O ROMANCE DO V.R.
Autor:
José Alves de Figueiredo
Postado por: Heitor Feitosa MacêdoLuizinha e sua neta (Lolita), em Portugal. |
Leio sempre, com agrado, nos jornais de
Fortaleza, as croniquetas assinadas por V.R. e concluo que o autor aprendeu
regularmente a arte culinária, dosando bem o sal desse alimento espiritual que
fornece aos leitores do sertão.
Saboreava um dia desses o trabalho que V.R. traçou sobre os
ardores cinegéticos de gente de destaque da Capital. Quando me assaltou
fortíssima saudade de minha velha camaradagem em nossa juventude, há quase meio
século, com o signatário da espirituosa cônica.
A gente, quando já se vai aproximando do túmulo, torna-se
mito sentimental, recordando todas essas futilidades da vida passada com um
desejo impotente de voltar...
Como vai longe aquele belo tempo!
Tínhamos ambos 16 ou 18 anos, quando em torno de uma
fogueira de São João nos fizemos compadres para se tornarem mais estreitos os
laços de nossa camaradagem.
Luizinha, aos 72 anos, e sua família, em Guimarães/Portugal. |
Luizinha não era tipo de beleza, mas, vista através das
lentes de aumento que Eros sabe pôr aos olhos dos apaixonados, tinha retoques
mágicos para o namorado que, na veemência do seu enlevo, vivia a exalçá-los em
linguagem açucarada.
Moreninha e pequena como um lírio, era bem a noiva ideal do
meu compadre que sempre foi pouquinho, fisicamente.
Luiza da Penha Pereira Maia. |
Aconteceu que um jornal de Fortaleza publicou artigo enviado
de Crato, causticando os processos violentos empregados pelo detentor do poder
que oprimia, sem piedade, a bela princesa do Sul cearense.
A autoria dessa publicação foi atribuída ao professor Penha,
e o coronel Belém, sem um indício que justificasse, de qualquer modo, esse ato
de prepotência aldeã, concebeu, de pronto, plano de vingança original e cruel: –
Chamou seu lugar-tenente, o famigerado Jesuíno Antonio Maria, comandante de um
a
guarda municipal composta de bandidos da pior espécie, e mandou que o mesmo se
improvisasse farmacêutico e transformasse o jornal em pílulas, obrigando o
velho educador cratense a degluti-las.
Lolita, em 1954. |
A ordem, arbitrária e cruel, foi cumprida na parte leste da
Praça São Vicente, hoje Avenida Cel. Manuel Siqueira Campos, sob as vistas da
população estarrecida.
Anos depois ficou apurado que o autor do artigo em questão
fora o ouvires José Flamínio que, na ocasião, vendo as barbas do vizinho
arderem, pôs as suas de molho, dando um pulinho para Belém do Pará, de onde não
mais voltou.
Julgando-se desmoralizado, o professor Penha resolveu
emigrar com toda a família para Manaus, ficando por lá até morrer.
Foi violentíssima a dor de V.R. ao separar-se de sua diva.
Houve repetidas juras de fidelidade e, depois do competente bota-fora, sob
torrente de lágrimas, o Romeu, saudoso de sua Julieta, voltou-se para o meu
lado e descreveu-me toda a imensa dor que lhe avassalava a alma, todo o
prodígio de sua fortaleza de espírito para assistir sem perder o juízo, o
fragoroso ruir dos seus sonhos dourados.
Luizinha e família, na Vila Aurora/Portugal, em agosto de 1918. |
Inspirado, patético, teve frases como estas: “Minha cabeça é
um vulcão, arde em lavas de desespero! Meus miolos fervem como se estivessem
dentro de uma caldeira infernal! Resta-me apenas a esperança de alcançar
recursos, para seguir Luizinha e me casar com ela! Do contrário, meterei bala
no crânio e acabarei com esse trapo de vida amargurada”.
Eu, amigo sincero, receoso de que meu apalermado camarada
cometesse mesmo um desatino, velei por ele, roguei, implorei mesmo que afastasse
do seu pensamento aquelas ideias sinistras que me punham em sobressalto
contínuo.
Cupido, sempre canalha, solícito e hábil em pregar logros à
humanidade. Prepara as coisas de uma forma, mas só permite que elas se realizem
de acordo com as secretas intenções...
Luizinha, em Manaus, esperou alguns anos, certa de que
aquelas ardentes juras, seladas com tantas lágrimas, tinham caído no rol das
letras prescritas, resolveu ligar seu destino ao de um português rico e foi
viver em Lisboa, numa bela chácara que seu marido ali possuía, a saborear belas
peras e gostosas maçãs.[1]
Enquanto viveu nesta cidade seu cunhado José de Holanda
Praxedes, eu tive notícias de Luizinha pelas cartas que ela lhe dirigia. Pela
leitura de suas missivas, concluí que minha patrícia tinha evoluído muito,
intelectualmente, nas terras de além-mar.
Nos jornais que remetia de lá aio citado cunhado, enchia as
margens com longos comentários elucidando assunto de que os mesmos se ocupavam.
Lembro-me de belo comentário, em estilo cintilante, escrito
por ela nas margens de número da “A Mala da Europa”, sobre o modo de governo do
país amigo, encarando o problema do meretrício, ainda no tempo de D. Carlos, e
do qual muito gostei.
Morto José Holanda, eu não tive mais notícias de Luizinha e
não sei se viverá.
Se ainda vive, deve estar bem velhinha e muito reduzida na
sua figurinha de Tanagra.
Quanto ao meu compadre V.R., posso informar que deixou de
andar com essas fantasias de Vesúvio na cabeça, para ter belas ideias e traçar
lindas crônicas. Deixou também de ter os miolos a ferver nas caldeiras de Pedro
Botelho. Não abriu o crânio com uma bala e nem foi para o Norte. Achou mais
prático viver muitos anos e ficar em Fortaleza, evitando as endemias do inferno
verde. Casou com senhora de respeitável família da nossa Capital, que há anos o
deixou viúvo. Tem filhos e perfeitamente educados.[2]
Aliás, já é tempo. Subiu como eu, cinco etapas ascendentes
na montanha da vida, e, preguiçosamente, desceu uma para o lado oposto,
igualmente como seu velho companheiro que comete indiscrições dessa natureza.
Crato, 1932
(in Figueiredo, José Alves de, Ana Mulata: Contos e Crônicas, Crato
- CE, Instituto Cultural do Cariri, p. 25 a 29).
[1] Luizinha faleceu em 1956, em
Guimarães, Portugal. Escrevia para a parenta e amiga, D. Santa Moreira, sempre
saudosa da terra natal e com a velhice amargurada pelos desgostos que lhe dava
o marido, desgostos esses compensados pelo carinho e amizade dos filhos (nota
de J. de Figueiredo Filho).
[2] Os filhos de Vicente Roque são
Atualmente pessoas de real projeção nas suas profissões e nos meios onde vivem (nota
de J. de Figueiredo Filho).
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