O
PRIMEIRO JUIZ DO CEARÁ: JOSÉ MENDES MACHADO, O TUBARÃO
Heitor Feitosa Macêdo
No início do século XVIII, quando os longínquos sertões do Nordeste
brasileiro ainda estavam sendo devassados pelos primeiros colonizadores, surgiu
a necessidade de que o Estado português interviesse nessas localidades, para
tanto, enviando magistrados ao Brasil, e, entre eles, o bacharel José Mendes
Machado, que foi empossado na Capitania do Ceará Grande como ouvidor-geral, o
que equivalia ao cargo de juiz-Estado, sendo esta função exercida em um espaço
imenso, em uma única comarca, a do Ceará.
Universidade de Coimbra/Portugal, frequentada pelo bacharel José Mendes Machado (O Tubarão). |
Quando a civilização do interior nordestino ainda engatinhava,
as relações humanas não eram as melhores, pois a população destes rincões
encontrava-se em verdadeira guerra, porque, quando os primeiros
luso-brasileiros aí chegaram, os índios já estavam engalfinhados entre si, e,
logicamente, também vieram a fazer grande resistência à ocupação dos invasores,
o que é bem ilustrado pela chamada Guerra dos Bárbaros e Confederação dos
Cariris.
Não bastasse tanta desordem, à medida que os brancos
conseguiam dominar os índios e ocupar efetivamente o solo, outros conflitos iam
surgindo, desta vez entre os próprios colonizadores, motivados frequentemente
pela posse de terra, pois para manter o domínio daqueles torrões não bastava o
título de proprietário, com o documento chamado carta de data e sesmaria, também sendo fundamental a força de armas, ou melhor, o poder
militar.
Deve-se destacar que existia certa heterogeneidade entre os
colonizadores, havendo discrepância de ordem econômica e social. Alguns eram
homens pobres, andando junto às bandeiras apenas com a incumbência de
conquistar terras para os magnatas residentes nas principais povoações da Colônia.
Estes últimos eram os chamados sesmeiros, que, além de ricos, conheciam
bastante o trâmite para a aquisição das sesmarias (a burocracia estatal),
obrigando os mais desvalidos a pagarem foro pelo uso das terras. Nestes moldes,
encontrava-se estabelecida uma classe poderosa de latifundiários, marcadamente,
ricos e autoritários.
Foi com este pano de fundo que José Mendes Machado encontrou
o Ceará, tendo como tarefa a difícil missão de aplicar a lei.
DESRESPEITO
AOS MAGISTRADOS
Pouco antes da chegada de José Mendes Machado ao Ceará,
magistrados de outras comarcas, às quais a Capitania do Ceará esteve atrelada,
tiveram experiências muito desagradáveis.
O desembargador Cristóvão Soares Reimão, o primeiro
magistrado a adentrar o sertão do Ceará no exercício da função, foi vítima de
desacatos na Ribeira do Jaguaribe, pois, tentando medir aquelas terras que haviam
sido dadas em sesmaria, teve que enfrentar a petulância do capitão João da
Fonseca Ferreira, o qual, acompanhado de homens armados, impediu a dita
medição, propalando em alta voz que ninguém haveria de roubar as suas terras.
Este desembargador também testemunhou outros atos de
desrespeito às autoridades judiciárias, como no dia em que, acompanhado de um
colega, o Desembargador Manuel Velho de Miranda, presenciou contra este a fúria
de um dos potentados do sertão, José de Barros, que, iracundo, o pegou pelo
braço direito e o chamou de velhaco,
magano, patife, filho da puta e outros nomes injuriosos.
Tais eventos foram
apenas uma pequena parcela das inúmeras infrações que ocorriam comumente
naquelas paragens, o que motivou as recomendações feitas por Cristóvão Soares
Reimão para que na Ribeira do Jaguaribe (termo da Capitania do Ceará) fossem
feitas correições a cada três anos.
Mesmo agindo com tanto zelo e fidelidade à justiça,
Cristóvão Soares Reimão findou sendo taxado de magistrado de má nota e prevaricador, ganhando o desdenhoso apelido
de Cotia.
Por esses e outros fatos, geralmente deturpados, os
ouvidores caíram nas garras dos historiadores que se encarregaram de pintar vil
imagem destas autoridades, como o fez João Brígido ao dizer que: Os ouvidores eram, de ordinário, ladrões
desapiedados, que vinham de Portugal fazer fortuna.
CONFLITO
ENTRE OS CAPITÃES-MORES E OS OUVIDORES-GERAIS
Porém, os inimigos dos magistrados não se resumiam aos
sesmeiros e historiadores, destacando-se entre os seus antagonistas,
principalmente, os capitães-mores, numa disputa quase incessante, e, com
frequência, motivada por usurpação de função.
Nas capitanias subalternas, como era a do Ceará, onde não
havia governador-geral, as duas maiores autoridades eram, em primeiro lugar, o
capitão-mor da capitania, equivalente ao governador, encarregado da
administração, da defesa militar e da responsabilidade de doar terras; e, logo
abaixo, ficava o ouvidor-geral, ou seja, o juiz, responsável por administrar a
justiça e resolver questões envolvendo terras, como a sua medição.
A primeira autoridade estava subordinada ao
governador-geral, enquanto a segunda estava atrelada ao mais importante órgão
judiciário da Colônia, o Tribunal da Relação, na Bahia. Acrescente-se que,
neste período, esses indivíduos eram nomeados para ocupar os respectivos cargos
por apenas três anos, e, enquanto o capitão-mor residia em Fortaleza, o ouvidor
José Mendes Machado tinha sua morada na Vila de Aquiraz, onde havia mandado
erguer uma casa coberta com telha.
Casa em Aquiraz/CE, na qual, supostamente, residiu o ouvidor-geral José Mendes Machado. |
Os conflitos entre as duas autoridades eram comuns em quase
todas as capitanias brasileiras, e, no Ceará, perduraram por décadas,
inaugurando estes entreveros o ouvidor José Mendes Machado e o capitão-mor
Manuel Francês, daí delongando-se até a época do último ouvidor-geral do Ceará,
João Antonio Rodrigues de Carvalho, e do capitão-mor Manuel Ignácio de Sampaio
e Pina Freire.
ORIGEM
DO OUVIDOR-GERAL JOSÉ MENDES MACHADO
Manuscritos inéditos revelam que José Mendes Machado era
português nascido na Vila de Abrantes, Comarca de Tomar, filho de Estevão
Machado Paio e de Maria Mendes, tendo como avós paternos Antonio Machado Paio e
Maria Mendes (todos naturais da Vila de Abrantes); enquanto, pela linha
materna, tinha como avós Simão Vaz Mendes e Ana Mendes, ambos do Lugar da Vela, termo da Cidade da Guarda.
A descrição genealógica de José Mendes Machado fora feita
com o propósito de se averiguar a sua linhagem de sangue, requisito essencial
para aqueles que pretendiam ocupar cargos públicos. Assim, reza o velho
documento que os seus ascendentes eram cristãos-velhos,
e de limpo sangue, sem raça de cristão-novo, mouro, mulato ou outra infecta
nação.
Além disso, destaca-se a notícia de ser José Mendes Machado
bom estudante, sendo bacharel em direito pela antiquíssima Faculdade de
Cânones, hoje, Universidade de Coimbra, em Portugal.
Dados manuscritos sobre José Mendes Machado, datados do século XVIII. |
A
CRIAÇÃO/INAUGURAÇÃO DA OUVIDORIA DO CEARÁ
Muitas recomendações já haviam sido feitas no sentido de que
fossem enviados magistrados ao Ceará para tratar dos inúmeros crimes que ali
ocorriam, porém, a independência jurisdicional desta capitania só veio
a ocorrer em 1723, quando passou a ter ouvidoria própria.
Assim, com a criação da Ouvidoria do Ceará, José Mendes
Machado foi nomeado para ocupá-la, o que veio a ocorrer no mesmo ano. Contudo,
nesta época, a Provedoria do Ceará também havia adquirido independência,
separando-se da do Rio Grande do Norte, remetendo a José Mendes Machado mais
este encargo, o qual passou a cumular as funções de ouvidor-geral e provedor da
Fazenda.
O magistrado empossado no Ceará tinha que exercer, além da
função de juiz-Estado, aplicando a lei, a obrigação de recolher os tributos
devidos à Coroa portuguesa. E, logo que assumiu o cargo, cuidou em cumprir com
seu dever, rumando para os distantes sertões do Ceará.
Apesar da pompa, os ouvidores eram mal remunerados, vendo-se
obrigados a sobreviver com um mísero salário, no caso de José Mendes Machado,
300 mil réis por ano, somado a 100 mil réis de aposentadoria das casas e à ajuda de custo, com cujo valor ainda
não ficava satisfeito o dito Ouvidor.
A
GUERRA DE 1724: LEVANTE DA RIBEIRA DO JAGUARIBE
No cumprimento do dever, o ouvidor-geral iniciou as
correições, a começar pela Ribeira do Acaraú, apurando os fatos criminosos e
praticando os atos típicos de um juiz; contudo, isto criou grande insatisfação
entre as elites do Ceará, pois muitos dos seus membros estavam sendo
indigitados por diversos crimes, principalmente assassinatos e furtos de gado.
No ano de 1724, José Mendes Machado continuava com a
comprida e penosa tarefa pelas ribeiras, encontrando-se por derradeiro nos
Cariris Novos, na Fazenda Caiçara, em Missão Velha/CE
Neste período, o ouvidor já havia feito muitos inimigos,
entre eles, poderosas famílias latifundiárias como os Montes e os Mendes
Lobato, ficando ao lado destas outras importantes famílias, além de figurões
como Domingos Ribeiro de Carvalho, o capitão-mor Manuel Francês, Zacarias Vital
Pereira, Valentim Calado Rego e a Câmara de Aquiraz, bem como os índios do
litoral, que foram coagidos a aderir à causa.
Talvez, por esse motivo, José Mendes Machado tenha feito
aliança com os opositores de seus inimigos, os Feitosa e o capitão João da
Fonseca Ferreira com os índios Jenipapos (sendo este capitão o mesmo que havia
afrontado anteriormente o desembargador Cristóvão Soares Reimão). O Ceará era
um verdadeiro barril de pólvora e a chegada do ouvidor-geral foi apenas o
estopim!
Desta feita, os inimigos de José Mendes Machado queriam pôr
fim aos processos judiciais e, para alcançar tal objetivo, pretendiam prender o
ouvidor e rasgar os papéis, apesar de José Mendes Machado alegar que as
intenções iam além, sob o argumento que os amotinados desejavam, na verdade, a
sua morte.
Reza a tradição que os Montes ridicularizavam o ouvidor
apelidando-o de Tubarão, além de o indagarem
sobre enigmas pueris, como o seguinte: qual
ave que dá leite quando cria, ameaçando castigá-lo com palmatoadas caso não
acertasse.
O certo é que os Montes e os Mendes Lobato haviam organizado
a chamada Tropa do Povo, recrutando
gente de toda casta, encontrando apoio do capitão-mor Manuel Francês, que
colaborou com a entrega dos índios aldeados no litoral para a composição desta
milícia, formada, aproximadamente, por 300 ou 400 homens armados.
Este movimento elitista, com fumaças de revolta coletiva,
marchou em direção aos Cariris Novos em busca do ouvidor-geral, indo esbarrar
na dita fazenda Caiçara, onde, depois de sofrível diálogo, ocorrera o maior e
mais violento combate desta rebelião, com vários mortos de parte a parte,
fazendo com que a Tropa do Povo
batesse em retirada.
Contudo, nos dias seguintes a referida tropa se restabeleceu
e se subdividiu, marchando em perseguição ao ouvidor e seus aliados,
escarafunchando aqueles sertões em busca de seus antagonistas, promovendo
batalhas aqui e acolá, até que José Mendes Machado resolveu evadir-se para o
Piauí, donde rumou para a Bahia, com esperança de obter apoio perante os desembargadores
do Tribunal da Relação.
Não obtendo ajuda daqueles magistrados, o ouvidor seguiu
para a Capitania de Pernambuco, de onde planejava voltar ao Ceará para
reassumir o seu posto. No entanto, ao comunicar isto ao capitão-mor de
Pernambuco, terminou sendo preso e, posteriormente, remetido a Portugal.
Por muitos anos José Mendes Machado fez requerimentos à
Coroa para que lhe fossem pagos os seus serviços, argumentando que a sublevação
consumira o seu patrimônio, e somente depois de muita demora o governo veio a
realizar tal pagamento, em açúcar. Ademais, sabe-se que este magistrado em 1745
já havia falecido.
O
INJUSTO ESTIGMA DO OUVIDOR-GERAL JOSÉ MENDES MACHADO
Na historiografia cearense, os magistrados não gozam de boa
fama, sendo apontados como desonestos e causadores de desordem social,
promanando disto o antigo adágio: Justiça
do Ceará te persiga, fato que, no entanto, constitui apenas meia verdade.
Merece ser ressaltado que o desembargador Cristóvão Soares
Reimão foi por bastante tempo execrado, sofrendo severas críticas pelas
acusações que lhe imputavam os historiadores. Todavia, Antonio Bezerra
encontrou documentos suficientes para expurgar a imagem deste magistrado. Fato
semelhante ao que, no presente, ocorre com o ouvidor José Mendes Machado.
Atualmente, mantém-se a ideia de que José Mendes Machado era
corrupto, venal, desonesto, imprudente, prevaricador, amotinador, ambicioso e
culpado pela guerra de 1724. Porém, isto não passa de uma interpretação
equivocada de fontes tendenciosas.
Até hoje, as fontes mais conhecidas tendem a culpabilizar o
referido ouvidor, desde a tradição oral aos documentos manuscritos; entretanto,
isto está prestes a cair por terra, pois as sentenças do tribunal da história não transitam em julgado, podendo a qualquer
tempo ser modificadas, principalmente com a aparição de novas provas.
Carta de José Mendes Machado. |
Por um longo período, os inúmeros documentos encontrados
pelos estudiosos indicavam a má conduta do magistrado, apontando-o como
responsável pelas perturbações ocorridas em 1724, como se a rejeição por parte
do povo tivesse surgido espontaneamente, oriunda da vontade coletiva dos
moradores da Capitania do Ceará.
Sobre tais fontes, deve ser ressaltado que a maioria provém
da Câmara de Aquiraz e do punho do capitão-mor Manoel Francês, inimigos
capitais do ouvidor-geral, o que é comprovado ao se analisarem os 66 documentos
publicados pelo Barão de Studart no ano de 1896. Não havendo, entre estes, um
que diga a versão dos fatos com as palavras de José Mendes Machado. Algo, no
mínimo, estranho!
Para continuar lendo, ver o livro: SERTÕES DO NORDESTE I,
INHAMUNS E CARIRIS NOVOS.
Para adquirir a obra, acessar: <http://estoriasehistoria-heitor.blogspot.com.br/2015/11/sertoes-do-nordeste-inhamuns-e-cariris.html> |