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sábado, 9 de janeiro de 2016

O PRIMEIRO JUIZ DO CEARÁ: JOSÉ MENDES MACHADO, O TUBARÃO

O PRIMEIRO JUIZ DO CEARÁ: JOSÉ MENDES MACHADO, O TUBARÃO    

                                                                                   Heitor Feitosa Macêdo                                                                                                
         No início do século XVIII, quando os longínquos sertões do Nordeste brasileiro ainda estavam sendo devassados pelos primeiros colonizadores, surgiu a necessidade de que o Estado português interviesse nessas localidades, para tanto, enviando magistrados ao Brasil, e, entre eles, o bacharel José Mendes Machado, que foi empossado na Capitania do Ceará Grande como ouvidor-geral, o que equivalia ao cargo de juiz-Estado, sendo esta função exercida em um espaço imenso, em uma única comarca, a do Ceará.
Universidade de Coimbra/Portugal, frequentada pelo bacharel José Mendes Machado (O Tubarão).
       Quando a civilização do interior nordestino ainda engatinhava, as relações humanas não eram as melhores, pois a população destes rincões encontrava-se em verdadeira guerra, porque, quando os primeiros luso-brasileiros aí chegaram, os índios já estavam engalfinhados entre si, e, logicamente, também vieram a fazer grande resistência à ocupação dos invasores, o que é bem ilustrado pela chamada Guerra dos Bárbaros e Confederação dos Cariris.
         Não bastasse tanta desordem, à medida que os brancos conseguiam dominar os índios e ocupar efetivamente o solo, outros conflitos iam surgindo, desta vez entre os próprios colonizadores, motivados frequentemente pela posse de terra, pois para manter o domínio daqueles torrões não bastava o título de proprietário, com o documento chamado carta de data e sesmaria, também sendo fundamental a força de armas, ou melhor, o poder militar.
         Deve-se destacar que existia certa heterogeneidade entre os colonizadores, havendo discrepância de ordem econômica e social. Alguns eram homens pobres, andando junto às bandeiras apenas com a incumbência de conquistar terras para os magnatas residentes nas principais povoações da Colônia. Estes últimos eram os chamados sesmeiros, que, além de ricos, conheciam bastante o trâmite para a aquisição das sesmarias (a burocracia estatal), obrigando os mais desvalidos a pagarem foro pelo uso das terras. Nestes moldes, encontrava-se estabelecida uma classe poderosa de latifundiários, marcadamente, ricos e autoritários.
         Foi com este pano de fundo que José Mendes Machado encontrou o Ceará, tendo como tarefa a difícil missão de aplicar a lei.

DESRESPEITO AOS MAGISTRADOS
         Pouco antes da chegada de José Mendes Machado ao Ceará, magistrados de outras comarcas, às quais a Capitania do Ceará esteve atrelada, tiveram experiências muito desagradáveis.
         O desembargador Cristóvão Soares Reimão, o primeiro magistrado a adentrar o sertão do Ceará no exercício da função, foi vítima de desacatos na Ribeira do Jaguaribe, pois, tentando medir aquelas terras que haviam sido dadas em sesmaria, teve que enfrentar a petulância do capitão João da Fonseca Ferreira, o qual, acompanhado de homens armados, impediu a dita medição, propalando em alta voz que ninguém haveria de roubar as suas terras.
         Este desembargador também testemunhou outros atos de desrespeito às autoridades judiciárias, como no dia em que, acompanhado de um colega, o Desembargador Manuel Velho de Miranda, presenciou contra este a fúria de um dos potentados do sertão, José de Barros, que, iracundo, o pegou pelo braço direito e o chamou de velhaco, magano, patife, filho da puta e outros nomes injuriosos.
          Tais eventos foram apenas uma pequena parcela das inúmeras infrações que ocorriam comumente naquelas paragens, o que motivou as recomendações feitas por Cristóvão Soares Reimão para que na Ribeira do Jaguaribe (termo da Capitania do Ceará) fossem feitas correições a cada três anos.
         Mesmo agindo com tanto zelo e fidelidade à justiça, Cristóvão Soares Reimão findou sendo taxado de magistrado de má nota e prevaricador, ganhando o desdenhoso apelido de Cotia.
         Por esses e outros fatos, geralmente deturpados, os ouvidores caíram nas garras dos historiadores que se encarregaram de pintar vil imagem destas autoridades, como o fez João Brígido ao dizer que: Os ouvidores eram, de ordinário, ladrões desapiedados, que vinham de Portugal fazer fortuna.

CONFLITO ENTRE OS CAPITÃES-MORES E OS OUVIDORES-GERAIS
         Porém, os inimigos dos magistrados não se resumiam aos sesmeiros e historiadores, destacando-se entre os seus antagonistas, principalmente, os capitães-mores, numa disputa quase incessante, e, com frequência, motivada por usurpação de função.
         Nas capitanias subalternas, como era a do Ceará, onde não havia governador-geral, as duas maiores autoridades eram, em primeiro lugar, o capitão-mor da capitania, equivalente ao governador, encarregado da administração, da defesa militar e da responsabilidade de doar terras; e, logo abaixo, ficava o ouvidor-geral, ou seja, o juiz, responsável por administrar a justiça e resolver questões envolvendo terras, como a sua medição.
         A primeira autoridade estava subordinada ao governador-geral, enquanto a segunda estava atrelada ao mais importante órgão judiciário da Colônia, o Tribunal da Relação, na Bahia. Acrescente-se que, neste período, esses indivíduos eram nomeados para ocupar os respectivos cargos por apenas três anos, e, enquanto o capitão-mor residia em Fortaleza, o ouvidor José Mendes Machado tinha sua morada na Vila de Aquiraz, onde havia mandado erguer uma casa coberta com telha.
Casa em Aquiraz/CE, na qual, supostamente, residiu o ouvidor-geral José Mendes Machado.       
          Os conflitos entre as duas autoridades eram comuns em quase todas as capitanias brasileiras, e, no Ceará, perduraram por décadas, inaugurando estes entreveros o ouvidor José Mendes Machado e o capitão-mor Manuel Francês, daí delongando-se até a época do último ouvidor-geral do Ceará, João Antonio Rodrigues de Carvalho, e do capitão-mor Manuel Ignácio de Sampaio e Pina Freire.

ORIGEM DO OUVIDOR-GERAL JOSÉ MENDES MACHADO
         Manuscritos inéditos revelam que José Mendes Machado era português nascido na Vila de Abrantes, Comarca de Tomar, filho de Estevão Machado Paio e de Maria Mendes, tendo como avós paternos Antonio Machado Paio e Maria Mendes (todos naturais da Vila de Abrantes); enquanto, pela linha materna, tinha como avós Simão Vaz Mendes e Ana Mendes, ambos do Lugar da Vela, termo da Cidade da Guarda.
         A descrição genealógica de José Mendes Machado fora feita com o propósito de se averiguar a sua linhagem de sangue, requisito essencial para aqueles que pretendiam ocupar cargos públicos. Assim, reza o velho documento que os seus ascendentes eram cristãos-velhos, e de limpo sangue, sem raça de cristão-novo, mouro, mulato ou outra infecta nação
         Além disso, destaca-se a notícia de ser José Mendes Machado bom estudante, sendo bacharel em direito pela antiquíssima Faculdade de Cânones, hoje, Universidade de Coimbra, em Portugal.
Dados manuscritos sobre José Mendes Machado, datados do século XVIII.
A CRIAÇÃO/INAUGURAÇÃO DA OUVIDORIA DO CEARÁ
         Muitas recomendações já haviam sido feitas no sentido de que fossem enviados magistrados ao Ceará para tratar dos inúmeros crimes que ali ocorriam, porém, a independência jurisdicional desta capitania só veio a ocorrer em 1723, quando passou a ter ouvidoria própria.
         Assim, com a criação da Ouvidoria do Ceará, José Mendes Machado foi nomeado para ocupá-la, o que veio a ocorrer no mesmo ano. Contudo, nesta época, a Provedoria do Ceará também havia adquirido independência, separando-se da do Rio Grande do Norte, remetendo a José Mendes Machado mais este encargo, o qual passou a cumular as funções de ouvidor-geral e provedor da Fazenda.
         O magistrado empossado no Ceará tinha que exercer, além da função de juiz-Estado, aplicando a lei, a obrigação de recolher os tributos devidos à Coroa portuguesa. E, logo que assumiu o cargo, cuidou em cumprir com seu dever, rumando para os distantes sertões do Ceará.
         Apesar da pompa, os ouvidores eram mal remunerados, vendo-se obrigados a sobreviver com um mísero salário, no caso de José Mendes Machado, 300 mil réis por ano, somado a 100 mil réis de aposentadoria das casas e à ajuda de custo, com cujo valor ainda não ficava satisfeito o dito Ouvidor.
    
A GUERRA DE 1724: LEVANTE DA RIBEIRA DO JAGUARIBE
         No cumprimento do dever, o ouvidor-geral iniciou as correições, a começar pela Ribeira do Acaraú, apurando os fatos criminosos e praticando os atos típicos de um juiz; contudo, isto criou grande insatisfação entre as elites do Ceará, pois muitos dos seus membros estavam sendo indigitados por diversos crimes, principalmente assassinatos e furtos de gado.
         No ano de 1724, José Mendes Machado continuava com a comprida e penosa tarefa pelas ribeiras, encontrando-se por derradeiro nos Cariris Novos, na Fazenda Caiçara, em Missão Velha/CE
         Neste período, o ouvidor já havia feito muitos inimigos, entre eles, poderosas famílias latifundiárias como os Montes e os Mendes Lobato, ficando ao lado destas outras importantes famílias, além de figurões como Domingos Ribeiro de Carvalho, o capitão-mor Manuel Francês, Zacarias Vital Pereira, Valentim Calado Rego e a Câmara de Aquiraz, bem como os índios do litoral, que foram coagidos a aderir à causa.
         Talvez, por esse motivo, José Mendes Machado tenha feito aliança com os opositores de seus inimigos, os Feitosa e o capitão João da Fonseca Ferreira com os índios Jenipapos (sendo este capitão o mesmo que havia afrontado anteriormente o desembargador Cristóvão Soares Reimão). O Ceará era um verdadeiro barril de pólvora e a chegada do ouvidor-geral foi apenas o estopim!
         Desta feita, os inimigos de José Mendes Machado queriam pôr fim aos processos judiciais e, para alcançar tal objetivo, pretendiam prender o ouvidor e rasgar os papéis, apesar de José Mendes Machado alegar que as intenções iam além, sob o argumento que os amotinados desejavam, na verdade, a sua morte.
         Reza a tradição que os Montes ridicularizavam o ouvidor apelidando-o de Tubarão, além de o indagarem sobre enigmas pueris, como o seguinte: qual ave que dá leite quando cria, ameaçando castigá-lo com palmatoadas caso não acertasse.
         O certo é que os Montes e os Mendes Lobato haviam organizado a chamada Tropa do Povo, recrutando gente de toda casta, encontrando apoio do capitão-mor Manuel Francês, que colaborou com a entrega dos índios aldeados no litoral para a composição desta milícia, formada, aproximadamente, por 300 ou 400 homens armados.
         Este movimento elitista, com fumaças de revolta coletiva, marchou em direção aos Cariris Novos em busca do ouvidor-geral, indo esbarrar na dita fazenda Caiçara, onde, depois de sofrível diálogo, ocorrera o maior e mais violento combate desta rebelião, com vários mortos de parte a parte, fazendo com que a Tropa do Povo batesse em retirada.
         Contudo, nos dias seguintes a referida tropa se restabeleceu e se subdividiu, marchando em perseguição ao ouvidor e seus aliados, escarafunchando aqueles sertões em busca de seus antagonistas, promovendo batalhas aqui e acolá, até que José Mendes Machado resolveu evadir-se para o Piauí, donde rumou para a Bahia, com esperança de obter apoio perante os desembargadores do Tribunal da Relação.
         Não obtendo ajuda daqueles magistrados, o ouvidor seguiu para a Capitania de Pernambuco, de onde planejava voltar ao Ceará para reassumir o seu posto. No entanto, ao comunicar isto ao capitão-mor de Pernambuco, terminou sendo preso e, posteriormente, remetido a Portugal.
         Por muitos anos José Mendes Machado fez requerimentos à Coroa para que lhe fossem pagos os seus serviços, argumentando que a sublevação consumira o seu patrimônio, e somente depois de muita demora o governo veio a realizar tal pagamento, em açúcar. Ademais, sabe-se que este magistrado em 1745 já havia falecido.

O INJUSTO ESTIGMA DO OUVIDOR-GERAL JOSÉ MENDES MACHADO
         Na historiografia cearense, os magistrados não gozam de boa fama, sendo apontados como desonestos e causadores de desordem social, promanando disto o antigo adágio: Justiça do Ceará te persiga, fato que, no entanto, constitui apenas meia verdade.
         Merece ser ressaltado que o desembargador Cristóvão Soares Reimão foi por bastante tempo execrado, sofrendo severas críticas pelas acusações que lhe imputavam os historiadores. Todavia, Antonio Bezerra encontrou documentos suficientes para expurgar a imagem deste magistrado. Fato semelhante ao que, no presente, ocorre com o ouvidor José Mendes Machado. 
         Atualmente, mantém-se a ideia de que José Mendes Machado era corrupto, venal, desonesto, imprudente, prevaricador, amotinador, ambicioso e culpado pela guerra de 1724. Porém, isto não passa de uma interpretação equivocada de fontes tendenciosas.
         Até hoje, as fontes mais conhecidas tendem a culpabilizar o referido ouvidor, desde a tradição oral aos documentos manuscritos; entretanto, isto está prestes a cair por terra, pois as sentenças do tribunal da história não transitam em julgado, podendo a qualquer tempo ser modificadas, principalmente com a aparição de novas provas.
Carta de José Mendes Machado.
         Por um longo período, os inúmeros documentos encontrados pelos estudiosos indicavam a má conduta do magistrado, apontando-o como responsável pelas perturbações ocorridas em 1724, como se a rejeição por parte do povo tivesse surgido espontaneamente, oriunda da vontade coletiva dos moradores da Capitania do Ceará.
         Sobre tais fontes, deve ser ressaltado que a maioria provém da Câmara de Aquiraz e do punho do capitão-mor Manoel Francês, inimigos capitais do ouvidor-geral, o que é comprovado ao se analisarem os 66 documentos publicados pelo Barão de Studart no ano de 1896. Não havendo, entre estes, um que diga a versão dos fatos com as palavras de José Mendes Machado. Algo, no mínimo, estranho!

         Para continuar lendo, ver o livro: SERTÕES DO NORDESTE I, INHAMUNS E CARIRIS NOVOS
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Um comentário:

  1. olá,

    bom dia amigo, me chamo marcelo ribeiro e agora sou mais um dos seus seguidores ok!! mas gostaria de fazer uma pergunta ao amigo: ví que você já abordou assunto sobre a familia vieira, poderia me dizer se Francisco Fernandes Vieira,barão e visconde do Icó. teve entre os 13 filhos, um ou uma por nome Jacy vieira?

    o qual foi sepultado(a) no cemitério são joão batista?

    e se não,nada haver ou talvez, o amigo poderia me iluminar onde encontro historicamente a origem de jacy vieira? abraços e parabéns pelo excelente trabalho!!

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