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quarta-feira, 1 de junho de 2016

ARMADURAS SERTANEJAS DE COURO

ARMADURAS SERTANEJAS DE COURO

                                                               Heitor Feitosa Macêdo

Sob um viés econômico, pode-se dizer que a invasão branca do interior do território brasileiro se deu por força de três atividades básicas, batizadas pelos nomes de ciclos econômicos (da cana-de-açúcar, do ouro e do gado). Porém, foi o criatório do gado que mais contribuiu para a ocupação portuguesa do interior continental, antigamente conhecido pelo nome genérico de sertão.
Vaqueiro dos
                  Inhamuns/CE.
A cultura desenvolvida em torno da atividade da pecuária extensiva ditou costumes que ainda podem ser vistos no sertão pré-globalizado, a exemplo das vestimentas de couro utilizadas pelos vaqueiros, coisa que não surgiu de modismos ou frivolidades estéticas, mas da necessidade de adaptação ao meio ambiente.
As couraças usadas pelos vaqueiros possuem uma finalidade principal, qual seja, proteger seus usuários dos danos causados pelos obstáculos que se apresentam nos campos de pastoreio, em especial, a vegetação espinhenta, pois, durante o ato de rastrear (rastejar) e perseguir os animais dispersos pelos pastos, caules, galhos e espinhos podem matar, cegar ou ferir gravemente.
Como é sabido, até o início do século XX, os campos de pastoreio se encontravam desimpedidos pelas cercas, permitindo que as manadas migrassem por grandes distâncias, alimentando-se no chamado fundo de pastos. Dessa maneira, ao vaqueiro da fazenda e aos seus camaradas cabia a tarefa de reunir o gado, principalmente na época da ferra, quando a marca do dono era gravada com um ferrete em brasa na epiderme dos animais, símbolo que atestava a propriedade de um indivíduo, o fazendeiro, sobre os referidos semoventes.
         Com essa incumbência, o vaqueiro, no cimo do pequeno e veloz cavalo sertanejo (conhecido por pé-duro ou pangaré), adentrava a mata para arrebanhar o gado, em perseguições titânicas, envelopados em couro animal (de caprinos, bovinos ou de veados), à feição de armaduras vermelhas, vulgarmente chamadas de gibões ou véstias. Mas os designers dessas vestimentas protetoras variavam, a depender do sertão, ou melhor, do ambiente.
         Entretanto, não bastava serem as roupas dos vaqueiros feitas de couro; também exigiam elas proporções e desenhos diferentes, capazes de atenderem às necessidades impostas pelos diferentes tipos de vegetação. Assim, por exemplo, o gibão usado no sertão dos Cariris Novos (Cariri cearense) não é o mesmo utilizado no sertão cearense dos Inhamuns. No primeiro, em razão da densidade da flora (Mata Atlântica, Cerradão e Cerrado), o chapéu tem de ser confeccionado com a aba mais curta, geralmente de três dedos, pois, durante a correria no interior das matas, tal objeto tende a ser comprimido contra o rosto do vaqueiro, mas, pelo seu pequeno diâmetro, a visão não fica prejudicada. Já o chapéu do vaqueiro inhamunsense tem a aba mais longa, em regra, com quatro ou cinco dedos de comprimento, isto em decorrência de ser a cobertura vegetal menos densa (caatinga), e, por isso, geralmente, não chega a encobrir os seus olhos. Outro motivo para a variação do tamanho das abas do chapéu do vaqueiro remete ao índice pluviométrico e à incidência de luz solar em determinados lugares, pois as abas maiores protegem os olhos do excesso de luminosidade, porém, em regiões chuvosas, estas abas, quando molhadas, tendem a desabar sobre a fronte do vaqueiro. 
         Igualmente, mesmo em sertões vizinhos, as calças utilizadas pelos vaqueiros também não são as mesmas, havendo alguns diferentes tipos: a puxe, a roladeira, a perneira e a guarda. Fato que também se deve ao tipo de cobertura vegetal de cada área.
        
Vaqueiro do Cariri, CE.
Fonte (Blog Caririhistória)
No sertão dos Inhamuns, pela grande incidência de plantas com espinhos, sobremodo a favela, o vaqueiro deve estar mais bem protegido, fazendo, por isso, opção pela calça puxe, cujo fundilho é fechado, pois, quando o vaqueiro corre no meio da mata, seu corpo se projeta horizontalmente sobre a dianteira da montaria, ficando, neste instante, fora do assento da sela. Então, ao sentar-se novamente em posição vertical, corre o risco de haver as espinhentas e doridas folhas na superfície da gineta. Já no sertão dos Cariris Novos, a calça preferida é a roladeira, cujo fundilho é aberto, isto pelo fato de não existirem tantas plantas de espinho, principalmente a favela, como há em outras regiões adjacentes.
         Por último, a respeito das outras duas calças, perneiras e guardas, utilizadas no sertão do Seridó (entre os estados do Rio Grande do Norte e Paraíba), leciona Lamartine de Faria que as perneiras são bem justas, terminando em bicos que protegem o dorso do pé, atadas por correias que passam por baixo das alpercatas; já as perneiras, mais usadas no litoral-agreste, são menos apertadas e mais curtas, não se prolongando até o dorso do pé, etc.
         Como se percebe, a adaptação do homem interiorano ao meio constitui uma necessidade de sobrevivência, pena que o estudo da funcionalidade dessas couraças ainda seja tímido e que os compêndios escritos se ocupem, preponderantemente, da simples estética dessa arqueologia antropológica que representam tais armaduras epiteliais, outrora, ferramentas indispensáveis para a economia e para existência de um povo em grande parte do Brasil.


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