Massacre aos Índios Xocó no Cariri
Cearense: Documento Inédito
Heitor
Feitosa Macêdo
Até
hoje, pouco se conhece sobre a presença dos índios Xocó na Região supedânea da
Chapada do Araripe, que divisa o Sul do Estado do Ceará com Pernambuco, Paraíba
e Piauí. É por esta razão que, no presente artigo, pretendo colaborar com um
pequeno suporte documental que trata de um massacre feito contra tais índios no
ano de 1867, a fim de que outros estudiosos possam aprofundar suas pesquisas acerca
do assunto.
Representação de um índio do grupo "tapuia", que incluía os Xocó (Obra do holandês Albert Eckhout: "Homem Tapuia", séc. XVII) |
Na
segunda metade do ano de 2014, quando tomei chegada no Instituto Cultural do
Cariri (ICC), com sede no Crato/CE, o biólogo Weber Girão, à época,
vice-presidente desse pomposo sodalício, me apresentou uma pasta repleta de documentos manuscritos, a maioria datada do século XIX. Até aquele instante,
não conhecíamos a importância do conteúdo daquele cartapácio.
A curiosidade me dominou a ponto de
assumir o compromisso de realizar a leitura do dito alfarrábio, composto por 93
páginas de uma caligrafia nem sempre muito convidativa. Há pouco nos conhecíamos,
mas, mesmo assim, Weber Girão me entregou a pasta com as folhas centenárias.
Penso que não tínhamos outra alternativa, pois o ICC é uma instituição que vive
à mendicância, sem nenhum recurso público, a depender de parcas contribuições de
alguns modestos sócios e do aluguel de parte das salas do prédio de sua sede.
Então, foi assim que me detive por mais
ou menos duas semanas sobre tais escritos, tentando ser fiel à leitura
paleográfica (paleo = antigo, grafia = escrita) dos manuscritos que me
foram confiados. Algumas folhas muito deterioradas quase que se desmanchavam a
toques delicados. Era necessário ter muito cuidado para não piorar o péssimo
estado de conservação do material.
Durante a penosa leitura, encontrei
informações preciosíssimas para a História do Cariri cearense. Desde
cartas-patentes a correspondências dos confederados de 1824. Cada informação me
compelia mais e mais à decifração de abreviaturas; de letras quase apagadas; de
latinismos a torto e a direito; do português arcaico, tão genuíno e agradável aos
ouvidos do homem gramaticalmente moderno.
Das várias informações obtidas, julgo
que uma das mais importantes esteja relacionada ao documento referente a um
auto processual de 1867, no qual apura-se um crime cometido contra os índios
Xocó, “aldeados” na Serra da Cachorra Morta, na então Vila de
Milagres/CE.
Mas, antes de adentrar o mérito
principal da questão, temos que fazer uma breve explanação sobre a história dos
Xocó na Região do Cariri cearense, antigamente denominado de Cariris Novos.
O termo “xocó” é de origem indígena,
tendo como variante a palavra “socó”, que designa uma ave bastante comum no
Cariri, aliás, em todo o Brasil, e que habita rios, lagoas, brejos e pântanos. A
origem do vocábulo vem de Côo-có = çoó (bicho), e có (manter, apoiar, arrumar), ou seja, “o bicho que se arrima”,
pelo fato de essas aves se apoiarem numa só perna. Mas deve ser ressaltado que,
no Cariri, existe mais de uma espécie de ave com essa denominação, pois há,
além do simples “socó”, o “socó-boi”, ou seja, o socó-cobra, pois “boi”, neste
caso, também é de origem indígena (mboi
= cobra).
Mas quais são as informações mais
antigas sobre a origem e a presença desta “tribo” nas imediações do Cariri
cearense?
No ano de 1802, o capuchinho italiano
frei Vital de Frescarolo entrou em contato com o resto de quatro diferentes
nações bárbaras dos sertões de Pernambuco e Ceará: os Pipipão, Umão, Vouê e
Xocó, relatando o reduzido número de seus membros bem como as violências que
vinham sofrendo por parte dos latifundiários, criadores de gado:
(...)
foi servido encarregar-me da importante diligencia de pacifical-os,
instruil-os, baptizal-os e aldeal os, até pôl-os no caminho do céu, e ao
serviço do rei (...). Aos 7 de Julho sahi de Pernambuco, e aos 31 do dito
cheguei na capela de Jeritacó, ribeira do Moxotó, e no primeiro de Agosto, que
era o dia de Sant’Anna, depois de ter celebrado a santa missa, lá vierão dous
dos ditos gentios a ter fala comigo, porque já estavão notificados pelos
moradores da dita ribeira; com muito agrado os recebi, e perguntando eu por
toda a sua gente, responderão, que estavão todos juntos no mato, esperando por
mim, mas que não sahião n’essa ribeira por medo da muita gente que lá havia, e
que só indo eu ao logar chamado Jacaré, por ser este logar muito retirado, sem
falta todos lá sahirião; e por eu saber que esta é uma gente muito desconfiada,
e só com paciência, prudência e caridade se vence, lhe fiz a vontade, e com
todo rigor da seca e da fome, do melhor modo que pude, aos 12 de Agosto, ao sol
posto, cheguei n’este logar Jacaré, sem achar gentio nenhum; e aos 13, ás 5
horas da tarde, é que aparecerão 4 correios dos ditos gentios, e um d’elles era
o seu capataz; e chegando, como sinal de respeito e de entrega, logo encostarão
seus arcos e frexas ao meu pobre ranxo.Com agrado e alegria os recebi, e
perguntando eu aonde estava a sua gente, respondeu o lingua e capataz, que a
gente vinha muito devagar em razão da fome, dos velhos e dos meninos, mas que
amanhan, até depois, sem falta estavão todos n’este logar. Com efeito aos 15,
dia da gloriozissima Assumpção de Maria Santissima ao céu, ás 4 horas da tarde,
é que tive o inexplicável contentamento de ver-me cercado, e ter na minha
prezença 114 gentios brabos, que é o numero total d’elles, entre maxos e
fêmeas, grandes e pequenos. Uns tantos d’elles mostravão no semblante que
nenhum medo tinhão; mas uns tremião de modo que não posso explicar, e
principalmente as mulheres; porém assim mesmo uns tantos encostárão os arcos ao
meu ranxo, e outros m’os derão para guardar (...) e por fim lhes dei a benção
com o Santo Cristo, e os mandei arranxar no mato. No dia seguinte os chamei
todos á minha prezença, e por meio de 10 linguas, que tem todo este ranxo de vermelhos,
principiei a explicar-lhes qual era a cauza da minha vinda a estas brenhas: que
era mandado de Deus, do rei e do governo para elles se aldearem, baptizar,
instruir na fé católica, servir ao rei e nunca mais viver como bixo no mato,
mas sim como christãos em aldeia para se salvarem. A isto responderão todos que
este sempre foi o seu dezejo, mas que tinhão medo dos brancos, e que esta não
fosse falsidade minha, como já foi aquella do riaxo do Navio, do Brejo do Gama
e outras, que dice a V. Ex. Revma o anno passado, quando aldeei os indios
brabos do Olho d’agua da Gameleira, na freguezia do Cabrobó, que debaixo da
capa de paz e da santa missa fizerão d’estes mizeraveis tão horrenda carnagem
de prender, atirar, xumbar, acutilar, espancar, matar e picar, como si não
fossem gente da mesma especie como nós.
Três décadas depois, em
1838, chega aos Cariris Novos o naturalista George Gardner, onde encontrou
“índios não civilizados”, isto é, que ainda conservavam os antigos costumes
étnicos por não terem sofrido influência da cultura europeia:
Há
duas pequenas tribos de índios não civilizados no distrito de Barra do Jardim;
mas seu número vai diminuindo rapidamente. Uma das tribos, os huamães, com
cerca de oitenta indivíduos, habita geralmente a umas sete léguas a sudoeste da
vila. A outra, a dos xocós, em número de setenta mais ou menos, tem moradia
habitual a cerca de treze léguas para o sul. Embora normalmente inofensivos por
índole, tinham sido, pouco antes de minha visita, apanhados a roubar gado nas
fazendas vizinhas. Aparecem às vezes na vila. Diz-se que têm hábitos pouco
limpos e, na falta de melhor alimento, comem cascavéis e outras cobras.
A Barra do Jardim fica
no atual município de Jardim, Sul do Estado do Ceará, na divisa com Pernambuco,
ao sopé da Chapada do Araripe, no Cariri cearense. Ao que parece, este grupo de
índios Xocó, apesar de nômade, migrava frequentemente para a região Araripana, em decorrência das condições climáticas favoráveis, e, neste itinerário errante, com o passar do
tempo, diante do choque étnico com os “invasores europeus”, sofreu um
processo de “sedentarização”.
No ano de 1859 chegou ao Ceará a Comissão
Científica de Exploração, enviada pelo Imperador D. Pedro II, com o propósito
de estudar as Províncias do Norte do Brasil, termo que, à época, incluía a
atual Região Nordeste. Os cientistas estavam agrupados em cinco seções (1-
Botânica; 2- Geológica; 3- Zoológica; 4- Astronômica e Geográfica; 5-
Etnográfica e Narrativa de Viagem).
Na chefia da Comissão Etnográfica
estava o poeta e cientista Gonçalves Dias que, cumprindo com sua tarefa, foi
averiguar as informações acerca da existência de índios “não civilizados” na
Serra do Salgadinho, conforme asseverou seu colega de viagem Capanema: “O Dr.
Dias tinha quer ir ver os restos de uma tribo indígena ainda numerosa em 1848 e
hoje quintada, que se acha na Serra do Salgadinho”. Contudo, suas expectativas
não foram atendidas, pois disse o mesmo Capanema que os índios da província cearense já eram
todos aculturados: “Após de mim adoeceu meu companheiro de viagem, Dr.
Gonçalves Dias, que depois de restabelecido seguiu para o Maranhão em busca de
indígenas puros, que não encontrava no Ceará”.
Estas são as principais notícias que se
tem sobre os índios Xocó no Cariri cearense. Fora deste espaço, sabe-se que o
referido grupo também existe nas margens do Rio de São Francisco, na Ilha de
São Pedro (em Porto da Folha, atual Estado de Sergipe), onde tais indivíduos
eram conhecidos por “Romaris”. Ocorre que neste lugar os Xocó também foram
vítimas da usurpação de terras, pois, sob o pretexto de que a tribo havia sido
extinta, a propriedade onde viviam passou a pertencer à “prefeitura de Porto da
Folha”. Este discurso da extinção dos índios foi ladeado por uma ação
perniciosa de violentas perseguições, a fim de suprimir oficialmente a
existência da identidade Xocó. Isto resultou na fuga desses indivíduos para os
aldeamentos de seus parentes, os Cariris, formando o grupo Cariri-Xocó.
É importante lembrar que a família de
ascendência europeia mais antiga do Cariri, os Mendes Lobato, também veio de
Porto da Folha, em Sergipe. Este fato enseja levantar a hipótese acerca
da possibilidade de o curso migratório destes brasilíndios ter favorecido a
invasão dos “brancos” nas imediações da Chapada do Araripe.
O senso comum da populaça nega a
presença de remanescentes indígenas no Cariri cearense, pois, pelo fato de
estes terem sofrido miscigenação e por terem se aculturado, não são mais
considerados “índios”. Por outro lado, pela falta de conhecimento de suas
próprias origens, estes remanescentes não se autorreconhecem como sendo descendentes diretos dos primeiros habitantes das Américas.
Ostentar nomes e sobrenomes cristãos;
usar telefone celular e internet; falar em língua portuguesa; vestir-se com roupas
convencionais; residir em casas de alvenaria com água encanada e luz elétrica
são alguns dos principais sustentáculos para perpetuar o discurso da extinção
dos índios no Sul do Ceará e, também, na maior parte do Brasil.
No
Cariri, o discurso histórico sobre a extinção completa dos povos indígenas
sustenta-se no fato de os índios aldeados na então Missão do Miranda (em Crato),
desde a década de 1740, terem sido transferidos em 1779, juntamente com
os índios Jucá (da Missão de Arneiroz), para o litoral cearense, onde diferentes
etnias foram alocadas caoticamente (tabajara, cariri, jucá, cariú, xocó, etc.).
Não se pode negar que tenha havido o
dito deslocamento, mas, mesmo assim, boa parte desses íncolas permaneceu no
território caririense, sob variadas formas, as quais decorreram das fugas para
as matas e serras, relativamente, próximas; da mestiçagem com negros e brancos;
da integração à “sociedade civil”, transformando-se, geralmente, em rendeiros
(“moradores”) e vaqueiros; bem como pela escravização, mesmo que em contrariedade
às leis da época.
É
comum encontrar nos manuscritos referentes aos Cariris Novos, dos séculos XVIII
e XIX, a indicação de indivíduos autóctones, pois, apesar de ostentarem nomes
cristãos, são qualificados nos antigos textos como "cabras", "curibocas", "mamalucos" (mamelucos), "caboclos" (“caboculo”), etc.
Apesar de não ser oficialmente aceito, é
inconteste a atual presença dos povos indígenas no mosaico social caririense. Para
comprovar esta afirmativa basta pesquisar nos núcleos de favelização da zona
urbana a ancestralidade de seus habitantes, ou ir ao campo e fazer o mesmo em
relação àqueles que praticam a agricultura de subsistência. Geralmente,
encontrar-se-ão nos costados dessa gente indivíduos que eram “moradores” do
coronel Fulano ou "vaqueiros" do coronel Beltrano. Esta é a mais pura atestação da absorção
do "Povo kariri" à sociedade contemporânea!
O “cronista” João Brígido dos Santos,
certamente estribado no antigo conceito de que para ser índio era necessário
preservar os costumes do tempo do descobrimento do Brasil, ou seja, andar de
tanga e cocá, além de viver de caça e pesca, julga que a população indígena do Sul do Ceará era menor que na parte Norte:
É
preciso não esquecer uma circunstância que dá ideia mais completa do movimento
imigratório no sul do Ceará. A população de origem americana é menor ali do que
no norte. Os índios foram quase exterminados nas regiões do Jaguaribe pelas
guerras que tiveram entre si e principalmente pelas bárbaras e incessantes
correrias dos capitães-mores de Entradas, enquanto que no norte a proteção dos
jesuítas os tinha feito poupar.
Desenho que ilustrava o Jornal "O Araripe" (1855-1865), cujo redator era João Brígido. |
Adotando posição
semelhante a de João Brígido, Joaryvar Macedo, ao mapear as origens dos
“colonos” caririenses, afirma que os povos ameríndios pouco contribuíram para
a atual formação étnica e social da referida região:
A
corrente migratória do extremo sul do Ceará integrou-se, em maior parte ou
menor contingente, de: a) baianos (...). Os escravos provinham, em maior
número, da África Ocidental, particularmente da Costa da Mina e do Reino de
Angola. Os do Brasil procediam, especialmente, do Rio São Francisco. Lembre-se
que, para a formação étnica e social deste Cariri, verificou-se a contribuição
‒ não muito expressiva ‒ de indígenas.
Diante disto, será
razoável aceitar que a sociedade caririense é formada em maior parte por brancos e por negros africanos? Será que o autor foi influenciado pelo discurso da negação da
presença do índio no Cariri, que, outrora, fora a principal ferramenta de
legitimação ao esbulho das terras indígenas?
Em 1719, no inventário da esposa do maior
latifundiário da história do Cariri, o capitão Antônio Mendes Lobato, a
descrição dos bens indica apenas um escravo africano na “extensa” relação de cativos, sendo que o restante deles compunha-se de índios "calabaças" e "cariús".
Em 1838, o cientista inglês George
Gardner descreveu a compleição étnica da Vila do Crato, destacando a numerosa
mestiçagem com os povos indígenas, nos seguintes termos: “Toda a população da
Vila chega a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou mestiços que deles
descendem”.
De passagem entre o Icó e Crato, outro
cientista, desta vez o médico botânico Francisco Freire Alemão, se deparou com
uma mulher “cabra” (índia) que era escrava. Também fala sobre a existência de
muitas mulheres pardas e mamelucas no Juazeiro (do Norte). Igualmente, quando de sua estada no Crato,
indicou haver mulheres “cabras ou mamelucas” bem como homens "cabras" vestindo
camisa e ceroulas, etc.
Mas, além dessas fontes, outras informações
apontam haver possíveis remanescentes do primitivo Povo Kariri na atual
sociedade caririense. No início do século XX, o médico Irineu Pinheiro registrou
uma antiga tradição em torno do fumo e um hábito bem peculiar, o de limar os
dentes, ambos, provavelmente, de origem autóctone.
Pesquisas atuais suspeitam que ainda possam existir remanescentes dos Xocó em
Milagres, como Dona Dionísia Severo, idosa com mais de 70 anos, que neste lugar reside e ainda pratica tradições herdadas do conhecimento indígena, como, por exemplo, o cultivo de ervas pertencentes à flora nativa.
O Conteúdo do Documento: Resumo
Em meados do século XIX, os Xocó haviam sido
aldeados na Serra da Cachorra Morta pelo major Manoel José de Sousa, que também
exercia a função de diretor destes índios e, após sua morte, seu filho Manoel
Fortunato de Sousa assumiu o dito cargo.
Aldeados nesta serra, os Xocó viviam da
agricultura, porém, suas lavouras estavam sendo invadidas por gados de alguns
pecuaristas. Para resolver a situação, a administração da Vila de Milagres,
através da criação de uma lei, estabeleceu multa para os criadores que não
retirassem seus gados da Serra da Cachorra Morta. Todos os fazendeiros
obedeceram a determinação, exceto José Inácio da Silva.
Devido a sua contumácia, José Inácio foi multado pelo fiscal, no entanto, “apelou” para o juiz de direito e
conseguiu a “absolvição” da multa, demonstrando que ele estava sendo favorecido
por algumas autoridades. Assim, José Inácio continuou a criar seus gados na
dita serra. Porém, os índios começaram a “maltratar” algumas rezes, causando o
descontentamento do proprietário.
Daí, José Inácio da Silva começou a
arquitetar um plano para matar os índios e, assim, ficar na posse da terra
criando seus gados. Nesse sentido, forjou uma ordem para que o delegado lhe
entregasse uma “força” composta por 72 “praças”, o que fora feito na madrugada
do dia 28 de abril de 1867. Desta forma, foi invadir a aldeia sem qualquer
comunicação ao diretor dos índios, contrariando a disposição do Decreto Nº 426, de 24 de julho de 1845.
Durante a invasão, a tropa violava as
choupanas dos índios “cometendo toda a sorte” e “excessos nas famílias” dos
índios (espancamento e estupros?). Todavia, não encontraram os chefes da tribo, com a exceção do índio
Mariano, o qual foi amarrado e conduzido a um lugar próximo da aldeia, onde “se
abarrancarão”, esperando que os demais viessem socorrê-lo. Como esperado, passados poucos minutos, quatro índios apareceram pedindo a soltura do Mariano. Nesse
momento, os soldados abriram fogo contra os Xocó, resultando na morte de um dos índios e, em outros, ferimentos (graves e leves), havendo também a morte de um
dos soldados, que fora atingido por “fogo amigo”, devido à inadequada posição
do cerco.
Ocorre que o “processo judicial” estava
parado e, por conseguinte, o fato criminoso não estava sendo apurado
devidamente, ficando os criminosos impunes, os quais, em suas defesas,
pretextavam que haviam ido até a aldeia apenas para tomar as armas de caça dos
índios.
Diante do descaso, o Vice-Presidente da
Província do Ceará exigiu que as autoridades competentes averiguassem com
rigor o caso para que os culpados fossem punidos.
O DOCUMENTO: PALEOGRAFIA REALIZADA
POR HEITOR FEITOSA MACÊDO DOS MANUSCRITOS DO INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI – ICC
(CRATO/CE, 25/08/2014)
IMAGEM 01
Copia
Reservado
= Juizo Municipal de Milagres em 20 de julho de 1867 = Ill.mo Ex.mo
Senr̃ = Quando me achava fora desta Comarca no gozo de uma licença concedida
por essa Presidencia, deo-se neste termo um grave conflicto no lugar Cachorra
Morta entre os indios ali aldeiados e uma força comandada por José Ignacio da
Silva, e a elle fornecida pello Deleg.do de Policia e Tem.te
Coronel do Batalhão de infantaria deste Municipio Manoel de Jesus Conceição
Cunha, do qual resultou haverem duas mortes e alguns ferimentos graves e leves.
Esse facto já foi levado ao conhecimento de V.Ex.a pelo Diretor dos
mesmos índios, e vi que V.Ex.a ordenara ao Senr̃ Doutor Chefe de
Policia que mandasse instaurar um processo sem perda de tempo. O meu fim pois é
scientificar a V.Ex.a, que não me tem sido possível ainda tomar
conhecimento desse deploravel facto criminoso, por que q.do assumi
ao exercício das funções de meu cargo já tinha um Delegado deste termo tomado a
iniciativa desse facto e instaurado um processo que constou-me ter sido com
vistas ao Promotor Publico, mas que até o presente ainda não subio á minha audiência,
e pelo que me acho inhibido de tomar a iniciativa desse facto criminoso,
aguardando-me porem para proceder a respeito as diligencias que as
(fl. 01)
IMAGEM 02
Leis
me autorizao quando me for presente dito processo. E é tal o patronato que tem
apparecido aos verdadeiros criminosos, que o tal processo se acha [abafado], e
por tanto paralisado a acção da justiça. Reclamo por tanto de V.Ex.a
providencias no sentido de prosseguir o Delegado de Policia nos devidos termos
desse sumario crime, afim de que possa eu tomar conhecimento de tão bárbaro e
premeditado crime, de modos que não fiquem empunes seos verdadeiros autores. É
tal empenho com que se procura ocultar a verdade deste facto criminoso e os [méis?] empregados afim de que
não possa eu tomar a iniciativa ou mesmo conhecimento desse processo, que até o
proprio Doutor Juiz de Direito desta Comarca Americo Militão de Freitas
Guimarães, de quem se devia esperar imparcialidade que so por lhe constar que eu
procurava [sejudicar] e informar-me desse facto, apressou-se em dirigir-me o
officio, que por copia junto verá V.Ex.a. = Ex.mo Senr̃,
o lamentável acontecido do dia 28 de abril do corrente anno na aldeia dos
índios Cachorra-morta deste Termo, foi um crime premeditado. Pretendeo-se
exterminar a esses infelizes, e leveou-se a effeito seos tenebrosos planos. =
Aldeiados e catequisados esses índios na Serra denominada Cachorra-morta pelo
finado Major Manoel José de Souza foi pelo Governo Imperial nomeado director
(fl. 01v)
IMAGEM 03
dos
mesmos, e depois de sua morte foi nomeado seo filho Manoel Fortunato de Souza,
actual director. = A Serra denominada Cachorra-morta sendo composta de terrenos
proprios para a agricultura, era todavia invadida e muito [combatida?] de
gados, que nella criavão muitos fazendeiros, de modo que não podia prosperar
ali a agricultura. Nestas circunstancias a Comarca Municipal desta Villa impôs,
sob pena de multa, aos fasendeiros a retirada de seos gados da serra, todos os
creadores respeitarão as desposições Municipais, retirarão seos gados, a
excepção de José Ignacio da Silva que, menospresando a lei Municipal, não quis
retirar seos gados. = Por essa sua obstinação já lhe foi imposta pelo Fiscal em
correição a multa respectiva, que não querendo sujeitar-se, e sendo processado
apellara para o Doutor Juiz de Direito, e este o absolvera da multa. Já então
contava José Ignacio com a benevolência de certas autoridades com menospreso da
lei e em prejuizo dos índios e da lavoura da serra Cachorra-morta. José Ignacio
continuou a crear seos gados na serra e estes dannificando a lavoura dos
indios, aconteceo por vezes que os indios maltratassem algumas rezes daquelle e
dahi a rixa e entriga de José Ignacio contra os pobres indios. = Era preciso
extinguil-os, e reduzir a cinzas essa pequena
(fl. 02)
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aldeia,
afim de que José Ignacio podesse continuar a criar seos gados na serra. = José
Ignacio vem a esta Villa, combina-se aqui tenebroso plano de extermínio desses
infelizes; o Ten.te Coronel e Delegado de Policia Conceição Cunha
fornesse a José Ignacio uma força de setenta e duas praças, contra a disposição
de lei, finge-se uma ordem do Subdelegado do distrito do Coité José Leite
Furtado á José Ignacio inimigo dos indios, entrega-se esta força e na madrugada
do dia 28 de abril José Ignacio envade com ella a aldeia dos índios e sem
previa sciencia e consenso de seo Director tudo contrario as desposições da
lei/ Decreto Nº 426 de 24 de julho de 1845 e os principios de humanidade; e ao
passo que eSsa força evadindo e violando as choupanas desses infelizes iaô
cometendo toda a sorte excessos nas famílias dos mesmos e não tendo encontrado
aos chefes dessas familias a excepção do indio Mariano a este mesmo prenderão, e
amarrarão e o condusirão para um lugar proximo da aldeia, onde se abarrancarão,
esperando sem duvida seos infelizes companheiros, victimas de suas innocencias
e lealdades a seos irmãos. O plano não falhou e de feito d’ahi a poucos minutos
ex que se apresentão quatro indios pedindo a soltura de seo companheiro, a cuja
resposta, postos de baixo do cerco, forão
(fl. 02v)
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espingardeados,
do que resultou a morte de um indio e ferimentos graves e leves em outros, e
tambem a morte de um soldado, victima não dos indios, mas das balas de seos
proprios companheiros, segundo a posição do cerco que as balas de um iam
ofender a outros, tanto aSsim que a infeliz victima [indigitrava?] antes de morrer o soldado seo
proprio companheiro que lhe havia dado a morte. São estas pois Ex.mo
Senr̃, as informações que tenho colhido desse facto criminoso e que posso
ministral-as a V.Ex.a = Não querendo por em duvida a imparcialidade
e exactidão das informações que me consta estar tomando o Doutor Juiz de Direito
desta Comarca acerca desse deploravel acontecido, toda via sendo ellas dadas,
segundo me consta pelo proprio José Ignacio e pellas autoridades culpozas
jamais poderão attingir ao fim desejado, isto é, a punição dos verdadeiros
criminozos. = É sob’ maneira frívolo o pretesto de que se valem os autores
desse crime, isto é, de que esta força ia em procura de designados ou tomar
armas dos indios, por quanto nenhum designado ali havia que fosse conhecido, e
quanto as armas [esse] infelizes as tinhão é verdade mas somente armas finas
próprias de caçar de que fazem esses infelizes profissão e parte de sua
alimentação. = Não se diga tambem
(fl. 03)
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Que
o Director dos mesmos não cumpria com o seo dever acerca da catequisação e civelisação
desses indios, por quanto é muito sabido a ascendencia, zelo e interesse que
tem para com os mesmos e ninguém ainda reclamou pela falta de policia dos
mesmos que se tenha em portado com boa conduta e apllicado a seos trabalhos de
agricultura. Digne-se pois V.Ex.a de aceitar ao menos como
subsidiaria estas minhas informações que só tem por fim o descobrimento da
verdade desse facto criminoso e que em abono da justiça deseja vel-os punidos.
Aguardo pois a tal respeito as ordens de V.Ex.a = Deos Guarde a
V.Ex.a = Ill.mo Ex.mo Senr̃ D.or
Sebastião Gonsalves da S.a M. D. Vice Presidente da Provincia. O
Juiz Municipal - Antonio Lopes da Silva Barros =
(fl. 03v)
IMAGEM 07
Copia
Juizo
de Direito da Comarca do Jardim 18 de Julho de 1867. = Ill.mo Seńr.
= Constando-me que por esse juizo Municipal se vai tomar conhecimento dos
deploráveis acontecimentos que se deram em Cachorra-morta deste Termo no dia 28
de Abril deste anno; tenho por conveniente remeter-lhe incluzas para seo
conhecimento e governo copias do officio do Ex.mo Vice Presidente
desta Provincia, dirigido ao Doutor Chefe de Polícia; e o deste a mim tambem
dirigido, relativos a esses mesmos acontecimentos, devendo previnil-o que ja
tenho procedido, e continuo a proceder a sindicancia recommendada = Deos Guarde
a V.S.a Ill.mo S.r Dr Antonio Lopes da Silva
Barros = Juiz Municipal do Termo do Jardim e Milagres = O Juiz de Direito
Americo Militão de Freitas Guim.es Conforme O Escrivão do Crime e
Civel. Deonizio Eleitherio Bezerra de Menezes.
(fl. 04)
Não conheço esta serra em Milagres, certamente deve ser conhecida hoje por outro nome, vou investigar para explorá-la em meu projeto de mapeamento arqueológico, espero que esteja associada aos sítios cerâmicos. Conteúdo riquíssimo esse!
ResponderExcluirNão ficaria em Mauriti? Veja a referência que o documento faz ao distrito de Coité.
ExcluirPode ser que sim. A serra brava é limítrofe dos municípios. Apresenta parte de Milagres e parte de Mauriti
ExcluirO termo de Milagres no século xix era mais amplo que o atual município. Assim a Serra ou sítio Cachorra Morta pode ficar em algum município vizinho também. Existe uma documentação mais ampla sobre esses indígenas já estudada por diversos antropólogos e historiadores. Inclusive, há um documento de 1877, do delegado de Floresta, em Pernambuco informando do retorno de um grupo desses indígenas ao aldeamento do Olho D'água da Gameleira, atualmente Terra Indígena Atikum, na Serra Umã, município de Carnaubeira da Penha.
ResponderExcluirJose Inácio da Silva ...pode fazer referência a cidade de Barros..
ResponderExcluirUm documento digno de respeito. A história do Brasil resume-se a muito. Caro amigo Heitor Feitosa você nos dá sabedoria cada dia e cada vez que posta matérias espetaculares
ResponderExcluirA Serra da cachorra Morte fica em Mauriti, onde hoje é o distrito de Anauá. pode se confirmar no site:https://www.familiascearenses.com.br/2-uncategorised/136-memoria-real-e-afetiva-de-mauriti-terceira-e-ultima-parte
ResponderExcluirSerra da cachorra morta localiza-se no município de Mauriti-ce, no distrito de Anauá.
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