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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Memória da Rua da Gente

MEMÓRIA DA RUA DA GENTE
                                                                         
                                                                     Heitor Feitosa Macêdo

         Falar na malha urbana de uma cidade é inevitavelmente fazer menção as suas ruas, e, por conseguinte, aos seus nomes, tomados de coisas ou pessoas. No município do Crato/CE isto não é diferente, exceto pelo critério adotado por alguns homens públicos.
Antigo mapa da Vila do Crato, entre 1815 e 1824.
         Há alguns anos, uma pequenina rua, supedânea à chapada do Araripe, que vai esbarrar no Centro de Expansão, ao lado do Clube Recreativo Granjeiro, existe de fato, mas não de direito, por causa de não possuir um nome, o que tem causado prejuízo aos seus moradores, pois suas correspondências restam prejudicadas.
         Tentando sanar tal situação, pediu-se auxílio a um dos ilustres vereadores da referida urbe, no entanto, a resposta dada foi a de que a Câmara municipal andava bastante ocupada com a apuração de denúncias indigitadas aos membros deste cândido sodalício. Assim, como demanda o bom senso, parecia razoável esperar a poeira baixar, mas, infelizmente, estas questões não possuem prazo certo para acabar.
         Não mais podendo aguardar o fim do atual impasse que envolve a administração cratense, mais uma vez outro vereador foi procurado para por fim ao anonimato da dita rua, sendo a ele remetida a biografia de um português chamado José Pereira Aço, trisavô do padre Cícero Romão Batista e um dos primeiros colonizadores do Cariri, ancestral de várias famílias da região, como os Lima Verde, os Ferreira Lima, os Alencar Araripe, os Maia, os Norões, etc. Este material compunha-se de documentos inéditos e relatava a importância da forma como o território cratense havia sido ocupado, sob o pano de fundo dos primeiros conflitos agrários.
         Contrariando as expectativas, o referido edil refutou o nome do patrício citado, não por motivo ligado ao estranho sobrenome, Aço, ou por qualquer aspecto que desabonasse aquele filho de Barcelos, mas sim por calcar-se no fato de tal indivíduo ser muito antigo, por não ter nascido no Crato/CE bem como por não haver memória recente sobre ele entre os atuais moradores. Ora, de fato, o José Pereira Aço, por ser um dos primeiros habitantes do antigo território cratense, imigrado no início do século XVIII, realmente não poderia aí ter vagido em uma época tão remota, a não ser que, em vez de europeu, fosse ele um índio Cariri.
         Quanto à memória, este é o propósito a que se destinam os trabalhos escritos como as biografias, não podendo esquecer a relação que isto guarda com o batismo das ruas, afinal, as coisas e pessoas são relembradas sempre que um endereço é mencionado.
         Percebe-se que, inicialmente, até o século XIX, as ruas do Crato não eram batizadas com nomes de pessoas, a exemplo da Rua das Nove Laranjeiras (R. José Carvalho), Rua do Pisa (ou R. das Flores, e, hoje, R. D. Quintino), Rua Grande (trecho da Miguel Lima Verde), Rua do Fogo (R. Senador Pompeu), Rua da Missão Velha (R. Tristão Gonçalves ou R. da Vala), Rua da Pedra Lavrada (R. D. Pedro II), e outras. Porém, diferentemente dos tempos passados, segue a tendência de (re)nomear tais vias com alcunhas de pessoas, elegendo-se, teoricamente, os nomes dos indivíduos mais destacados, que contribuíram de alguma maneira para a coletividade, critério este que vem sendo impiedosamente vitimado pela amnésia pública.
         Esse esquecimento parece ser algo crônico, pelo menos por parte dos gestores, pois, no que tange aos primeiros povoadores, nenhum deles figura em nome de rua, quais sejam: Manoel Rodrigues Ariosa (oficialmente, o primeiro proprietário), Antonio Mendes Lobato (o segundo proprietário), Domingos Alves de Matos e sua esposa Maria Ferreira da Silva (doadores do atual território cratense). Nem mesmo o célebre fundador do primitivo núcleo da cidade do Crato, Frei Carlos Maria de Ferrara, italiano natural de Palermo, nomeia rua na cidade que ajudou a erguer.
         Entre os índios, tanto os tapuias com seus nomes originários (aborígenes) quanto os que foram batizados com alcunhas cristãs, não consta um sequer que tenha sido homenageado com o batismo das artérias urbanas cratenses, salvo a generalidade da Rua dos Cariris.
         A velha gente supracitada, na sua maioria, a exemplo do José Pereira Aço, não é mais estranha ao Crato, em termos de nascimento, do que outros que servem como denominação de suas ruas, pois dos noventa nomes arrolados por J. Lindenbergue de Aquino (em Roteiro Biográfico das Ruas do Crato, 1969), dezenas deles nasceram em longínquas paragens, como Duque de Caxias, Getúlio Vargas, Rui Barbosa, Santos Dumont e o Presidente Kennedy, que nem brasileiro era.
         Esta omissão do poder legislativo municipal não merece prevalecer, pois, não fossem os primeiros colonizadores, palmilhando sendas indígenas (abertas a golpe de facão e alargadas pelas patas bovinas), assentando fazendas e aldeias artificiais, nada da atual cidade existiria. Isto porque foi o heroísmo dessa gente, singrando mares, atravessando florestas, sobrevivendo às adustas caatingas e varando rios a nado, o que garantiu a conquista do nosso território.   
         Por ignorância ou por falta de compromisso de alguns homens públicos para com a memória da cidade do Crato, os heróis do povoamento sertanejo caem no esquecimento de sua própria gente, relegados à penumbra das passagens por eles criadas, sepultados aos pés das vias que outrora transitaram efêmeros e que agora, inertes, aguardam pacientemente os atuais edis, não só em termos materiais, mas também em ações que reconheçam publicamente o que hoje lhes têm sido negado, o direito de permanecer na memória dos cratenses.
         Finalmente, o critério utilizado por alguns administradores públicos para nomear ruas e homenagear seus moradores, segue, além da conveniência e oportunidade (conferidas pela lei), um subjetivismo incapaz de entender a origem e os verdadeiros valores de sua gente, sintoma de uma cegueira política, que faz dessa prática mero deleite pessoal, ou, quando muito, reles aprazimento para os seus eleitores.
         E ainda dizem que o povo brasileiro tem memória curta! 
      
(In Jornal Acontece, 2015)

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