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terça-feira, 13 de maio de 2014

ANTIGAS FAZENDAS - SERTÃO DOS INHAMUNS: A CASA DO UMBUZEIRO.

ANTIGAS FAZENDAS - SERTÃO DOS INHAMUNS: A CASA DO UMBUZEIRO.
                                                                                       
                                                                       
                                                                           Heitor Feitosa Macêdo

A chamada Casa do Umbuzeiro foi construída pelo padre José Bezerra do Vale, no sertão dos Inhamuns (Aiuaba/CE), por volta de 1721. E nesta habitação viveu o dito sacerdote amancebado com uma índia jucá, com quem deixou larga descendência.
         

Casa do Umbuzeiro entre o o final do séc. XIX e início do séc. XX (Arquivo do Barão de Studart, op. cit.).

       Aparentemente feia, esquálida e soturna, a Casa do Umbuzeiro vale mais do que sua pobre aparência, pois se trata de um testemunho vivo da história do Nordeste, uma icnografia arqueológica que sobreviveu às intempéries de três séculos para descrever o modus vivendi das primeiras comunidades que penetraram o sertão cearense.  
Durante o ciclo do gado, nos Inhamuns, as primeiras bandeiras devassaram o semiárido, dominando os campos com suas alimárias, ao passo que neles se fixaram debaixo de rústicas habitações, constituindo a casa do Umbuzeiro o mais antigo monumento, ainda em perfeito estado, desse período colonial.
         A ocupação do Sertão dos Inhamuns, ocorrida em meados do início do século XVIII, fora feita por gente vinda de várias partes do Nordeste, como a família Bezerra do Vale, pernambucanos que buscavam com a empresa curraleira expandir suas propriedades, dispersando seus gados e chantando suas casas.
         Sem dúvida, durante as primeiras incursões, palmilharam as longas sendas apenas na companhia de outras figuras masculinas, deixando seus filhos e mulheres resguardados em sua terra natal, à espera de alvíssaras.
        Dessa maneira, cortando léguas a pé ou a cavalo, seguiam por estreitos caminhos, rompendo o mato com a fria lâmina de suas catanas. Varando as selvas, tropeçavam em índios a torto e a direito, espichando couro de onças, decapitando serpentes, matando a sede com raízes, deitando-se com as “negras da terra”,[1] fortificados, a priori, em suas rústicas caiçaras.
Nessas estacadas de pau em roda, avançaram paulatinamente sobre o extenso território, lançando a semente bovina pelos campos, erguendo o curral bem ao lado de sua morada, que tomou formas mais sólidas, geralmente, em um traçado cúbico, constante de quatro faces, com esqueleto lenhoso, forjado em varas de sabiá e mourões de aroeira.
Durante a construção de suas vivendas, aos sopapos, entremeavam a argila com os mais diferentes materiais, assim, para dar liga ao barro amarelo, chamado de tauá[2], acrescentavam estrume, sangue de boi[3], óleo de baleia[4] e mel de rapadura,[5] produzindo sólidas e rubras paredes, da mesma cor de seus gibões.
A cobertura ficava a cargo dos artigos da pindoba, de preferência a carnaúba, que, com seu rijo caule, oferecia linhas para suster o telhado, feito com a folhagem da dita palmeira. Mas, conforme as posses de cada um, a cobertura poderia ser confeccionada com largas telhas canais, modeladas nas coxas dos escravos construtores e sobrepostas num engenhoso emaranhado de cedro e vergônteas de pereiro.
Não raramente, engendravam faustosa arquitetura, imitando as construções da Zona da Mata, levantando alvenarias com tijolos, outras vezes com pedra e cal, sobre as quais erguiam altas cumeeiras, em quatro águas, e, por fim, untavam suas espessas paredes com tabatinga misturada à goma de tapioca[6], substituindo a cal, produzindo luzidia brancura.
Ao abrigo dessa tosca engenharia viveram os ascendentes de toda a gente do país, que, somente com o passar do tempo, afastaram-se dessa generalidade, como as edificações na Zona da Mata (Nordeste) e Região Sudeste, que não economizaram no luxo de suas residências, impregnadas do estilo barroco.[7]
Em sede de arte arquitetônica, a manifestação barroca fora eleita como objeto preferencial de proteção legal, não só por sua beleza, mas por ligar-se às elites dominantes da política nacional[8]. Em contra partida, a maioria das antigas construções sertanejas permanece sem o devido resguardo por, atualmente, não gozar da merecida atenção.
Por tudo isso, existe premente necessidade em alçar esse conjunto arquitetônico ao patamar das demais edificações históricas amparadas pela lei, e reconhecer o valor dessas antigas habitações como integrante do patrimônio cultural de um povo que nele traz suas raízes e sua identidade.
Mas o que há de tão especial em uma casa como esta? E a resposta é simples, pois a sua construção possui quase trezentos anos, havendo em sua arquitetura um conjunto de elementos que aponta para uma antiga técnica de edificação utilizada em um determinado período da nossa história.
Argola encravada na coluna de madeira para armar rede.
Para construir a referida casa, o Padre José Bezerra do Vale trouxe artistas (nome pelo qual eram chamados os pedreiros) de Pernambuco, certamente, gente da Zona da Mata, de onde também provinha o dito padre, pois era ele natural de Tracunhaém.
Talvez, por isso, o traçado da casa apresente a mesma disposição geométrica das residências senhoreais da região açucareira de Pernambuco, possuindo a chamada “quatro águas”, ou seja, o seu telhado está disposto em quatro faces triangulares, diferentemente da maioria das outras residências do sertão, que só possuem duas águas.
As telhas são imensas, como a que existe no Museu de Tauá, na qual está gravada a data de 1721. Este telhado é sustido por um forte madeiramento, feito com árvores nobres, o cedro, entrelaçado de forma bem peculiar, ligado por grossos pregos artesanais, ao estilo colonial.
As paredes são um misto de tijolos e barro (massapê), tendo como colunas densos troncos de aroeiras, que circundam uma área de 147.62m2.[9] Em seu interior existia uma camarinha, isto é, um quarto sem janelas, destinado às filhas dos antigos senhores, o que evitava o rapto, bem como os olhares masculinos.  
Visão central do telhado da casa.
Sobre  as suas janelas, há informação de que até o início do século XX, abriam-se, circularmente, de baixo para cima, pois estavam ligadas por gonzos à porção superior do respectivo vestíbulo.
Sob o teto desta antiquíssima construção estiveram centenas de sertanejos, alguns muito ilustres, gente que carrega sobrenomes diretamente ligados ao velho solar, como os Arrais, os Andrade, os Góis, os Bezerra, a família Vale, a família Abath do Crato[10] e tantos outros. Há quem diga que o ex-presidente do Brasil Wenceslau Brás também esteja entre os descendentes do “pecaminoso” relacionamento do padre José Bezerra com a mencionada índia.
Segue o feio e antigo casarão varando os séculos, sóbrio, escornado no lombo de um alto rochedo, bem ao lado do Rio do Umbuzeiro, mirando a vastidão da caatinga, à espera de um reconhecimento mais respeitável e de um tratamento mais condigno em relação a sua história e a sua indiscutível representatividade arquitetônica.
 
Alto em que está erguida a Casa do Umbuzeiro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Alemão, Francisco Freire, Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão, Fundação Waldemar Alcântara, Fortaleza/CE, 2011.

Bezerra, Maria do Carmo de Lima, Notas sobre as Casas de Fazendas dos Inhamuns, Edições do Senado Federal, Vol. 185, Brasília, 2012.

Clerot, Leon F. R., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, Edições Senado Federal, Vol. 143, Brasília, 2011.

Freitas, Antônio Gomes de, Inhamuns: Terra e Homens, Editora Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1972.

Freyre, Gilberto, Casa Grande e Senzala, 18ª Ed., Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1977.

Macêdo, Nertan, O Clã dos Inhamuns: Uma família de guerreiros e pastores das cabeceiras do Jaguaribe, 2ª Ed., Edições A Fortaleza, Fortaleza/CE, 1967.

Oriá, Ricardo, Uma Nova História do Ceará, 2ª Ed., Edições Demócrito Rocha, Fortaleza/CE, 2002.

Arquivo do Barão de Studart, José Augusto Bezerra (coordenação geral), Fortaleza, Instituto do Ceará, 2010, p. 129.



[1] “Negra da terra” ou “negros da terra” era uma expressão comumente usada para se referir aos aborígenes, índios, no caso, às mulheres indígenas.
[2] Apesar de o escritor José de Alencar dizer que o termo indígena “tauá” significa “barro vermelho” (Ap. Freitas, Antônio Gomes de, Inhamuns: Terra e Homens, Editora Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1972, p. 21), é inconteste a posição dos especialistas a este respeito, que são unânimes em considerar a tradução “barro amarelo” para a palavra “tauá” (in Clerot, Leon F. R., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, Edições Senado Federal, Vol. 143, Brasília, 2011, p. 480). 
[3] Bezerra, Maria do Carmo de Lima, Notas sobre as Casas de Fazendas dos Inhamuns, Edições do Senado Federal, Vol. 185, Brasília, 2012, p. 63.
[4]Macêdo, Nertan, O Clã dos Inhamuns: Uma família de guerreiros e pastores das cabeceiras do Jaguaribe, 2ª Ed., Edições A Fortaleza, Fortaleza/CE, 1967, p. 59.
[5] No Cariri cearense, na cidade do Crato, conta-se que o Beato José Lourenço construiu a parede da pequena barragem do Rio Caldeirão utilizando na mistura mel de rapadura e azeite de mamona (entrevista feita a Raimundo Batista de Lima, com 70 anos de idade, zelador do Sítio Caldeirão, na tarde do dia 18/09/2014). Ainda no Cariri, a memória do povo também registra o uso das casas de cupim (cupinzeiro) na composição da argamassa das antigas habitações. Em Missão Velha, essa tradição foi colhida pelo pesquisador João Bosco.
[6] Alemão, Francisco Freire, Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão, Fundação Waldemar Alcântara, Fortaleza/CE, 2011, p. 334, p. 363 e 414.
[7] Sobre isto, disse Gilberto Freire: “A unidade econômica formava-a o solar - a mansão senhorial de taipa ou de barro amassado, avó da casa-grande de engenho brasileiro” (In Freyre, Gilberto, Casa Grande e Senzala, 18ª Ed., Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1977, p. 231).
[8] Oriá, Ricardo, Uma Nova História do Ceará, 2ª Ed., Edições Demócrito Rocha, Fortaleza/CE, 2002, p. 237.
[9] Bezerra, Maria do Carmo de Lima, Notas sobre as Casas de Fazenda dos Inhamuns, Brasília, Edições do Senado Federal, Volume 185, 2012, p. 74.
[10] Andrade, José Ailton Alencar, Um Galho do Umbuzeiro: Um Registro Genealógico da Família Alencar - Andrade dos Inhamuns, Fortaleza, 2013, p. 30. 

Um comentário:

  1. muito minteresante, sou descendente de pernanbucano , meu avô era pernambucano provalvelmente da cidade de garanhuns o nome dele era Manoel Cavalcante Umbuzeiro , veio para o Pará no inicio do seculo 19 onde se estabeleceu na cidade de Altamira , onde casou com minha vo filha de um coronel da região , cel. Raimundo de Paula Marques,Altamira a cidade onde nascir e vivo até hoje.

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