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segunda-feira, 22 de julho de 2013

A MANUFATURA DA SELA, SUA TÉCNICA E SUA ARTE

A MANUFATURA DA SELA, SUA TÉCNICA E SUA ARTE
                                                                                
                                                           
                                                              Autor: Dr. Carlos Leite Feitosa
                                                         Postado por: Heitor Feitosa Macêdo
         

Diário de Notícias-RJ-04/12/1960.

         Quando o homem primitivo saiu das cavernas e ganhou o espaço decidido a conquistar o meio que se lhe deparava, um dos primeiros animais que procurou domesticar, para ajudá-lo na luta pela sobrevivência que, então, iniciava, foi, por certo, o cavalo selvagem. As notícias desta atividade do bípede perfeito datam da mais remota antiguidade.
         Não há dúvida de que a doma resultou de peleja cruenta. Presumivelmente, o cipó foi um colaborador eficiente, tornando-se, portanto, o primeiro arreio de que o homem se serviu.
         Ao depois, já afeito à sua presença, não obstante permanecesse arisco, passou o mais forte a empregar o vencido como meio de transporte. As caminhadas constantes advertiram o cavaleiro de que deveria utilizar-se de um forro para evitar as pisaduras no animal e o seu próprio maltrato físico.
         Desses cuidados e diante do rudimentar objeto, através de milênios de evolução e de aperfeiçoamento, chegou-se a sela de hoje, a peça principal dos apetrechos de uma montaria.
         Existe uma diversidade muito grande deste utensílio, de conformidade, não só com os usos e costumes de uma zona, como, igualmente, de acordo com a utilidade de cada um, bem assim, conforme as posses de quem vai os adquirir.
         A descrição que passamos a dar, a respeito do tema em estudo, devemo-la ao Mestre Alceu, de Acopiara, cuja Oficina de Selaria frequentamos por diversas vezes, e onde tivemos oportunidade de assistir à confecção de selas e de outras peças análogas. Outros mestres, não menos competentes, deram-nos suas contribuições, como o mestre Chicute, de Iguatu, o Mestre João Clarentino, em Cachoeira, Tauá, meu tio-afim, com quem convivemos e observamos a técnica do seu trabalho. Nós mesmos, somos membros de uma família colonizadora que tem três séculos de atividades vinculadas ao criatório e, como é óbvio, temos andado a braços com arreios de montarias.
         2 Montagem – A montagem de uma sela é trabalho de mestria. Não é servoço para entendidos, e nem tão pouco para curiosos. A sua viga mestra, a sua fuselagem, é o arção, que se compõem da meia-lua (atrás), da lua-de-sela (na frente) e das espendas, estas, em número de duas. Todas as peças são confeccionadas com madeira de lei.
         A meia-lua ou lua-de-trás, é uma peça côncavo-convexa de um centímetro, mais ou menos, de espessura, trabalhada em madeira resistente, e é encontrada, tanto nas selas de cavaleiros, como nas de amazonas. Tem, realmente, quando montada, a aparência de uma meia-lua, porém fora do arção apresenta a forma de um bolo achatado, do qual se retirou um bom naco triangular, com o vértice para dentro. O mestre Alceu, tomando a parte pelo todo, chama de burranha a meia-lua.
         A matéria-prima utilizada nessa peça é a oiticica, árvore da família das Chrysobalanaceae, Licanea rígida. “Há outra, como a Juramataia (árvore leguminosa)”. Mas, também é feita com imburana, da espécie de espinhos, planta da família das Burseraceae (Bursera leptophleos). O mestre Chicute utiliza, ainda, o pau-piranha, a canafístula. São João (de folha amarela), o cumaru, a samambaia (que o artista rústico chama de samaíba). Também é usada madeira vinda do Rio grande do Sul.
         A técnica exige o emprego de madeira forte, porque é nela que o cavaleiro exerce mais força  e, por sua disposição (inclinação e sem encosto) e colocação (presa nas extremidades inferiores, deixando livre e para cima, a parte mais ampla), tem pouco ou quase nenhum apoio, a não ser o que lhe dá o enervamento.
         A lua-da-sela, também conhecida por lua-da-frente, é o arção chamado, diz o Mestre Chicute, é a parte da frente. Tem o aspecto de uma meia laranja embocada, e é onde o cavaleiro está sempre se apoiando com as mãos, para montar-se ou desmontar, ou em razão de desequilíbrio na sela. Sua posição é a vertical.
         Espendas, que o operário conhece por alpendras, e o linguista e folclorista Florival Seraine colheu prendas (Ver. Do Inst. Do Ceará, 1937, pág. 20), em número de duas, uma de cada lado, são as traves que ligam a meia-lua à lua-da-sela.
         Em algumas técnicas, prendem-se nelas os loros e o rabicho, atravessando-as, para poder oferecer melhor segurança, não só em face da madeira, mas, também, do enervamento, o que não ocorreria se a elas fossem simplesmente presas, leciona o Mestre Alceu. O Mestre Chicuta, objetivando, prefere não prender os loros através das espendas, para não as enfraquecer, achando melhor passá-los por cima do arção. O sistema adotado pelo Mestre de Iguatu, evidentemente, oferece melhor segurança, pois, do esforço que o cavaleiro imprimir aos loros, apoiado nos estribos, não se ressentirão as espendas. Ao contrário, sentirá melhor sensação de estabilidade, uma vez que exerça sobre os loros, estará colando mais ainda a sela no animal, ao passo que, se os loros atravessassem as espendas, quando o cavaleiro fizesse força sobre os estribos, elas ameaçariam partir-se - e a tendência é esta, não só pelo seu natural enfraquecimento, como pelo esforço exigido delas.
         Montado o arção, podemos constatar as seguintes medidas técnicas: a distância da “meia-luz” (meia-lua?) para a lua-da-sela é de 42 cm, no topo. O Mestre Chicute, entretanto, afirma que este tamanho é para as pessoas gordas. O comum é 35 cm a 40 cm. A inclinação natural da meia-lua, mais levantada ou mais deitada, depois de presa às espendas, é feita a olho. Não há medida de angulação para ela, mas, tão somente, o bom senso do artista. A bitola do ângulo aberto da meia-lua, para baixo, é de 23,5 cm, e é feito com molde. Para a lua-da-sela, que também se faz com molde, o ângulo aberto mede 25,5 cm.
         Formado o arção, com as quatro peças fundamentais, de madeira, é ele coberto com couro cru (não curtido) de boi (genericamente, gado vacum), bom, espichado, ato que toma o nome de enervamento e se constitui na cobertura total, ou parcial, da peça, com a finalidade de torná-la mais resistente ao seu fim, formando um todo só, para lhe dar mais consistência. Florival Seraine (obra e lugar citados) encontrou a palavra enervo, para indicar este ato.
         A matéria-prima empregada neste serviço deve ser de primeira qualidade, pois o artista de couro jamais trabalha com material ordinário, inferior. Em algumas zonas, como a do Cariri, faz-se de couro de morrinha (por exemplo: de animal morto por tingui, arbusto da família das Leguminosas, Lupinos [caravela], apreciado pelo gado, porém, após a sua ingestão, tem que ficar inativo, sem poder ser agitado, sob pena de morte imediata, por intoxicação), ou por outra causa qualquer cujos arreios, chamados de carregação, pois recebem até pregos na colocação das gualdrapas às espendas, são vendidos nas afamadas feiras do Crato e do Juazeiro do Padre Cícero. O melhor material que existe é o oriundo de matutagem, de espécie morta em açougue, que provém de rês sadia.
         Tanto a sola com que se confeccionam as gualdrapas, como o couro com o qual se enerva o arção, antes de serem utilizados, tomam um banho especial de óleo, para que se torne flexível e obediente à vontade do artista. Antigamente, empregava-se o óleo de pequi ou piqui, o mesmo que piquizeiro, árvore da família das Coriocáceas (Caryocar brasiliensis, Cam...?), óleo de linhaça (de semente de linho), que não eram tão bons como o de peixe.
         Atualmente, este tratamento é feito com óleo extraído do caroço do algodoeiro, planta têxtil da família das Malváceas. E no encouramento do arção que ele oferece os melhores resultados, segundo experiência realizada em 1928, pelo Mestre Chicute. Já tivemos ensejo de presenciar o Mestre João Clarentino, no lugar Cachoeira, em Tauá, aplicando a baga de carrapateira, planta da família das Enforbiáceas (Ricinus comunis, L.), também chamada mamona, o que se conseguia pela maceração das sementes. A peça submetida a este processo passava de uma a duas semanas fora de atividade, para que o óleo pudesse entranhar bem.
         O enervamento, ou enervo, pode cobrir totalmente o arção, ou apenas restringir-se a prender as peças principais, dando solidez ao conjunto, como se tratasse de trabalho confeccionado como uma única peça de madeira.
         Concluído o arção, que é a ossatura da sela, são preparados os suadores, em número de dois, um de cada lado. São espécies de almofadas, que se destinam a neutralizar os traumatismos que a sela produziria no animal se fosse posta diretamente, e que tem uma face de sola, para a qual se exige o mesmo material das gualdrapas, e , a outra, de lona boa, para resistir ao suor e ao esforço que sobre ele se exerce. A face de sola fica em contato com as gualdrapas, a de lona com a esteira que se interpõe entre o animal e a sela.
         O material de seu enchimento é a coroa de frade (popularmente, crôa de frade), planta da família das Cactáceas (Melocatus Neryl), pendão de cana (planta gramínea), capim macio (espécie de gramíneas), etc. Lançando-se mão da coroa de frade, que é o melhor enchimento que existe, queimam-se os espinhos.
         As gualdrapas ou capas (duas), são espécies de manta de sola que se estende por cima do arção, sendo a ele presas, as quais se unem na parte superior. O Mestre Chicute prefere chamá-las familiarmente de capas, porque, diz ele, são elas realmente, as capas da sela. Têm forma variada de acordo com a utilidade da sela. As de campo, possuem-na quadrada, visando proteger o mais possível o ventre do animal, com desenhos em baixo relevo. As das selas de passeio são arredondadas na parte anterior, formando um lobo, e cavada na posterior. Nestas, é utilizada a sola comum. No entanto, tratando-se de encomenda especial, faz-se de sola cilindrada. As gualdrapas vêm ligadas com a empanada.
         Terminadas as gualdrapas, passa-se a cuidar dos coxins, que se estendem sobre o arção e é uma peça inteiriça, unindo a bainha da burranha e a lua-da-sela. São eles costurados por fora para formar o local dos cheios. Se a sela for de mulher, chama-se, bainha de canudo, a bainha da burranha. Quando o coxim é trabalhado, toma o nome de carona. Se é liso, denomina-se, simplesmente, sobrecapa.
         O coxim, quer se apresenta como caronado, no caso do selote, ou como sobrecapa, na campeira, é uma peça que arremata o trabalho.
         Burranha, palavra consignada em “Enriqueça o seu Vocabulário”, do mestre Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, embora não figure na 4ª edição, de 1943, do “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”, de Hidelbrando Lima e Gustavo Barroso, é uma peça que embainha o arção para segurar as gualdrapas e a empanada e constitui o enchimento onde se senta o cavaleiro. Tanto pode ser encontrada na sela de homem, como na de mulher. É colocada por cima da empanada que, por sua vez, fica sobre a enervadura.
         Por cima dos coxins está o seu empanamento a que o Mestre Chicute chama empanada, e diz que é feito de algodãozinho bom, cobrindo toda a sela, mas com enchimento – que é de pluma de algodão – somente no assento. Vale dizer: apenas na parte onde o cavaleiro monta. O empanamento ou empanada destina-se a formar o cheio e a armar a sobrecapa.
         3 Acabamento – Como parte do acabamento, vem a sobrecapa que é feita de couro macio, de bode ou cabra (caprino, o mesmo que caprum), de carneiro ou ovelha  (ovino, o mesmo que ovelhum), de vaqueta (couro delgado para forros), dos mais diversos matizes, como sejam: preto, azul, encarnado, roxo, amarelo, cinza, marrom, branco, etc. Não pode ser feita de couro laminado, pois precisa ter elasticidade.
         É nos desenhos da sobrecapa que o artista apresenta toda a sua arte. São feitos a olho, pois não há figurinos a imitar, mas, unicamente, a imaginação do obreiro, que os modifica todos os dias, recriando, afirma o Mestre de Iguatu. Pelo colorido das peças aplicadas, em que se emprega a pelica de diversos matizes, vê-se que se trata de uma verdadeira arte aplicada, a confecção de tão linda peça. Quando o artista está executando a sua arte, observa-se a sua preocupação em torná-la uma obra-prima, sente-se o seu esforço criador, nota-se a sua abstração comparada à dos Grandes Mestres da Pintura, da Escultura, da Tapeçaria, etc.
         O remate da sela, no entanto, só se conclui com o caronado, que é uma peça que dá melhor aspecto ao utensílio e maior conforto ao cavaleiro, com os debruns (remates), os floretes (enfeites), os rebaixos (baixos relevos), com as peças complementares e com as acessórias.
         O caronado, que o rústico chama corõeado, coronado e coronhado, é o serviço de estofamento e de costura que se faz somente na sobrecapa, e tem esse nome por semelhança do identicamente executado na carona, que o homem simples denomina corona, por influência da palavra couro, material usado nessa peça. (Ver encourado, por encourado). Coronado é o coxim fantasiado (trabalhado).
         Os debruns são feitos nos terminais, aureolando a sobrecapa e a capa das selas de passeio, arrematando referidas peças. As selas de campo são simples, não tem lugar para refinamentos.
         Floretes (o Mestre Chicute prefere chamar enfeites) são desenhos produzidos por aplicação de peças de cores variadas, fazendo-se matizado de duas, três e mais tonalidades. O couro é de verniz. Nas guardas da sobrecapa são aplicados vários enfeites singelos, como sejam: boquinhas redondas, flores, etc. Em uma sobrecapa, algumas vezes, emprega-se de 4 a 5 marcadores diferentes. Em terra adiantada, os artistas servem-se da estampa, marcando figura de animais. É o início da industrialização da sela, com o declínio da manufatura.
         Rebaixos são baixos relevos feitos na sola das gualdrapas das selas de campo, esclarece o Mestre Chicute, marcados com ponta de ferro, utilizando-se de punções que são batidos com martelo maneiro. Ao invés de punções, o artista de Iguatu fala em vazador cortado, sem ponta.
         4 Peças complementares – As peças que completam a sela, são os loros (dois), com o indispensável estribo; as cilhas, em número de duas; e o rabicho.
         Os loros são correias duplas de onde pendem os estribos, destinados a auxiliar a firmeza do cavaleiro sobre a sela, apoiando-se neles com os pés metidos nos estribos. São presos nas espendas, onde, também, é atado o rabicho. A bitola do loro, em média, é de 1,38 m. Nas oficinas, para evitar o uso constante da trena, com evidente desperdício de tempo, a técnica do artista é tirar as medidas calculando, em seu corpo, o tamanho da peça. Presenciamos o Mestre Alceu calcando a ponta de uma tira de sola com o pé em terra e levando a outra ponta até o queixo, onde media, exatamente, 1,38 m. Ao invés de atravessá-lo nas espendas, como assim o faz o Mestre Alceu, de Acopiara (sertão dos Quixelôs), o Mestre Chicute, de Iguatu (Médio Jaguaribe), prefere passar os loros por cima das espendas, para não diminuir a sua resistência. Para este último artista, os loros devem ter, não 1,38 m, como usa o Mestre Alceu, porém, sete palmos de comprimento, medidas tomadas da fivela para a pinta de abotoar.
         Cilhas – Prendendo a sela à cavalgadura, por baixo do seu ventre, existem as cilhas (a Cia dos matutos), que são duas: a cilha-da-frente e a cilha-de-trás. A cilha-da-frente, também chamada cilha-de-diante, pela bitola, ela é medida pela mesma maneira por que é feita a do loro. Já assistimos ao Mestre Alceu tirando suas medidas da do tamanho de uma braça sua, o que era feito do modo seguinte: mãos abertas, de ponta a ponta dos dedos e, mais, um braço: dos dedos até o cotovelo, por dentro do braço.
         Para proteger o animal, a cilha-da-frente é obrigada a ser de trança, uma vez que ela pega no sovaco do animal. Para maior embelezamento da peça, faz-se de trança fechada, onde entra muita arte, diz o Mestre Chicute. É trabalho difícil, continua o artista de Iguatu, e quem se meter a executá-lo, sem saber, passa de 30 a 50 anos tentando, e não o faz, sem ser ensinado. Costuma-se preparar com três pernas e com cinco, e só a acerta quem passar a ponta de três em três, ou de cinco em cinco, consoante a quantidade de pernas, ensina-nos o Mestre Chicute.
         A cilha-de-trás é um pouco maior, devido o ventre do animal. Tem o tamanho de 2,30 m. Na prática, a medida é tirada do mesmo modo por que se faz a da cilha-da-frente, sendo que, ao invés de a mensura terminar no cotovelo, vai até a axila. Há, ainda, outro sistema de medir-se a cilha-de-trás: prende-se uma ponta nos pés e levanta-se a outra até a extremidade dos dedos das mãos, levantadas para cima. O Mestre Chicute usa o palmo ao invés do metro. Então, diz que as cilhas têm 9 palmos de comprimento e passam por baixo das gualdrapas, ultrapassando-as, mas por cima do arção.
Diário de Notícias-RJ-04/12/1960.
         A cilha-de-trás é sempre lisa, porque está conforme a barriga do animal. A cilha estreita é mais segura, porque faz barriga, e, por isto, não deixa a sela correr, adverte o Mestre Chicute.
         O rabicho é uma peça inteiriça terminada em duas pontas que se prendem ao arção, passando por baixo da cauda do animal, destinado a manter a sela no centro do seu espinhaço, impedindo-a de correr para o pescoço. A parte central da sola deve ser macia e bem protegida, porque vai pegar o animal por baixo da cauda, em parte sensível, recomenda o Mestre Chicute. Já as pontas que se ligam à sela, devem ser fortes para poder suportar os repuxos. Como trabalho de arte, há no rabicho pequenos enfeites e recortes nos “debordos” procurando dar à peça um aspecto bonito.
         Muito ainda teríamos que dizer, não só a respeito da técnica e da arte da manufatura da sela, mas, também, sobre peças acessórias, como o peitoral, a rabichola, os alforjes, a carona, a cincha, o coxinulho ou coxonilho, etc., mas o angustioso espaço das colunas de um jornal não permite maior expansão.
         Por outro lado, a tentativa de sistematização que ora apresentamos, visa apenas despertar estímulos para [ilegível] estudos, na esperança de que obra alentada atinente ao assunto seja publicada por mestres.
(In Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1960)
           
        
                   
        
                  
                
        
           

terça-feira, 9 de julho de 2013

OS BAITOLAS DE VERDADE: ORIGEM DO TERMO BAITOLA


OS BAITOLAS DE VERDADE: ORIGEM DO TERMO BAITOLA
                                                                                             
                                                                                                       
                                                                                                    Heitor Feitosa Macêdo


         Às vezes uma palavra é suficiente para denunciar um costume secular, escondido entre práticas completamente adversas, contrárias, antípodas, em negativas subconscientes de certos hábitos. É exatamente nesse contexto que se põe o termo “baitola”, frequentemente propalado pelos sertões nordestinos.
         Essa designação é comum no Ceará, o que não significa que tal expressão tenha sido gestada unicamente nessa parte do Nordeste, pois se observa o uso desse vocábulo também em regiões circunvizinhas. Além disso, a etimologia aponta relativa generalidade do termo no território brasileiro. Somando-se a tudo isso a antiga e frequente prática da homossexualidade.
         Num retrospecto bíblico encontra-se desabrida condenação à prática do coito anal, tendo Deus aspergido uma chuva de enxofre sobre Sodoma e Gomorra, matando seus habitantes carbonizados. Pobres sodomitas que morreram pelo amor e pelo "mau" uso de seus orifícios! Então, num mundo sustido na religião monoteísta, pela qual o Ocidente fora dominado, é bastante natural a aplicação de sanções a esse “nefando pecado”.
         Porém, para que não se perca, voltando mais um pouco no tempo, veem-se os gregos e romanos, gente que gozava da virilidade de mancebos enquanto escrevinhavam seus tratados de filosofia. Esses cultores de rapazes legaram aos tempos modernos inestimáveis compêndios científicos, que por muito tempo foram suprimidos pela Igreja, pois, afinal, tratavam-se de ideias criadas em seio politeísta.
         O homem quinhentista, ao desembarcar na terra de pindorama (terras das palmeiras, como era chamado o Brasil pelos índios), trazia em sua bagagem os mesmos tabus da Idade Média, temendo o fogo da inquisição pela impudicícia.
         Essa sociedade “genitalizada” e teoricamente monogâmica disseminou-se pelos sertões, incluindo os do Nordeste. A família formava a célula desse corpo social, cabendo ao pater familias decidir sobre os destinos da sua propriedade, ou seja, além dos bens imóveis, a mulher, os filhos e os escravos.
         Ao patriarca era dado o desfrute de possuir “de fato” quantas mulheres lhe aprouvesse, impondo-se a monogamia unicamente à classe feminina. Quanto aos filhos, cabia também ao chefe da família escolher-lhes a sorte, mesmo aos rebentos varões, ditando qual seria assexuado, seguindo a vida sacerdotal; e reservando às filhas casamentos escolhidos, geralmente, entregando-as ainda pré-adolescentes a outros velhos ricos.
         Rodeado de mulheres escravas, negras ou índias, incluindo-se as cunhãs surripiadas das aldeias pelas chamadas guerras justas, o patriarca geria verdadeiro harém. Muitos ficaram célebres por esse seu poder procriador, havendo destaque para Jerônimo de Albuquerque, apelidado de o Torto, por perder um olho em luta com os índios. Esse indivíduo teve 26 filhos, por isso ser também chamado de o “Adão pernambucano”[1].
         Jerônimo de Albuquerque viveu maritalmente com a índia Maria do Espírito Santo Arco Verde (filha do cacique Ubiraubi - Arco Verde), nascendo dessa união Catarina de Albuquerque (a Velha), a primeira filha do casal e a mais amada pelo pai.
         Catarina casou-se com um fidalgo florentino, Felipe de Cavalcante, que havia migrado da Itália por sofrer perseguição da poderosa família Médice.[2] Então, veio ele residir na Capitania de Pernambuco, deixando numerosa prole, da qual descende quase toda população nordestina, não sendo exagero afirmar que a maioria das famílias brasileiras possui alguma gota de sangue desse notável patriarca.
          Esses descendentes de Felipe e Catarina se lançaram ao sertão, espalhando-se pelos quatro ventos, e legando à atualidade as populações desses rincões. Destaque-se que os Cavalcante desmembraram-se em outras famílias, quase sempre aristocráticas, as quais, por muito tempo, ostentaram riqueza e valentia, inclusive no semiárido.  
         Porém, contrastando com o estereótipo sertanejo, Felipe carregava hábitos discrepantes aos institucionalizados pela tradição dos rudes moradores da caatinga. Isso pelo fato de o dito fidalgo ser acusado perante o Tribunal do Santo Ofício por sodomia, sendo denunciado por Belchior Mendes de Azevedo.[3]
         A sodomia era tratada por “pecado nefando”, e os dicionários mais antigos não a especificam, simplesmente registrando sua significação da seguinte forma: “Pecado, por antonomásia, nefando, e por consequência indigno de definição por sua torpeza”.[4] Mas, o que seria nefando?
         Segundo o velho dicionário do Padre Bluteau, nefando é coisa indigna de exprimir com palavras, coisa da qual não se pode falar sem vergonha. O mesmo autor remete o pecado nefando, o de sodomia, ao demônio Incubo ou Sucubo, que ora serve de homem, ora de mulher.[5] Mas, como é sabido, trata-se da conjunção sexual anal, entre homem e mulher ou entre dois homens.
         Diz Gilberto Freyre[6] que os filhos família (filhos dos fazendeiros) muitas vezes iniciavam sua vida sexual com os moleques (filhos dos negros escravos), companheiros de brinquedos, sendo estes também chamados de “leva pancadas”, pois, frequentemente, eram vítimas de brincadeiras sádicas dos senhorzinhos.
         Ressalte-se a miscigenação do “tipo brasileiro”, já que é eticamente errado falar em raça, uma verdadeira mistura de brancos, negros e índios, sendo que estes últimos (os ameríndios) também não ficaram alheios à prática do amor sáfico ou socrático, ou seja, entre eles também houve homossexualismo.
         Os indígenas estavam organizados em uma sociedade “gerontocrática” [7], onde os mais velhos exerciam influência sobre as deliberações do restante da tribo. E, sendo a guerra uma constante entre aqueles povos, o homem adulto era mais valorizado do que as crianças e mulheres.[8] A masculinização era uma necessidade.
         Em regra, os chefes tupis possuíam mais de uma mulher, registrando-se 13 esposas para Cunhambebe e 34 para Amendua.[9] Entretanto, essa virilidade era posta a prova durante o desenvolvimento dos indivíduos mais jovens, que passavam de mitã a culumim-mirim, depois a culumim-guaçu,[10] até chegar a avá e tujuáe.[11]
         Nas fases iniciais, os jovens eram postos em compartimentos privativos aos homens, onde passavam por rituais secretos. Esse ambiente era chamado de “Baito”, que, segundo Gilberto Freyre, era “uma espécie de lojas de maçonaria indígena”.[12]  Os índios praticavam a pederastia sem ser por escassez ou privação de mulher, quando muito, pela influência do período de internato nessas casas secretas.[13]
         Entre os gentios do sexo masculino, deitar com as tias, irmãs e filhas não lhes causava nenhum embaraço, e muito menos os constrangia copular com outros machos. Sobre essa luxúria, diz Gabriel Soares de Sousa que muitos índios morriam exaustos de tanto fornicarem, além disso, eles aumentavam o órgão fálico com os pelos de um bicho peçonhento, tornando suas genitálias inchadas e disformes, ademais, assevera o autor que alguns valentes índios se gabavam por se servirem de outros homens, havendo nos sertões “alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas”.[14]
         Frise-se que a homossexualidade não se restringia aos homens, existindo também mulheres que faziam as vezes de varões, como fora observado por Gandavo[15]:

Algumas índias a que também entre eles determinam de ser castas, as quais não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios, como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e flechas, e à caça perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher.         
         
        Muitas etnias ameríndias habitaram o território cearense, inclusive os tupis, sob o nome de Tabajaras, moradores no litoral da Capitania. Outro tanto de índios residia no interior, chamados genericamente de tapuias, ou seja, contrários aos tupis, índios bravios ou de língua travada (que não falavam a língua geral, o tupi-guarani), figurando entre eles os Cariús, Jenipapos, Cariris, Jucás, Icós, Canindés etc.
         O intercurso racial resultou numa aculturação, isto é, na formação de uma cultura híbrida, sendo a palavra “baitola” uma dessas reminiscências. Algumas versões folclóricas tentam explicar o étimo de tal expressão, contudo, terminam em suposições jocosas e insustentáveis.
Em verdade, “baitola” ou “baitolo” derivam do termo indígena supramencionado, “baito”, recinto reservado aos jovens, com o acréscimo do sufixo “la” ou “lo”, certamente um hibridismo provindo da língua portuguesa, pois a fonética gentílica desconhecia o som da letra “l”. Cabe destacar que uma variante tupi para baito é “baité”, desmembrando-se em “mbaé”, aquele que é, e “ité”, frio, discordante.[16]  
No Ceará, ainda hoje, também é comum ouvir-se o termo “baitinga”[17], cuja etimologia concerne a “baito”, com o acréscimo de “tinga” (branco), constituindo outra remissão índia aos indivíduos homoafetivos de cor branca.
Talvez a discussão a respeito da etimologia de uma palavra dessa natureza pareça algo insignificante. Porém, representa uma das principais consequências do etnocídio acometido aos povos indígenas, pois o uso da língua bugre fora veemente proibido, inclusive em muitas aldeias, e oficialmente banido pelo Marquês de Pombal em 1758.
 É necessário dizer que uma palavra pode ir além das definições aduzidas pelos dicionários, como a expressão em comento, que ultrapassa a sua literalidade jocosa e discriminante, para alcançar importantes fatos históricos, a partir de sua etimologia e da variação semântica no decorrer do tempo.   
         Desta feita, vê-se que, talvez, inexista brasileiro que não possua um “gay” na família, mesmo que seja um tataravô da era colonial. Não ficando de fora os brancos, nem mesmo os negros, e quanto aos índios, são estes, indubitavelmente, os precursores dos baitolas de verdade.   
        

BIBLIOGRAFIA:

Bluteau, D. Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino, Coimbra/Portugal, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712.

Clerot, Leon F.R., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, 1ª Reimpressão, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2011.

Fernandes, Florestan, A função social da guerra na sociedade tupinambá, São Paulo, Editora Globo, 2006.

Fonseca, Antônio José Vitoriano Borges da, Nobiliarquia Pernambucana, Volume I, Rio de Janeiro, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1935.

Freyre, Gilberto, Casa – Grande & Senzala, 18ª Ed., Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1977.

Gandavo, Pedro de Magalhães, Tratado da Terra do Brasil, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2008.

Seraine, Florival, Revista do Instituto do Ceará, Tomo LXIV, Ano 1950.

Sousa, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, São Paulo, Ed. Hedra, 2010.    



[1] Freyre, Gilberto, Casa – Grande & Senzala, 18ª Ed., Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1977, p. 278.
[2] Fonseca, Antônio José Vitoriano Borges da, Nobiliarquia Pernambucana, Volume I, Rio de Janeiro, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1935, p. 208.
[3] Freyre, op. cit., p. 321.
[4] Bluteau, D. Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino, Coimbra/Portugal, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712, p. 688.
[5] Ibidem, op. cit., p. 698.
[6] Freyre, op., cit., p 50.

[7] Fernandes, Florestan, A função social da guerra na sociedade tupinambá, São Paulo, Editora Globo, 2006, p. 204, 190 e 289.
[8] Ibidem, op. cit., p. 206.
[9] Ibidem, op. cit., p. 271.
[10] Ibidem, op. cit., p. 196 e 197.
[11] Ibidem, op. cit., p. 188 e 189.
[12] Freyre, op. cit., p 118 e p. 136.
[13] Ibidem, op. cit., p. 119.
[14] Sousa, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, São Paulo, Ed. Hedra, 2010, p. 299.
[15] Gandavo, Pedro de Magalhães, Tratado da Terra do Brasil, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2008, p. 136.
[16] Clerot, Leon F.R., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, 1ª Reimpressão, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2011, p. 87.
[17] Seraine, Florival, Revista do Instituto do Ceará, Tomo LXIV, Ano 1950, p. 10.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

A PARTICIPAÇÃO DO CORONEL JOÃO DE ARAÚJO CHAVES NA GUERRA DE INDEPENDÊNCIA

A PARTICIPAÇÃO DO CORONEL JOÃO DE ARAÚJO CHAVES NA GUERRA DE INDEPENDÊNCIA

                                                                                Heitor Feitosa Macêdo
        
Coronel João de Araújo Chaves, da Fazenda Estreito
         A emancipação política do Brasil e o reconhecimento desse status foram episódios distintos, que merecem ser claramente divisados, pois creditar que o Brasil tenha se desvencilhado de Portugal unicamente pelo pagamento de cerca de 22 milhões de libras esterlinas é um erro.
         O território brasileiro até 1751[1] estava dividido em dois “Estados”, ou melhor, em duas colônias, a do Maranhão (iniciando da província do Piauí e estendendo-se por toda a região Norte, a Amazônia) e a do Brasil (começando do Ceará até a porção Sul do país, ressaltando-se que o atual litoral do Piauí, naquela data, pertencia à província do Ceará).
         Na época da independência pretendeu-se restabelecer o antigo Estado do Maranhão, conforme a vontade da burguesia portuguesa[2] e de D. João VI,[3] que tencionavam continuar na sua administração. Assim, o Brasil ficaria independente, porém, dividido.
         O processo emancipatório fora iniciado em alguns pontos do Brasil antes do suposto grito de D. Pedro I, e, curiosamente, mesmo depois de proclamada a independência, algumas tropas militares mantiveram-se relutantes e contrárias à causa.
         Na Bahia travou-se intensa luta, mas como não havia um exército organizado, foi necessário lançar mão de mercenários ingleses, franceses e alemães, além de milícias e populares, sob o comando de Labatut e, posteriormente, de Cochrane. Assim, os portugueses comandados por Madeira de Melo foram derrotados em dois de julho de 1823.[4]
         Porém, o território a partir do Piauí até a região Amazônica estava sob o domínio português, postando-se à frente desse exército o Sargento-mor José da Cunha Fidié, lusitano nomeado Comandante das armas da província do Piauí em nove de dezembro de 1821, ocasião em que recebera expressa ordem de manter a unidade das Províncias do Norte e a submissão destas à Corte Lusitana.
         Não se pode alegar ignorância por parte de Fidié em relação ao movimento de independência, porque tinha ele ciência da posição de D. Pedro I, mas, mesmo assim, preferiu seguir os propósitos da Coroa portuguesa, realizando a vontade de D. João VI em não entregar o Norte do Brasil ao Príncipe regente.[5]
         Sem ter qualquer notícia desses movimentos pelo país, os sertanejos do interior da província do Ceará proclamaram a independência, havendo destaque para o Crato, onde sua população já havia experimentado outrora, em 1817, a instituição da República. Nesta cidade, a informação sobre a oficialização da Independência, feita por D. Pedro I, somente chegou no dia 26 de dezembro de 1822[6], contudo, o povo cratense já o havia feito desde o dia 1º de setembro de 1822.[7]
         Sob a alcunha de Exército Independente seguiram os emancipacionistas do Crato em direção do Icó, onde a população era predominantemente portuguesa, tomando este reduto e instituindo um Governo Temporário, em 16 de outubro de 1822.
         Do Icó, o Exército Independente, formado por cerca de dois mil homens[8] e comandado por José Pereira Filgueiras, marcha em direção à Fortaleza/CE, que foi dominada pelos líderes caririenses. Então, no dia 23 de janeiro de 1823 os emancipacionistas assumem formalmente o Governo da província do Ceará elegendo-se uma Junta Governativa.[9]
         Mas isso não bastou para os cearenses, os quais, tão logo, cuidaram em expandir o movimento de libertação para o Piauí, constituindo a Força Expedicionária do Ceará, também denominada de Delegação Expedicionária, Exército Expedicionário ou Exército Libertador.[10]  
         Esse exército partira para o Piauí no dia 29 de março de 1823, no entanto, o Cel. João de Araújo se antecipou, pois, saindo dos Inhamuns, chegou à Valença/PI no dia 1º de março de 1823, comandando uma tropa integrada por 300 praças de cavalaria e uma companhia de infantaria[11]. Daí seguiu para Campo Maior/PI às nove horas do dia 07 de março[12], tomando parte no embate do Barranco do Jenipapo no dia 13 do mesmo mês.
         O Coronel João de Araújo Chaves não veio integrando o corpo da Força Expedicionária do Ceará, mas outros contingentes, batizados genericamente por Exército Auxiliar, Força Auxiliadora, Legião Imperial ou Exército Popular Auxiliador,[13] os quais se uniram à primeira ao longo dos meses que se seguiram, durante os embates.
         O Exército Popular Auxiliador era formado basicamente pela força militar de primeira linha (o exército profissional) e de segunda linha (as milícias), além dos chamados voluntários (vaqueiros, agricultores, índios e escravos), constando de gente do Ceará, Piauí e Pernambuco. Tal exército não dispunha de armas suficientes, mas veio a protagonizar a maior batalha pela causa da Independência do Brasil, a Batalha do Jenipapo.[14]
         Fidié havia se ausentado da Capital da Província do Piauí, Oeiras, desde o dia 13 de novembro de 1822, com o propósito de retomar a Parnaíba, que aderira ao movimento de independência no dia 19 de outubro de 1822.[15] A retirada de Fidié com cerca de 2000 homens favoreceu a proclamação da independência em Oeiras, realizada no dia 24 de janeiro de 1823.[16]
         A logística da guerra demandava retomar o controle sobre a capital da província, fato intentado por Fidié, que, saindo da Parnaíba, pôs-se em marcha na direção de Oeiras, mas, antes de chegar ao seu destino, havia de passar por Campo Maior, onde quedavam estacionadas as tropas do Exército Popular Auxiliador, incluindo-se o Coronel João de Araújo Chaves.
         Através de um espião[17], Fidié foi informado da situação em Campo Maior, bem como do deplorável armamento possuído pelos seus oponentes, duvidosamente estimados em 6000 homens[18], em sua maioria munidos de facas, facões, machados e chuços de ferrões. Nisso, Fidié enxergou a vitória, pois, na ocasião, comandava um exército profissional formado por 1100 homens, bem treinado e armado.[19]
         Às margens do Rio Jenipapo, no campo de mesmo nome, a nove quilômetros da Cidade de Campo Maior (ao lado da BR 343), tiveram encontro as tropas inimigas, momento pelo qual se deram combate, iniciado por volta das nove horas do dia 13 de março de 1823, e levado a termo, aproximadamente, às 14 horas do mesmo dia.
         O Exército auxiliar pretendia dar combate às tropas portuguesas em um ambiente que lhes favorecesse, evitando os campos abertos, pois suas armas (espingardas, foices, facões etc.) possuíam pequeno alcance, por isso a melhor opção seria a luta corpo a corpo. Por outro lado, Fidié era especialista em combates em campo aberto, pois essa era a regra na Europa. Logo, as condições à beira do Jenipapo acabaram beneficiando o exército português.
         A tropa portuguesa dispunha de 11 peças de artilharia, afora sobejo armamento e munição, o que não intimidou aos brasileiros, que, com admirável bravura, avançaram sobre o inimigo, desejando espetá-los com suas rudes quicés, lavados pelo heroico impulso do embate, instante em que eram alvejados pela grossa artilharia, indo morrer ao pé dos canhões.
         No entremeio dessa peleja, os patriotas, paulatinamente, conseguiram encurtar a distância que os separava de seus antagonistas, o que lhes conferiu certa vantagem sobre a tropa portuguesa. Mas, ao fim das cinco horas de intensa luta, os brasileiros, sem possuir qualquer treinamento, recuram desordenadamente.
         Apesar de Fidié alegar ter sido o vencedor dessa batalha, sendo essa a versão mais aceita pela história oficial, a verdade é outra, pois, mesmo havendo a debandada dos brasileiros, o Comandante português não atingiu seu objetivo: reconquistar Oeiras.
         A marcha de Fidié fora abortada, sendo ele obrigado a mudar sua rota, rumando para o Estanhado (hoje, cidade de União), de onde se dirigiu para Caxias/MA, reduto de seus ricos patrícios.[20] Além disso, boa parte da bagagem de guerra (munições, armas, dinheiro e o produto de saques de Parnaíba) fora deixada para trás, da qual se apossaram os patriotas.[21]
         Nesse confronto esteve presente o Coronel João de Araújo Chaves, que lutou ao lado dos dois comandantes do Exército Popular (João da Costa Alecrim e Luiz Rodrigues Chaves), bem como na companhia de um de seus parentes, o Capitão Manoel Martins Chaves, comandante interino de Piranhas (Ribeira de Crateús/CE), que veio a tombar morto no campo do Jenipapo.[22]
         A quantidade de mortos nesse evento é imprecisa, mas estima-se 200 brasileiros entre mortos e feridos[23], e mais de 500 aprisionados, enquanto que do lado português apenas 16 homens foram abatidos[24], o que enseja certa dúvida, pois são números dados pelo próprio Fidié, o qual inadmitiu a derrota na batalha do Jenipapo. Afinal, a guerra também era pelo discurso.
         No mais, esse cômputo ficara obstado pelo fato de não se saber onde foram enterrados os brasileiros abatidos no campo inimigo, sepultados sem identificação pessoal e em lugar ermo.[25]   
         Desse momento em diante, a perseguição ao comandante Fidié não cessou, sendo que no dia 20 de março de 1823 o Coronel João de Araújo Chaves se reuniu com o Comandante Rodrigues Chaves, o Capitão Alecrim e o Alferes Salvador Cardoso na Fazenda São Pedro (atual cidade José de Freitas/PI).
         O Comandante português chegou à Caxias/MA no dia 17 de abril de 1823[26], indo se alojar no Morro das Tabocas (posteriormente, Morro do Alecrim, em homenagem a João da Costa Alecrim), para onde também se dirigiram os combatentes do Jenipapo. Estes, chegando ao Maranhão, trataram de cercar o dito morro, no intuito de enfraquecer os inimigos. Dessa forma, distribuíram alguns destacamentos ao redor da área a ser isolada, cabendo ao Coronel João de Araújo e ao Capitão José da Costa Nunes fazerem a guarda da Barra do Riacho Fundo.[27] 
         Durante o cerco, ordens foram expedidas para que os brasileiros pusessem à cintura um cinto de palha de buriti e um ramo verde no chapéu[28], para que não fossem confundidos com os soldados de Fidié.
         Nesse comenos, no dia 26 de julho de 1823, chega a São Luís do Maranhão o Comandante da Esquadra Brasileira, Lord Cochrane, e no dia 28 do mesmo mês foi proclamada oficialmente a adesão do Maranhão à Independência do Brasil.[29] Mesmo sem despender efetivos esforços para esse resultado, Cochrane recebera injustamente as glórias pela Independência do Norte do Brasil, sendo condecorado pelo Imperador com o título de Marquês do Maranhão.[30]
         Em Caxias, o Exército Auxiliador Popular, vencedor da batalha do Jenipapo, recebeu o reforço da Força Expedicionária do Ceará, que chegou ao seu destino no dia 21 de julho de 1823, depois de 115 dias de marcha.[31] À frente de mais de 2000 soldados, na maioria, cearenses, vinha José Pereira Filgueiras, Tristão de Alencar Araripe e Luís Pedro de Melo Cezar.[32] No percurso o contingente aumentou, perfazendo um número de mais de 6000 homens, e, ao chegar a Caxias, somavam-se 18000 combatentes.[33] 
         O Comandante José Pereira Filgueiras tratou de negociar os termos da rendição com Fidié a partir do dia 23 de julho de 1823, mas este se manteve renitente durante a negociata, em razão de que abriu mão do posto de comandante das tropas portuguesas em favor do Tenente-coronel Luis Manuel de Mesquita.
         Desconhecendo a vitória ocorrida em São Luiz,[34] as negociações em Caxias continuavam, até que em 30 de julho os portugueses aprovaram os termos da capitulação (rendição),[35] documento que também foi assinado pelos integrantes da Força Brasileira, sobre o qual igualmente apôs sua rubrica o Coronel João de Araújo Chaves.[36]
         Esses sertanejos foram os verdadeiros responsáveis pela manutenção da unidade territorial do país, pois não fosse sua intervenção, ficaria o Brasil separado da sua Região Norte. Mas, o envolvimento de alguns desses heróis da independência nas guerras civis de 1817 e 1824 resultou num processo de desmoralização de seus feitos e, consequentemente, na proposital negação de seus méritos.
         Os mercenários estrangeiros levaram a fama e o soldo, enquanto a memória acerca da participação dos brasileiros do sertão nordestino foi suprimida pela história oficial até o presente momento.
         Predomina a versão de que a Independência fora comprada. Talvez! Mas só no cenário internacional, no sentido de que Portugal reconhecesse o Estado Brasileiro Independente. Quiçá, mais uma farsa, ou mesmo um presente de 22 milhões de libras esterlinas de um filho a um pai.
         Todavia, algumas centenas de nordestinos verteram sangue sobre o solo pátrio, rubro licor tão rapidamente absorvido pelos torrões quanto o foi a memória da participação desses matutos pela Independência do país.         
         Fato lastimável que envolve o Coronel João de Araújo Chaves, nascido e criado na caatinga do sertão dos Inhamuns, vencedor da Batalha do Jenipapo, protagonista da Guerra de Independência, um dos heróis brasileiros, e, como tantos outros, esquecido intencionalmente pela versão oficial da história.      



BIBLIOGRAFIA:

Freitas, Antônio Gomes de, Inhamuns (Terra e Homens), Fortaleza-CE, Editora Henriqueta Galeno, 1972.

Prudêncio, Antônio Ivo Cavalcante, Heróis da Solidão: Províncias do Norte (1817 a 1824), 1ª Ed., Fortaleza-CE, 2011.

Vicentino, Cláudio, História do Brasil, São Paulo, Editora Scip



[1] Prudêncio, Antônio Ivo Cavalcante, Heróis da Solidão: Províncias do Norte (1817 a 1824), 1ª Ed., Fortaleza-CE, 2011, p. 27.
[2] Ibidem, op. cit., p. 29
[3] Ibidem, op. cit., p. 24.
[4] Vicentino, Cláudio, História do Brasil, São Paulo, Editora Scipione, 1997, p. 166.
[5] Prudêncio, op. cit., p. 35.
[6] Ibidem, op. cit., p. 82.
[7] Ibidem, op. cit., p. 80.
[8] Ibidem, op. cit., p. 81.
[9] Ibidem, op. cit., p. 83.
[10] Ibidem, op. cit., p. 191.
[11] Freitas, Ibidem, op. cit., p. 104.
[12] Prudêncio, op. cit.,, p. 128.
[13] Ibidem, op. cit., p. 121.
[14] Ibidem, op. cit., p. 113.
[15] Ibidem, op. cit., p. 88.
[16] Ibidem, op. cit., p. 103.
[17] Ibidem, op. cit., p. 116.
[18] Ibidem, op. cit., p. 130.
[19] Idem.
[20] Ibidem, op. cit., p. 136.
[21] Ibidem, op. cit., p. 139.
[22] Freitas, op. cit., p. 105.
[23] Prudêncio, op. cit., p. 157.
[24] Ibidem, op. cit., p 138.
[25] Ibidem, op. cit., p. 161.
[26] Ibidem, op. cit., p. 169.
[27] Ibidem, op. cit., p. 179.
[28] Ibidem, op. cit., p. 178.
[29] Ibidem, op. cit., p. 181.
[30] Ibidem, op. cit., p. 184.
[31] Ibidem, op. cit., p. 192.
[32] Ibidem, op. cit., p. 191.
[33] Ibidem, op. cit., p. 197.
[34] Ibidem, op. cit., p. 209.
[35] Ibidem, op. cit., p. 198.
[36] Ibidem, op. cit., p. 200.