ANTIGAS
FAZENDAS - SERTÃO DOS INHAMUNS: A CASA DO UMBUZEIRO.
Heitor Feitosa Macêdo
A
chamada Casa do Umbuzeiro foi construída pelo padre José Bezerra do Vale, no
sertão dos Inhamuns (Aiuaba/CE), por volta de 1721. E nesta habitação viveu o
dito sacerdote amancebado com uma índia jucá, com quem deixou larga
descendência.
Casa do Umbuzeiro entre o o final do séc. XIX e início do séc. XX (Arquivo do Barão de Studart, op. cit.). |
Aparentemente feia, esquálida e soturna, a Casa do Umbuzeiro
vale mais do que sua pobre aparência, pois se trata de um testemunho vivo da
história do Nordeste, uma icnografia arqueológica que sobreviveu às intempéries
de três séculos para descrever o modus
vivendi das primeiras comunidades que penetraram o sertão cearense.
Durante
o ciclo do gado, nos Inhamuns, as primeiras bandeiras devassaram o semiárido,
dominando os campos com suas alimárias, ao passo que neles se fixaram debaixo
de rústicas habitações, constituindo a casa do Umbuzeiro o mais antigo
monumento, ainda em perfeito estado, desse período colonial.
A ocupação do Sertão dos Inhamuns, ocorrida em meados do
início do século XVIII, fora feita por gente vinda de várias partes do
Nordeste, como a família Bezerra do Vale, pernambucanos que buscavam com a
empresa curraleira expandir suas propriedades, dispersando seus gados e
chantando suas casas.
Sem dúvida, durante as primeiras incursões, palmilharam as
longas sendas apenas na companhia de outras figuras masculinas, deixando seus
filhos e mulheres resguardados em sua terra natal, à espera de alvíssaras.
Dessa maneira, cortando léguas a pé ou a cavalo, seguiam por
estreitos caminhos, rompendo o mato com a fria lâmina de suas catanas. Varando
as selvas, tropeçavam em índios a torto e a direito, espichando couro de onças,
decapitando serpentes, matando a sede com raízes, deitando-se com as “negras da
terra”,[1]
fortificados, a priori, em suas
rústicas caiçaras.
Nessas
estacadas de pau em roda, avançaram paulatinamente sobre o extenso território,
lançando a semente bovina pelos campos, erguendo o curral bem ao lado de sua
morada, que tomou formas mais sólidas, geralmente, em um traçado cúbico,
constante de quatro faces, com esqueleto lenhoso, forjado em varas de sabiá e
mourões de aroeira.
Durante
a construção de suas vivendas, aos sopapos, entremeavam a argila com os mais
diferentes materiais, assim, para dar liga ao barro amarelo, chamado de tauá[2],
acrescentavam estrume, sangue de boi[3],
óleo de baleia[4]
e mel de rapadura,[5]
produzindo sólidas e rubras paredes, da mesma cor de seus gibões.
A
cobertura ficava a cargo dos artigos da pindoba, de preferência a carnaúba, que,
com seu rijo caule, oferecia linhas para suster o telhado, feito com a folhagem
da dita palmeira. Mas, conforme as posses de cada um, a cobertura poderia ser
confeccionada com largas telhas canais, modeladas nas coxas dos escravos
construtores e sobrepostas num engenhoso emaranhado de cedro e vergônteas de
pereiro.
Não
raramente, engendravam faustosa arquitetura, imitando as construções da Zona da
Mata, levantando alvenarias com tijolos, outras vezes com pedra e cal, sobre as
quais erguiam altas cumeeiras, em quatro águas, e, por fim, untavam suas
espessas paredes com tabatinga misturada à goma de tapioca[6],
substituindo a cal, produzindo luzidia brancura.
Ao
abrigo dessa tosca engenharia viveram os ascendentes de toda a gente do país,
que, somente com o passar do tempo, afastaram-se dessa generalidade, como as
edificações na Zona da Mata (Nordeste) e Região Sudeste, que não economizaram
no luxo de suas residências, impregnadas do estilo barroco.[7]
Em
sede de arte arquitetônica, a manifestação barroca fora eleita como objeto
preferencial de proteção legal, não só por sua beleza, mas por ligar-se às
elites dominantes da política nacional[8].
Em contra partida, a maioria das antigas construções sertanejas permanece sem o
devido resguardo por, atualmente, não gozar da merecida atenção.
Por
tudo isso, existe premente necessidade em alçar esse conjunto arquitetônico ao
patamar das demais edificações históricas amparadas pela lei, e reconhecer o
valor dessas antigas habitações como integrante do patrimônio cultural de um
povo que nele traz suas raízes e sua identidade.
Mas
o que há de tão especial em uma casa como esta? E a resposta é simples, pois a
sua construção possui quase trezentos anos, havendo em sua arquitetura um
conjunto de elementos que aponta para uma antiga técnica de edificação utilizada
em um determinado período da nossa história.
Argola encravada na coluna de madeira para armar rede. |
Para
construir a referida casa, o Padre José Bezerra do Vale trouxe artistas (nome
pelo qual eram chamados os pedreiros) de Pernambuco, certamente, gente da Zona
da Mata, de onde também provinha o dito padre, pois era ele natural de
Tracunhaém.
Talvez,
por isso, o traçado da casa apresente a mesma disposição geométrica das
residências senhoreais da região açucareira de Pernambuco, possuindo a chamada
“quatro águas”, ou seja, o seu telhado está disposto em quatro faces
triangulares, diferentemente da maioria das outras residências do sertão, que
só possuem duas águas.
As
telhas são imensas, como a que existe no Museu de Tauá, na qual está gravada a
data de 1721. Este telhado é sustido por um forte madeiramento, feito com
árvores nobres, o cedro, entrelaçado de forma bem peculiar, ligado por grossos
pregos artesanais, ao estilo colonial.
As
paredes são um misto de tijolos e barro (massapê), tendo como colunas densos
troncos de aroeiras, que circundam uma área de 147.62m2.[9] Em
seu interior existia uma camarinha, isto é, um quarto sem janelas, destinado às
filhas dos antigos senhores, o que evitava o rapto, bem como os olhares
masculinos.
Visão central do telhado da casa. |
Sobre
as suas janelas, há informação de que
até o início do século XX, abriam-se, circularmente, de baixo para cima, pois
estavam ligadas por gonzos à porção superior do respectivo vestíbulo.
Sob
o teto desta antiquíssima construção estiveram centenas de sertanejos, alguns muito
ilustres, gente que carrega sobrenomes diretamente ligados ao velho solar, como
os Arrais, os Andrade, os Góis, os Bezerra, a família Vale, a família Abath do
Crato[10] e
tantos outros. Há quem diga que o ex-presidente do Brasil Wenceslau Brás também esteja entre os descendentes do “pecaminoso” relacionamento do padre José Bezerra com a mencionada índia.
Segue o feio e antigo casarão varando os séculos, sóbrio, escornado no lombo de um
alto rochedo, bem ao lado do Rio do Umbuzeiro, mirando a vastidão da caatinga,
à espera de um reconhecimento mais respeitável e de um tratamento mais condigno
em relação a sua história e a sua indiscutível representatividade arquitetônica.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
Alemão, Francisco Freire, Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão,
Fundação Waldemar Alcântara, Fortaleza/CE, 2011.
Bezerra, Maria do Carmo de Lima, Notas sobre as Casas de Fazendas dos Inhamuns, Edições do Senado Federal, Vol. 185, Brasília, 2012.
Clerot, Leon F. R., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, Edições Senado Federal, Vol. 143, Brasília, 2011.
Freitas, Antônio Gomes de, Inhamuns: Terra e Homens, Editora Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1972.
Freyre, Gilberto, Casa Grande e Senzala, 18ª Ed., Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1977.
Macêdo, Nertan, O Clã dos Inhamuns: Uma família de guerreiros e pastores das cabeceiras do Jaguaribe, 2ª Ed., Edições A Fortaleza, Fortaleza/CE, 1967.
Oriá, Ricardo, Uma Nova História do Ceará, 2ª Ed., Edições Demócrito Rocha, Fortaleza/CE, 2002.
Arquivo do Barão de Studart, José Augusto Bezerra (coordenação geral), Fortaleza, Instituto do Ceará, 2010, p. 129.
[1] “Negra da terra” ou “negros da
terra” era uma expressão comumente usada para se referir aos aborígenes,
índios, no caso, às mulheres indígenas.
[2]
Apesar de o escritor José
de Alencar dizer que o termo indígena “tauá” significa “barro vermelho” (Ap. Freitas, Antônio Gomes de, Inhamuns:
Terra e Homens, Editora Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1972, p. 21), é
inconteste a posição dos especialistas a este respeito, que são unânimes em
considerar a tradução “barro amarelo” para a palavra “tauá” (in Clerot, Leon F. R., Glossário
Etimológico Tupi/Guarani, Edições Senado Federal, Vol. 143, Brasília, 2011, p.
480).
[3]
Bezerra, Maria do Carmo de
Lima, Notas sobre as Casas de Fazendas dos Inhamuns, Edições do Senado Federal,
Vol. 185, Brasília, 2012, p. 63.
[4]Macêdo, Nertan, O Clã dos
Inhamuns: Uma família de guerreiros e pastores das cabeceiras do Jaguaribe, 2ª
Ed., Edições A Fortaleza, Fortaleza/CE, 1967, p. 59.
[5] No Cariri cearense, na cidade do Crato, conta-se que o Beato José Lourenço construiu a parede da pequena barragem do Rio Caldeirão utilizando na mistura mel de rapadura e azeite de mamona (entrevista feita a Raimundo Batista de Lima, com 70 anos de idade, zelador do Sítio Caldeirão, na tarde do dia 18/09/2014). Ainda no Cariri, a memória do
povo também registra o uso das casas de cupim (cupinzeiro) na
composição da argamassa das antigas habitações. Em Missão Velha, essa tradição
foi colhida pelo pesquisador João Bosco.
[6]
Alemão, Francisco Freire,
Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão, Fundação Waldemar Alcântara,
Fortaleza/CE, 2011, p. 334, p. 363 e 414.
[7] Sobre isto, disse Gilberto
Freire: “A unidade econômica formava-a o solar - a mansão senhorial de taipa ou
de barro amassado, avó da casa-grande de engenho brasileiro” (In Freyre,
Gilberto, Casa Grande e Senzala, 18ª
Ed., Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1977, p. 231).
[8]
Oriá, Ricardo, Uma Nova
História do Ceará, 2ª Ed., Edições Demócrito Rocha, Fortaleza/CE, 2002, p. 237.
[9] Bezerra, Maria do Carmo de Lima,
Notas sobre as Casas de Fazenda dos Inhamuns, Brasília, Edições do Senado
Federal, Volume 185, 2012, p. 74.
[10] Andrade, José Ailton Alencar, Um
Galho do Umbuzeiro: Um Registro Genealógico da Família Alencar - Andrade dos
Inhamuns, Fortaleza, 2013, p. 30.