MEMÓRIA DA RUA
DA GENTE
Heitor
Feitosa Macêdo
Falar na malha urbana de uma cidade é inevitavelmente fazer
menção as suas ruas, e, por conseguinte, aos seus nomes, tomados de coisas ou
pessoas. No município do Crato/CE isto não é diferente, exceto pelo critério
adotado por alguns homens públicos.
Antigo mapa da Vila do Crato, entre 1815 e 1824. |
Há alguns anos, uma pequenina rua, supedânea à chapada do
Araripe, que vai esbarrar no Centro de Expansão, ao lado do Clube Recreativo
Granjeiro, existe de fato, mas não de direito, por causa de não possuir um
nome, o que tem causado prejuízo aos seus moradores, pois suas correspondências
restam prejudicadas.
Tentando sanar tal situação, pediu-se auxílio a um dos
ilustres vereadores da referida urbe, no entanto, a resposta dada foi a de que
a Câmara municipal andava bastante ocupada com a apuração de denúncias
indigitadas aos membros deste cândido sodalício. Assim, como demanda o bom
senso, parecia razoável esperar a poeira baixar, mas, infelizmente, estas
questões não possuem prazo certo para acabar.
Não mais podendo aguardar o fim do atual impasse que envolve
a administração cratense, mais uma vez outro vereador foi procurado para por
fim ao anonimato da dita rua, sendo a ele remetida a biografia de um português
chamado José Pereira Aço, trisavô do padre Cícero Romão Batista e um dos
primeiros colonizadores do Cariri, ancestral de várias famílias da região, como
os Lima Verde, os Ferreira Lima, os Alencar Araripe, os Maia, os Norões, etc. Este
material compunha-se de documentos inéditos e relatava a importância da forma
como o território cratense havia sido ocupado, sob o pano de fundo dos
primeiros conflitos agrários.
Contrariando as expectativas, o referido edil refutou o nome
do patrício citado, não por motivo ligado ao estranho sobrenome, Aço, ou por
qualquer aspecto que desabonasse aquele filho de Barcelos, mas sim por calcar-se
no fato de tal indivíduo ser muito antigo, por não ter nascido no Crato/CE bem
como por não haver memória recente sobre ele entre os atuais moradores. Ora, de
fato, o José Pereira Aço, por ser um dos primeiros habitantes do antigo
território cratense, imigrado no início do século XVIII, realmente não poderia
aí ter vagido em uma época tão remota, a não ser que, em vez de europeu, fosse
ele um índio Cariri.
Quanto à memória, este é o propósito a que se destinam os
trabalhos escritos como as biografias, não podendo esquecer a relação que isto
guarda com o batismo das ruas, afinal, as coisas e pessoas são relembradas
sempre que um endereço é mencionado.
Percebe-se que, inicialmente, até o século XIX, as ruas do
Crato não eram batizadas com nomes de pessoas, a exemplo da Rua das Nove
Laranjeiras (R. José Carvalho), Rua do Pisa (ou R. das Flores, e, hoje, R. D.
Quintino), Rua Grande (trecho da Miguel Lima Verde), Rua do Fogo (R. Senador
Pompeu), Rua da Missão Velha (R. Tristão Gonçalves ou R. da Vala), Rua da Pedra
Lavrada (R. D. Pedro II), e outras. Porém, diferentemente dos tempos passados,
segue a tendência de (re)nomear tais vias com alcunhas de pessoas, elegendo-se,
teoricamente, os nomes dos indivíduos mais destacados, que contribuíram de alguma
maneira para a coletividade, critério este que vem sendo impiedosamente
vitimado pela amnésia pública.
Esse esquecimento parece ser algo crônico, pelo menos por
parte dos gestores, pois, no que tange aos primeiros povoadores, nenhum deles
figura em nome de rua, quais sejam: Manoel Rodrigues Ariosa (oficialmente, o primeiro
proprietário), Antonio Mendes Lobato (o segundo proprietário), Domingos Alves
de Matos e sua esposa Maria Ferreira da Silva (doadores do atual território
cratense). Nem mesmo o célebre fundador do primitivo núcleo da cidade do Crato,
Frei Carlos Maria de Ferrara, italiano natural de Palermo, nomeia rua na cidade
que ajudou a erguer.
Entre os índios, tanto os tapuias com seus nomes originários
(aborígenes) quanto os que foram batizados com alcunhas cristãs, não consta um
sequer que tenha sido homenageado com o batismo das artérias urbanas cratenses,
salvo a generalidade da Rua dos Cariris.
A velha gente supracitada, na sua maioria, a exemplo do José
Pereira Aço, não é mais estranha ao Crato, em termos de nascimento, do que
outros que servem como denominação de suas ruas, pois dos noventa nomes
arrolados por J. Lindenbergue de Aquino (em Roteiro Biográfico das Ruas do
Crato, 1969), dezenas deles nasceram em longínquas paragens, como Duque de
Caxias, Getúlio Vargas, Rui Barbosa, Santos Dumont e o Presidente Kennedy, que
nem brasileiro era.
Esta omissão do poder legislativo municipal não merece
prevalecer, pois, não fossem os primeiros colonizadores, palmilhando sendas
indígenas (abertas a golpe de facão e alargadas pelas patas bovinas),
assentando fazendas e aldeias artificiais, nada da atual cidade existiria. Isto
porque foi o heroísmo dessa gente, singrando mares, atravessando florestas,
sobrevivendo às adustas caatingas e varando rios a nado, o que garantiu a
conquista do nosso território.
Por ignorância ou por falta de compromisso de alguns homens
públicos para com a memória da cidade do Crato, os heróis do povoamento
sertanejo caem no esquecimento de sua própria gente, relegados à penumbra das
passagens por eles criadas, sepultados aos pés das vias que outrora transitaram
efêmeros e que agora, inertes, aguardam pacientemente os atuais edis, não só em
termos materiais, mas também em ações que reconheçam publicamente o que hoje
lhes têm sido negado, o direito de
permanecer na memória dos cratenses.
Finalmente, o critério utilizado por alguns administradores
públicos para nomear ruas e homenagear seus moradores, segue, além da
conveniência e oportunidade (conferidas pela lei), um subjetivismo incapaz de entender
a origem e os verdadeiros valores de sua gente, sintoma de uma cegueira
política, que faz dessa prática mero deleite pessoal, ou, quando muito, reles
aprazimento para os seus eleitores.
E ainda dizem que o povo brasileiro tem memória curta!
(In Jornal Acontece, 2015)
(In Jornal Acontece, 2015)