A
Chica da Silva do Ceará
Heitor Feitosa Macêdo
Há quase uma década, recebi do padre
Roserlândio, admirável cultor do saber, um material digital lá do Instituto do
Ceará. Se tratava de uma capenga digitalização dos preciosíssimos arquivos do
Barão de Studart, este, nome de gringo, mas cearense da cabeça chata e um dos
maiores pesquisadores do Brasil.
Quando digo capenga, não há conotação
pejorativa. Pelo contrário, a intenção dessa digitalização foi muito nobre,
todavia, o resultado não atingiu seu objetivo principal, de democratizar a
informação, até então, restrita à pequena burguesia intelectual da capital
cearense.
Esses documentos contêm informações
diversas, são manuscritos e transcrições desde a invenção do Ceará, do tempo em
que Martim Soares Moreno usava fraldas e o chefe Jacaúna não passava de um
curumim. Grande parte desse material sequer foi devidamente explorada e tem o
potencial de desconstruir narrativas oficiais, isto é, de recontar a história
dentro de uma dinâmica que lhe é própria.
Há uns dois anos, quando presidi uma
dessas pomposas instituições de pretensos imortais, tive a oportunidade de
conversar com Lúcio Alcântara, ao tempo, presidente do Instituto do Ceará, não
perdendo a chance de expor a ele a necessidade de se fazer nova digitalização
desse arquivo do Barão de Studart, de maneira a possibilitar leitura adequada
desses alfarrábios. É uma esperança, não imortal, mas é a última que morre!
Mas qual a relação disto com a Chica
da Silva do Ceará?
Quem já não ouviu falar na Chica da
Silva, mulher negra e rica que viveu em Diamantina/MG, “amancebada” com um poderoso português, contratador dos diamantes? Ainda não? Pois é só pesquisar
no google ou ver a novela ou ler as diversas biografias sobre ela.
Agora, escute o que eu vou dizer! No
arquivo do Barão de Studart encontrei menção a uma outra Chica, a Chica Chóra,
qualificada como “crioula” forra e residente na belíssima vila cearense do
Aracati, na década de 1750.
À época, segundo o Padre Bluteau e
Antonio de Moraes Silva, século XVIII, “crioulo” ou “creoulo” era termo que se
referia ao “escravo” (escravizado) nascido na casa de seu senhor,
diferente daquele que era adquirido por compra. Ao lado disso, rezam os mesmos
dicionaristas que ser “forro” era ter saído da escravidão, ter sido libertado.
Chica Chóra era apelido de Francisca
Barboza, mulher de cor que havia casado com o senhor Gonçalo Morera,
aproximadamente, em 1748, com quem teve três filhas “pardas”, o que leva a crer
que seu esposo fosse de origem branca. Porém, é interessante notar que este
casal havia se divorciado diante da Igreja, já que ainda não havia casamento
civil.
Mas o que há de tão interessante na
vida de Chica Chóra?
O documento em destaque é uma
“devassa”, datada de 1769, semelhante ao que, hoje, o Direito denomina de
processo penal. Neste, é processado o oitavo ouvidor-geral da capitania do
Ceará Grande, o bacharel em direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal,
Vitorino Soares Barbosa.
Cabe mencionar que ouvidor-geral
significava ser juiz de Direito, com formação acadêmica, bem como, naquele
tempo, décadas de 1750 e 1760, na então capitania do Ceará, só existia um único
ouvidor para a comarca única existente, a do Ceará, criada no ano de 1723. A
título de curiosidade, somente em 1816 a dita comarca é dividida, criando-se a
Comarca do Crato, ou Nova Comarca.
Desde o primeiro ouvidor-geral
empossado na comarca do Ceará, o que ocorreu em 1724, com o doutor José Mendes
Machado, apelidado pelos cearenses de o Tubarão (por ter uma mordida grande
sobre os tributos, já que acumulava a função de coletor de tributos), quase
todos foram acusados por diversos crimes, o que não foi diferente com Vitorino
Soares Barbosa. Desse tempo, resultou o ditado do povo: “justiça do Ceará te
persiga”, tida como uma das piores maldições.
Na devassa citada, Vitorino é acusado
de cometer diversos crimes no desempenho das funções judicantes, abusando do
poder para obter vantagens bem como se aproveitando disto para se deitar com
mulheres virgens e com senhoras casadas.
Estava Vitorino associado a outras
pessoas no cometimento desses delitos, a exemplo do advogado José Pereira de
Melo, apelidado de o Palangana (vasilha para depositar ossos, etc.) em razão de
ter sido degredado de Pernambuco para a Ilha de Fernando de Noronha por cometer
roubos em Igrejas.
O Palangana também estava se
relacionando com diversas mulheres, entre elas, Maria de Santana, inimiga da
Chica Chora. Para defender sua amásia, o dito advogado resolveu usar a justiça
como ferramenta de vingança, conseguindo com seu amigo particular, o juiz
Vitorino, sequestrar diversos “bens” da Chica, isto é, quatro escravos, 180
cabeças de gado e uma casa residencial na vila do Aracati.
Além disso, o Palangana conseguiu
prender por um ano as três filhas da Chica bem como emperrava o recurso de
agravo dela para o tribunal da Relação, na BA (espécie de STF do Brasil naquela
época), sem falar que, depois da soltura das moças, conseguiu promover novo
sequestro sobre os bens da Chica Chóra.
Até o presente momento, eu nunca havia
ouvido falar nesta senhora negra, presumidamente, rica e de grande importância
na sociedade cearense do século XVIII, contemporânea à célebre Chica da Silva.
Espero que este documento sobre a Chica Chora sirva de fonte a alguém mais
abalizado e com lugar de fala mais adequado do que o meu.
Transcrição do documento:
Cap.o 23.
Fez outro na crioula Fran.ca Barboza/ p.´ alcunha xica xóra, forra, q´ p.´ o d.o Joseph/ Per.a ter tractos illicitos com huã Maria de/ S. Anna, com a qual a d.a Fran.ca Barboza tive/ ra huãs razões, e em despique fez sequestrar/ o d.o Joseph Per.a a d.a xica, e tres filhas par-/ das, donzellas, quatro escravos, cento, e oiten/ ta cabeças de gado vacum, e huã morada de/ cazas na V.a do Aracatî, a qual tinha forra-/ do seu Senhor Gonçallo Morera, avia vinte, e hum anno, e com ella se avia cazado, e/ depoiz divorciado pelo Juizo Ecclez.o, e feito/ part.as dos bens; e sem embg.o de ser notória-/ mente conhecida por forra, a teve, e as su-/ as filhas prezas na Cadea da d.a V.a hum an-/ no, sem lhe valer requerimento algum, e/ tomando p.´ Letrado ao L.do Jozeph Roiz de/ Azevedo, as gravou daquelle procedimento/ para a Rellaçam, e formadas as razões, indo [imagem 364]/
com vista ao d.o Joseph Per.a
se ficou com elle sem mais o querer dar com resposta ou/ sem ella athé o dia de
hoje, e o mesmo Jose-/ ph Per.a armou huã petiçam em nome das/
prezas, dizendo estarem em tizicas as filhas del-/ las, e as mandou logo soltar
o Ouv.or fazen-/ do-selhe segundo sequestro, com gr.de
segredo,/ no gado, e cazas, que ainda está em ser.
Test.as
o L.do Joseph Roíz de Az.do/ O Sarg.to
Mor Joseph Roíz P.to/ Joam Coelho, e todo o povo/ do Aracatî [imagem 365]
Fala heitor tudo bem? Gostaria da sua opinião sobre uma pessoa que acredito ser o pai da minha vó “Francisco Alves feitosa” gostaria de tirar alguma dúvidas com você já que você fez uma matéria sobre a família. Nome dele consta na certidão de casamento dela e por tudo que li e os relatos dela tem uma chance de ser essa pessoa
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