Parte II: O Suposto Romance de
Bárbara Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva
Saldanha
Heitor Feitosa Macêdo
Cunhadio e Compadrio entre Bárbara
e o padre Saldanha
Outra
tese que auxilia no exame da suposta convivência amorosa entre o padre Miguel
Carlos da Silva Saldanha e Bárbara de Alencar remete a dois vínculos comuns na
sociedade da época, que são o cunhadio e o compadrio.
Estes dois institutos fazem parte dos
dogmas religiosos da Igreja Católica, estando entre um dos sete sacramentos, e
servem para estreitar laços, criando relações recíprocas de interação social,
com conotação de parentesco espiritual, o que implica diretamente em ligações
mútuas de afeto, coesão, direitos e obrigações. Ressalte-se que, no começo do
século XIX, o cunhadio e o compadrio carregavam um significado muito mais
importante e agudizado que hoje.
Com o casamento, os irmãos de um dos
cônjuges adquiriam a qualidade de parente do outro nubente, sendo chamado de
cunhado. Já no compadrio, esta relação se dava em dois momentos: no batizado
(logo após o nascimento) e na crisma (depois dos 14 anos de idade), porém,
tinha o mesmo sentido, qual seja, a obrigação dos padrinhos (do latim vulgar patrinu, diminutivo de pater, ou seja, pai) de acolherem o
afilhado na ausência dos progenitores, assemelhando-se, grosso modo, a uma relação subsidiária de paternidade e
perfilhação.
Mas como isto pode indicar o
envolvimento amoroso entre Bárbara e o padre Saldanha?
Analisando antigos documentos
paroquiais, constata-se que duas irmãs de Brárbara de Alencar se casaram com
dois irmãos do padre Saldanha.
Antônia Pereira de Alencar, irmã de
Bárbara, casou-se com Manuel Carlos da Silva, irmão do vigário Saldanha, no ano
de 1793:
Em
o primeiro do mes de julho de mil setecentos noventa e treis na capella de
Barbalha pellas nove horas do dia depois de feitas as denunciaçons, que o
depoem o Sagr. Consil. Trid. sem se descobrir empedimento algum em prezensa do Reverendo Padre Miguel Carlos da Sylva
sendo primeiro examinados em Doutrina Cristam, de Parochial licença se
receberam solemnemente por palavras de prezente Manoel Carlos da Sylva natural
da Freguezia do Riaxo do Sangue de donde apresentou Certidam de banhos, filho
legítimo de Manuel Carlos da Sylva e Izabel da Conceiçam com Antonia Perera de
Alencar natural da Freguezia do Senhor Bom JESUS do Enxú de donde apresentou a
certidam de banhos filha legitima de Joaquim Perera de Alencar, e Teodoria
Rodrigues da Conceiçam, logo Receberam as bensons na forma do Ritual Romano, e
asistiram prezentes por testemunhas Antonio Gonsalves de Arahujo Junior, e
Alexandre da Sylva Pexoto, de que mandou fazer este assento, em que me asignei.
Cura
André da Silva Brandão.
Neste
registro paroquial constata-se a presença do padre Miguel Carlos da Silva
Saldanha (repita-se, irmão do nubente), sendo que este casamento ocorreu no
Cariri, mais especificamente, em Barbalha/CE. Sendo provável que Bárbara de
Alencar também estivesse presente, pois também se tratava do matrimônio de sua
irmã, momento de grande festividade.
Além
desta, outra irmã de Bárbara de Alencar, Josefa Pereira de Alencar, depois de
enviuvar, casou-se com Alexandre Carlos da Silva Saldanha (também chamado de
Alexandre da Silva Peixoto), irmão do padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, no
dia 22 de janeiro de 1795:
Aos
vinte e dois dias de janeiro de mil setecentos noventa e sinco nesta Matris de
Sam José pellas nove horas do dia depois de feitas as denunciações, que o
depoem o Sag. Consil. Trid. sem se descobrir empedimento algum em prezensa do
Reverendo Cura André da Sylva Brandão sendo primeiro examinados em dotrina
Cristam se receberam solenemente por pallavras de prezente Alexandre da Sylva
Pexoto natural da Freguezia do Riaxo do Sangue donde aprezentou Certidam de banhos,
filho legitimo de Manoel Carlos da Sylva, e de Izabel Rodrigues da Conceiçam,
com Josefa Pereira de Alencar viuva que ficou do João José sepultado na Matris
do Enxú donde apresentou a certidam de óbito, e aprezentou certidam de banhos
filha legitima de Joaquim Perera de Alencar, e de Teodora Rodrigues, e
asistiram prezentes por testemunhas o Padre
Miguel Carlos da Sylva, e o Padre Francisco Eduardo, de que mandou o
Reverendo Cura fazer este assento, em que com as testemunhas se asignou.
O
Cura André da Silva Brandão
Miguel
Carlos da Sa
O
Pe Francisco Eduardo Paez de Melo.
Nesta
cerimônia de esponsais, também ocorrida no Cariri, desta vez na Matriz de São
José dos Cariris Novos, em Missão Velha/CE, vizinha à Barbalha, nota-se mais
uma vez a presença do padre Miguel Carlos da Silva Saldanha. Como se percebe, por
duas vezes, Dona Bárbara e o vigário Saldanha foram concunhados.
Isto
não deve ser ignorado, pois, à época, os casamentos eram arranjados pelos pais
dos noivos, expressando, além de intenções financeiras (somar ou manter o
patrimônio dos clãs), uma afinidade preexistente entre as famílias, ou seja,
uma interação estreita e, relativamente, antiga.
Portanto, pode-se dizer que Bárbara já
convivia em eventos familiares com o padre muitos anos antes de ele ter ido
residir na então Vila do Crato na condição de vigário, em 1800, o que é
corroborado por outros documentos paroquiais.
Ademais, outro fator relevante reside
no fato de o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha ter sido o padrinho de
crisma do filho caçula de Bárbara de Alencar, José Martiniano de Alencar. Isto
é o que revelam os livros paroquiais da freguesia do Crato, ao citar que, em
1801: “José, filho de José Gonçalves dos
Santos e de Dona Bárbara Pereira, Padrinho o Reverendo Vigário Miguel Carlos
Saldanha”.
Nesse aspecto, merece ser destacado a
prática comum entre os padres, naquelas eras, em apadrinhar seus filhos de sangue.
Foi o que aconteceu com muitos sacerdotes contemporâneos e conterrâneos dos
referidos personagens.
A Data de Nascimento de José
Martiniano de Alencar (o Senador)
Na
História há registros escritos que apontam o vigário do Crato, Miguel Carlos da
Silva Saldanha, como o verdadeiro genitor de todos os filhos de Bárbara Pereira
de Alencar. Porém, o mais comum é indicarem apenas o filho caçula desta
matrona, José Martiniano de Alencar, como sendo filho de sangue do dito
sacerdote.
Em
que pese ser, aparentemente, supérfluo, o exame da data de nascimento do
senador José Martiniano de Alencar ajuda a desvendar alguns fatos, como o
suposto romance, revelando as causas que desencadearam determinados
comportamentos desses personagens históricos.
Um
dos principais argumentos utilizados para negar o enlace entre Bárbara de
Alencar e o padre Saldanha se estriba no ano da chegada deste sacerdote aos Cariris
Novos para exercer sua função de padre, o que se deu, segundo alguns
escritores, em 1800. Sabe-se que o filho mais moço de Bárbara nasceu antes
disso, e, assim, presumem os especialistas que nenhum dos rebentos da heroína
republicana pode ser filho do padre Saldanha, posto que ele morava no Riacho do
Sangue, a 50 léguas de distância. É o que alega Pedro Jaime de Alencar, filho
de Tristão de Alencar Araripe com uma escrava, e, portanto, neto de Bárbara
Pereira:
O
Padre Saldanha somente chegou ao Crato em 1800. Nessa época, José Martiniano,
nascido em 16 de outubro de 1794, já estava na idade de crismar-se. O menino
que, orientado por sua Mãe, almejava a careira (sic) eclesiástica, escolheu o
novo pároco para ser seu padrinho de crisma. Portanto, o Padre Saldanha só veio
a tornar-se compadre de Dona Bárbara e amigo da Família Alencar a partir de
1800.
É um argumento que
possui certa lógica, porém, é extremamente falho!
Atualmente,
não existe unanimidade entre os historiadores ao indicar a data do natalício do
derradeiro filho de Dona Bárbara. Pelo menos quatro datas diferentes são apontadas
pelos que se dedicaram ao assunto, sendo elas: 1792, 1794 e 1797, 1798.
Essa questão sempre esteve imersa em
grandes dúvidas e, até agora, o único documento encontrado a este respeito cita
o dia 02 de outubro de 1794 como sendo o ano de nascimento de José Martiniano
de Alencar:
José,
filho legítimo de José Gonçalves dos Santos e de D. Bárbara Pereira, neto
paterno de João Gonçalves e Teodora Maria, nasceu a dois de outubro, e foi
batizado nesta Matriz sem os Santos Óleos pelo Reverendo Padre André da Silva
Brandão a vinte e dois de janeiro de mil e setecentos e noventa e cinco e foram
seus padrinhos o Reverendo Antônio Leite de Oliveira e Dona Antônia Pereira, de
que mandou o Reverendo Cura fazer este assento no qual se assinou. O Cura André
da Silva Brandão.
Mutatis mutandis,
existe um problema não resolvido, pois no ano de 1832 José Martiniano é
escolhido como senador e toma posse no cargo. Saliente-se que a Constituição
Brasileira de 1824 (no seu Capítulo III, artigo 45) impunha algumas condições
para poder ser senador:
I. Que seja Cidadão
Brazileiro, e que esteja no gozo dos seus Direitos Politicos.
II. Que tenha de idade
quarenta annos para cima.
III. Que seja pessoa de
saber, capacidade, e virtudes, com preferencia os que tivirem feito serviços á
Patria.
IV. Que tenha de
rendimento annual por bens, industria, commercio, ou Empregos, a somma de
oitocentos mil réis.
Assim,
se for levado em conta que José Martiniano assumiu o cargo de Senador no ano de
1832, aos 40 anos de idade, logo, é porque nascera em 1792, o que contradita os
registros paroquiais e toda a sua verossimilhança. Diante de tudo isso, a
solução dada por alguns especialistas é a de que Alencar fraudou seus
documentos pessoais, antecipando a data de nascimento, para poder se tornar senador.
Isso não seria empecilho para Alencar, posto que foi um dos principais
protagonistas do Golpe da Maioridade, o que possibilitou que D. Pedro II
assumisse o trono aos 14 anos de idade.
Em nossa opinião, o ano de nascimento
do José Martiniano de Alencar é 1794, conclusão que segue um simples raciocínio
matemático, pois, se ele foi crismado no ano de 1801, sendo este sacramento
administrado às crianças a partir dos sete anos de idade, basta subtrair tais
números para alcançar a data por nós apontada.
Apesar
das opiniões contrárias, mesmo que Alencar tenha vagido em qualquer das datas
supramencionadas, nada impede que o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha tenha
mantido contato com Bárbara de Alencar, posto que desde o ano de 1783 tem-se a
prova cabal de que eles tiveram mais de um encontro. O primeiro destes é
verificado através do assentamento de batismo do filho primogênito de Bárbara
Pereira de Alencar, por nome, João Gonçalves de Alencar:
João
filho legitimo do Capm. José Gonsalves dos Santos nal. da Frega. de S. Marinha de Topejo Cidade de Aroma Reino de Portugal
Bispado de Lamego, e de D. Barbara Pera. d Alencar natural da freguezia de
Cabrobó e oje moradora na Vila de N. Snra. da Real Vila do Crato neto paterno
de João Gonsalves e de sua mulher Maria Manuela naturais de Fontelongo Cide. de
Aroma Bispado de Lamego. Neto materno de Joaquim Pera. d Alencar nal. da mma.
Frega. de Cabrobó e de sua mer. Teodora Roís da Conçam. nal. da mma. Frega. do
Cabrobó. Nasceo a 27 de janro. de 1783 e foi batizado a 27 de fevero. Do mmo.
ano pelo R. pároco do Inxú Carlos José de Mesquita, com imposisão dos Santos
Oleos. Foram Padros. o Comte. Joaquim Pereira de Alencar e D. Teodora Roís da
Conçam. seus Avós Maternos, do que para constar mandei fazer este asento em q
me asinei. O cura Miguel Saldanha.
O
encontro entre os supostos amantes se repetiu no ano seguinte, em 1784, por
ocasião do batizado do segundogênito de Bárbara de Alencar, Carlos José dos
Santos (padre):
Carlos
filho legítimo do Capm. José Gonsalves dos Santos nal. da Frega. de S. Marinha
de Tropejo Cidade de Aroma Reino de Portugal Bispado de Lamego, e de D. Bárbara
Pera. d Alencar nal da frega de Cabrobó e oje moradores os pais na Vila de N.
Snra. da Penha da Real Vila do Crato. Neto paterno de João Gonsalves e de sua
mer Maria Manuela naturais de Fontelongo Cide. de Aroma Bispado de Lamego. Neto
materno de Joaquim Pera. d Alencar e de sua mer. Teodora Rodrigues da Conceição
naturais da supradita Frega. do Cabrobó. Nasceu a 27 de agosto de 1784 e foi
batisado pelo R. Vigário do Inxú Joaquim Tavares Benevides á 28 do mmo. mes.e
ano com os Santos Oleos. Foram Padros. o R. P. Carlos José de Mesquita e sua
tia materna D. Iria Franca d Alencar, de q pa. constar mandei fazer este
asento em que me asinei. O cura Miguel Carlos Saldanha.
Dessa
forma, infere-se que o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha já frequentava o
Cariri desde longa data e muito antes do nascimento de alguns dos filhos de
Dona Bárbara de Alencar.
CONTINUA!
NOTA: TODOS OS DADOS AQUI
APRESENTADOS SÃO RESPALDADOS EM FONTES ESCRITAS, CONTUDO, ESTAS SÓ SERÃO
REVELADAS QUANDO DA PUBLICAÇÃO EM LIVRO DE NOSSA AUTORIA.
Caro Heitor. Estou acompanhando as matérias, e estimaria emitir meu juízo de valor quando da publicação do livro. Contudo, como "a História não tem ponto final" e por oportuno, peço que veja as obras de seus parentes - suponho - por outro liame. Nertan Macedo: O PADRE E BEATA - SAGA SERTANEJA - 2a. edição - Editora Renes Ltda. - INL - Ministério da Educação e Cultura - RJ - 1981, pp. 37/39, e Joaryvar Macedo: DECADÊNCIA CLERICAL DE OUTRORA E O CASO DE LAVRAS DA MANGABEIRA -ric - FORTALEZA - 1989, pp. 50/60. O fraterno abraço do Fernando.
ResponderExcluirObrigado, Fernando. Vou olhar sim. São leituras obrigatórias pra quem quer entender o Cariri. Um abraço!
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