sôpro expansionista da Casa da Torre da Bahia, a qual requereu sesmaria no Ceará, conforme o identificou RENATO BRAGA, professor catedrático da Escola de Agronomia do Ceará.[35]

Infelizmente, Figueiredo Filho não fez sequer o apontamento da fonte (o nome da obra com a referida descoberta), e, além disso, esqueceu-se da sesmaria de 1688, citada desde o século XIX pelo Conselheiro Tristão de Alencar Araripe e João Brígido. Notadamente, Figueiredo Filho não foi claro em sua manifestação, talvez por haver dúvida, pois, primeiro, disse que a penetração de gente a serviço da Casa da Torre no Ceará era uma “incógnita”, depois, afirmou, com base nos estudos de Renato Braga, que a Casa da Torre obteve uma sesmaria na capitania do Ceará.
Dessa forma, se faltou clareza aos escritos de J. de Figueiredo Filho sobre o referido tema, também faltou a atestação documental dos cronistas (João Brígido e Tristão de Alencar), conforme será visto mais adiante. 

2.3 Evidência apontada pelo Padre Antonio Gomes de Araújo
O Padre Antonio Gomes de Araújo, em sua época, foi o maior especialista no que diz respeito à colonização e ao povoamento do Cariri, dedicando-se ao assunto herculeamente, devassando velhos documentos em busca de aclarar as origens coloniais no sul do Ceará.
Padre Gomes




Sua pesquisa recaiu, principalmente, sobre os desbravadores e povoadores baianos, apontando inúmeros. Nestes moldes, disse: “concordo com a opinião de haverem sertanistas baianos, primeiro em caráter de reconhecimento e depois de povoadores, chegado ao Vale do Cariri partindo da bacia do riacho da Brígida”[36], e, no que concerne a essa primeira incursão, ponderou que: “O fato deve ter ocorrido a partir de 1660”[37]. Porém, dentre os baianos, o autor não explicita claramente se a Casa da Torre foi a responsável pelo descobrimento e desbravamento do Cariri, limitando-se a falar que: “O Vale do Cariri foi conhecido no século 17 pelos batedores do sertão, talvez a serviço da Casa da Tôrre da Bahia”[38].
Por óbvio, o advérbio “talvez”, utilizado no trecho acima, remete diretamente à dúvida, patenteando que o dito pesquisador admitia de forma vaga a possibilidade desse acontecimento, mas não tinha certeza sobre o ocorrido[39].
Além disso, o Padre Gomes, citando Elpídio de Almeida, faz referência a uma sesmaria de 50 léguas obtida pela Casa da Torre, que fazia pião (centro) na Serra do Araripe, tendo sido concedida à margem esquerda do Rio de São Francisco, na segunda metade do século XVII, depois da restauração pernambucana, concluindo o padre que:
...as 50 léguas enfocadas se contava do leste para o oeste, pois, do caudal sanfranciscano até inclusive a chapada da serra do Araripe, não se somam absolutamente 50 léguas. E, agora, mais uma conclusão referente ao indicado peão: a dita chapada não teria sido tomada por peão de sesmaria pela baianíssima Casa da Torre, se esta não a houvesse conhecido previamente. A chapada é também Cariri cearense. À luz do exposto, compreende-se porque a Casa da Torre, elastecendo ou empurrando para o Norte o referido peão, demandou contra o potiguar Manuel Rodrigues Ariosa do Vale em torno das terras que este obtivera no ano de 1703, em data de sesmaria (...). A citada sesmaria de 50 léguas datava do ano anterior ao de 1696, e, portanto, igualmente a presença da Bahia em nosso Cariri da chapada Araripana, porque, naquele ano, a serra do Araripe já era conhecida.[40]

Certamente, a sesmaria em comento é a mesma que foi doada aos d’Ávila no dia 8 de outubro de 1657[41], concessão feita pelo capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, tendo sido doadas “dez léguas de sesmaria para cada um dos cinco suplicantes”[42], sendo eles: o capitão Garcia de Ávila Pereira, seu irmão (padre Antonio Pereira) e filhos (Francisco Dias de Ávila, Catarina Fogaça e Bernardo Pereira).
Ainda, sobre essa sesmaria, as terras doadas começavam das margens do Rio de São Francisco (na capitania de Sergipe), fazendo fronteira a outra sesmaria doada anteriormente ao padre Antonio Pereira (no dia 8 de abril de 1654). Ocorre que a delimitação espacial da sesmaria que fora doada no dia 8 de outubro de 1657 era imprecisa, conforme se depreende pela leitura da petição:
...começará esta nova Sesmaria correndo sempre o rumo direito pela beira do Rio de São Francisco acima resalvando pontas enseadas, e as Ilhas que o dito Rio fizer seguindo sempre o rumo direito pela beira do Rio de São Francisco acima, ressalvando pontas, enseadas, e as ilhas que o dito rio fizer, que outrossim pede tambem, e sendo caso que se mettam algumas terras de Catingas e penedio em meio (...) e para a banda do Sul a largura que houver, e couber da Jurisdição desta Capitania até entestar com a da Bahia pelo rumo Leste e oeste que dividir uma e outra, e da nascença do Rio Real para o Sertão com outro tanto de comprimento arriba quanto o que tiver pelo Rio de São Francisco e isso acima com todas as terras Mattos pastos águas que ficarem da banda de dentro porquanto a maior parte do Coração desta terra é de penedias...[43]

A leitura deste documento de doação de terras (data de sesmaria) não fornece qualquer subsídio que possa garantir que a terra em questão incluía o sul do Ceará (o Cariri), restando, também, duvidoso esse apontamento do Padre Gomes.
As assertivas apresentadas pelo Padre Gomes são incapazes de provar a vinda de gente a serviço da Casa da Torre ao Cariri, todavia, seu criterioso estudo merece atenção, pois foi o dito padre responsável por sistematizar o fluxo das migrações de pessoas “brancas”, no período colonial, para o Cariri cearense, evidenciando a significativa participação dos baianos no povoamento dessa região.
Ruínas da Casa da Torre, BA

2.4 Novas Fontes sobre a Presença de Pessoas a Serviço da Casa da Torre na Capitania do Ceará Grande
Depois de acalorados debates acerca da veracidade quanto à posse de terras no Ceará e a exploração das mesmas feitas por gente a serviço da Casa da Torre, novos elementos vêm sendo descobertos a partir de fontes, na maior parte, inéditas, as quais parecem ser suficientes em termos numéricos e qualitativos para se chegar a uma conclusão clara e definitiva sobre o tema.
Muitos desses novos elementos servem para complementar as hipóteses exaradas pela oralidade, ao passo que esta também possui relativa utilidade no que diz respeito ao preenchimento dos vários hiatos existentes nas narrativas documentais. Inegavelmente, o diálogo dessas fontes (orais e documentais) possibilita o entendimento de que houve gente na capitania do Ceará Grande a mando da Casa da Torre, conforme será demonstrado a seguir.

2.4.1 A Sesmaria de 22 de Julho de 1658, na Serra do Araripe
Uma das “senhoras da Casa da Torre”, como eram chamadas as matronas desse morgado, dona Inácia Pereira de Araújo (viúva de Garcia d’Ávila Pereira, o terceiro do nome), em uma demanda judicial contra o governador da Paraíba, que estava doando terras nos sertões desta capitania, requereu ao rei de Portugal que suspendesse, anulasse e invalidasse tais doações.
Os documentos referentes a esse litígio entre a Senhora da Torre e o governador da Paraíba revelam que a Casa da Torre era dona quase que absoluta de todas as terras entre o Rio de São Francisco, a partir da margem esquerda, até os confins dos sertões do Piauí, Pernambuco, Paraíba e Ceará. Nesta questão judicial foram mencionadas as terras nos sertões do “Pajaú” (Pajeú, na capitania de Pernambuco); Piranhas, Rio do Peixe e Piancó (na capitania da Paraíba); e Riachão, na maioria, regiões limítrofes ao Cariri cearense (sul da capitania do Ceará).  
Dona Inácia acostou em seu requerimento, feito ao Rei de Portugal (Dom José), a antiga carta de sesmaria dada em favor dos seus ancestrais, os d’Ávila, datada de 22 de julho de 1658, pela qual André Vidal de Negreiros doava um imenso perímetro sertanejo, que englobava a Chapada do Araripe, no Ceará, chamada na época de “Varipe”, conforme as palavras do próprio Negreiros:

...
2.4.2 Sesmaria de 29 de dezembro de 1683 do Rio Parnaíba até a Serra do Araripe
...
2.4.3 Sesmaria de 1686, das margens do Rio Parnaíba/PI até a Serra do Araripe
...
2.4.4 Sesmaria de 1688, no Jaguaribe e Serra do Araripe
...
2.4.5 Informações de João da Maia da Gama sobre uma antiga sesmaria da Casa da Torre
...
2.4.6 Gente enviada ao Ceará pela Senhora da Torre (1703)
...     
2.4.7 Terras da Casa da Torre no Distrito do Jaguaribe, Ceará (1705)
...
2.4.8 A Invasão do Sertão do Cariri por 400 Homens do Rio de São Francisco (1706)
...
2.4.9 Rumores de que A Casa da Torre receberia a Posse Judicial de Terras na Ribeira do Jaguaribe (década de 1730)
...
2.4.10 O Inventário de Garcia d’Ávila 3º (1753)
...
Conclusão
... 
Confira o restante deste artigo na Revista Itaytera 2018, nº 47.



[1] Segundo Clerot, a tradição sobre “caramurú” significar “filho do trovão” não condiz com a verdadeira semântica desta palavra tupi, pois, segundo ele, a acepção mais correta seria “caray-mború”, isto é, “o valente”, “o poderoso” (CLEROT, E. R. Leon. Glossário Etimológico Tupi/Guarani. Brasília ‒ DF: Edições do Senado Federal, 2011, p. 138).
[2] CALMON, Pedro. Introdução e Notas ao Catálogo Genealógico das Principais Famílias, de Frei Jaboatão, Volume I. Salvador ‒ BA: Empresa Gráfica da Bahia, 1985, p. 155.
[3] Frei Vicente de Salvador relatou ter conhecido a esposa de Diogo Álvares e que ela se chamava Luísa Álvares (SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil. Brasília ‒ DF: Edições do Senado Federal, 2010, p. 178). Porém, Bandeira considera ser isto um equívoco do Frei Vicente, posto que o nome verdadeiro da esposa do Caramuru era Catarina Álvares (BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Feudo: A Casa da Torre de Garcia d’Ávila, da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 59 e 60). 
[4] BRÍGIDO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Fac-símile. Fortaleza ‒ CE: Editora Expressão Gráfica, 2007, p. 16.
[5] THÉBERGE, Dr. Pedro. Esboço Histórico Sobre a Província do Ceará. 2ª Ed. Fortaleza ‒ Ceará: Editora Henriqueta Galeno, 1973, p. 104.
[6] ARARIPE, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará: Desde os Tempos Primitivos até 1850. 2ª Ed. Fortaleza – Ceará: Tipografia Minerva, 1958, p. 26.
[7] Os escritos de Bernardino Gomes de Araújo foram publicados por João Brígido, principalmente no jornal O Araripe (Ver: O Araripe – Biblioteca Nacional. Edição nº 02. Ano III. Nº 133, 06 de março de 1858, p. 02).
[8] CALMON, Pedro. História da Casa da Torre: Uma Dinastia de Pioneiros. 3ª Ed. Salvador – Bahia: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1983, p. 69 e 121.
[9] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit., p. 204, 296 e 297.
[10] LEAL, Vinicius Barros. A Colonização Portuguesa no Ceará: O Povoamento. Fortaleza – Ceará: Gráfica Tiprogresso, 2007, p. 75.
[11] VIEIRA JÚNIOR, Antonio Otaviano. Entre Paredes e Bacamartes: história da família no sertão (1780-1850). Fortaleza: Demócrito Rocha, 2004, p. 28.
[12] MENDONÇA, Rosiane Limaverde Vilar. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio Cultural da Chapada do Araripe. Portugal. Tese de Doutorado em Arqueologia, Universidade de Coimbra, 2014, p. 131.
[13] OLIVEIRA, Antonio José de. Os Kariri-Resistências à Ocupação dos Sertões dos Cariris Novos no Século XVIII. Fortaleza/CE. Tese de Doutorado em História, Universidade Federal do Ceará/UFC, 2017, p. 65 e 66.
[14] STUDART, Barão de. Geografia do Ceará. Fortaleza – CE: Instituto do Ceará, 2010, p. 109.
[15] BEZERRA, Antonio. Algumas Origens do Ceará. Fortaleza – Ceará: Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 108 e 109, 123 e 164.
[16] GIRÃO, Raimundo. Bandeirismo Baiano e Povoamento do Ceará. Revista do Instituto do Ceará, Ano LXII, 1948, p. 18 e 19. Em uma de suas obras, Raimundo Girão defende outra vez que a casa da Torre não esteve no Cariri: “Uma dessas versões dava como influente no movimento povoador da fértil e curiosa região a chamada ‘Casa da Torre’ de Francisco d’Ávila, na Bahia, cujo alargamento desbravador foi enorme. Entretanto, a sua ação não se fêz presente ali. Baianos, realmente concorreram para a ocupação caririense, mas através de famílias que do São Francisco se deslocaram e já em contato com outras pernambucanas entraram a habitar o interessante vale” (GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. 3ª Ed. Fortaleza ‒ CE: Imprensa Universitária, 1971, p. 98).
[17] Nota de Carlos Studart Filho (In ARARIPE, Tristão de Alencar. Op. cit., p. 26).
[18] Nota de José Aurélio da Câmara (In ARARIPE, Tristão de Alencar. Op. cit., p. 27).
[19] PINHEIRO, Irineu. O Cariri: Seu Descobrimento, Povoamento, Costumes. Fortaleza – Ceará: Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 14.
[20] SAMPAIO, Yony. Documentos Históricos Municipais: Livro de Vínculo do Morgado da Casa da Torre. Recife ‒ PE: Centro de Estudos de História Municipal - CEHM, 2012, p. 22.
[21] THÉBERGE. Op. cit., p. 104 e 105.
[22] BEZERRA, Antonio. Algumas Origens do Ceará. Op. cit., p. 126.
[23] Corgo é um substantivo masculino, sendo uma variante popular da palavra córrego (Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 2ª Ed. São Paulo ‒ SP: Mirador Internacional/Enciclopédia Britânica do Brasil Publicações Ltda., 1976, p. 489).
[24] Antes de 1707, no dia 02 de setembro de 1706, Alexandre (ou Lixandre) Neto e Manoel Dias Carneiro solicitaram uma sesmaria na Ribeira do Jaguaribe, na Estrada Real, que ligava o Ceará (denominação genérica das povoações litorâneas da capitania do Ceará Grande, bem a como a chamada Ribeira do Ceará, no caso, o Forte e/ou a Vila de Aquiraz) ao Jaguaribe, nas margens desse rio, terras que englobavam a “Lagoa das Pombas”, da qual saía um “corgo grande”, indo até as proximidades do Riacho Palhano (Ver: Datas de Sesmarias, Volume 3, nº 161. Fortaleza: Tipografia Gadelha, 1925, p. 62 a 64).
[25] Essa lagoa foi soterrada, segundo Honório Barbosa (Diário do Nordeste, Diário Centro-Sul. Disponível em: http://blogs.diariodonordeste.com.br/centrosul/cidades/ico-comemora-nesta-sexta-feira-171-anos-de-emancipacao-politica/. Acesso em 21 de jan. de 2014.
[26] De acordo com Antonio Bezerra, “Lagoa do Corgo” foi o primeiro nome a ser usado, e, “Lagoa da Torre”, teria sido uma denominação mais recente que a anterior. Durante o século XIX, também é usada a expressão, “Lagoa da Torre” (BRÍGIDO, João. Ceará: Homens e Fatos. Fortaleza ‒ CE: Editora Demócrito Rocha, 2001, p. 275).
[27] BRÍGIDO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Op. cit., p. 01.
[28] BRÍGIDO, João. Ceará: Homens e Fatos. Op. cit., p. 78.
[29] Até o ano de 1816, o Ceará possuía apenas uma comarca, que, obviamente, açambarcava todo o seu território. Porém, no dia 27 de junho do mesmo ano, foi criada a Comarca do Crato, que abrangia grande parte do território cearense, qual seja, as vilas do: Crato, cabeça da comarca; São João do Príncipe, hoje, Tauá; Campo Maior do Quixeramobim; Icó; Santo Antônio do Jardim; e São Vicente das Lavras, atualmente, Lavras da Mangabeira. Desta forma, o Ceará passou a ficar dividido, jurisdicionalmente, em duas comarcas (PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza ‒ CE: Imprensa Universitária, 1963, p. 56). O primeiro ouvidor-geral da Comarca do Crato foi José Raimundo do Paço de Porbem Barbosa, nomeado no dia 21 de abril de 1817 e empossado no dia 17 de dezembro do mesmo ano (Actas da Câmara do Crato. Revista do Instituto do Ceará ‒ RIC. Fortaleza/CE, 1911. p. 204).
[30] Essa informação é dada por Francisco Freire Alemão, médico e botânico, que esteve no Ceará na segunda metade do século XIX, e, durante sua estada no Crato, disse: “Fiz alguns trabalhos botânicos e alguns extratos do livro antigo da Câmara do Crato, que contém os atos de criação da dita vila etc. Este livro está em mãos dum particular e decerto não volta mais para o Arquivo! Também todo o Arquivo da Câmara está em casa de João Brígido, que o está estragando!!” (ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão. Fortaleza – Ceará: Fundação Waldemar Alcântara, 2011, p. 218).
[31] O Conselheiro Tristão de Alencar Araripe registrou que: “Em 1688 ao coronel Francisco Dias d’Ávila e mais 4 sócios concedeu-se uma sesmaria de 10 léguas de comprimento no rio Jaguaribe, cujas margens, segundo dizem os requerentes, estavam muito povoadas de gentio bárbaro, e ninguém atrevia-se a povoar, propondo-se êles a reduzir o mesmo gentio” (ARARIPE, Tristão de Alencar. Op. cit., p. 99). Nessas mesmas informações se respaldou João Brígido (Homens e Fatos. Op. cit., p. 398).
[32] BEZERRA. Op. cit., p. 127.
[33] FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri, Volume I. Fortaleza – Ceará: Edições UFC, 2010, p. 20.
[34] Idem.
[35] Ibidem, p. 21 e 22.
[36] ARAÚJO, Padre Antonio Gomes de. Povoamento do Cariri. Crato – Ceará: Faculdade de Filosofia do Crato, 1973, p. 15.
[37] Ibidem, p. 16.
[38] ARAÚJO, Padre Antonio Gomes de. A Cidade de Frei Carlos. Crato – Ceará: Faculdade de Filosofia do Crato, 1971, p. 65.
[39] Raimundo Girão acentuou que o Padre Antonio Gomes de Araújo e Antonio Bezerra “conciliam-se” no que diz respeito ao caso da Casa da Torre no Cariri: “Conciliam-se, assim, Antônio Bezerra e o Padre Gomes, desmanchando as incorreções e lendas em torno do povoamento da famosa região” (GIRÃO, Raimundo. A Marcha do Povoamento do Vale do Jaguaribe (1600 - 1700). Fortaleza ‒ Ceará: [s.n.], 1986, p. 31).
[40] ARAÚJO, Padre Antonio Gomes de. Povoamento do Cariri. Op. cit., p. 35 e 36.
[41] A transcrição dessa carta de sesmaria foi publicada pela Biblioteca Nacional em 1930 (Documentos Históricos, 1656 - 1659, Volume. XIX. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Tipografia Monroe, 1930, p. 450 a 456).
[42] Ibidem, p. 452.
[43] Ib., p. 452 e 453.