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quinta-feira, 1 de junho de 2017

O PRIMEIRO ADVOGADO DO CARIRI CEARENSE: DR. MANUEL DE SÃO JOÃO MADEIRA

O PRIMEIRO ADVOGADO DO CARIRI CEARENSE: DR. MANUEL DE SÃO JOÃO MADEIRA
                                                                                 
                                                                                 Autor:  Heitor Feitosa Macêdo

         No presente, a região do Cariri cearense, ao sopé da Chapada do Araripe, sul do estado do Ceará, goza de um número substancial de advogados, mas nem sempre foi assim, pois, no nascedouro da colonização branca, estes profissionais eram escassos e somente nos idos do século XVIII um deles fez residência na dita região.
         Velhos documentos comprovam que alguns advogados estiveram exercendo a função no então sertão dos Cariris Novos (Cariri cearense), contudo, o primeiro profissional a ir morar nesta região foi o português Manuel de São João Madeira, no fim da primeira metade do século XVIII[1].
         Este português era bacharel em Direito, formado pela antiquíssima faculdade de Coimbra, em Portugal, tendo emigrado para o Brasil na época em que a mineração propiciava grande rentabilidade à Coroa portuguesa.
         Inicialmente, o dr. Manuel de São João Madeira foi residir na Capitania de Pernambuco, na condição de funcionário público, porém, deslocou-se para a capitania vizinha, a do Ceará Grande, a fim de ocupar outro cargo público, desta vez, nas Minas de São José dos Cariris Novos.
         Neste derradeiro lugar estabeleceu-se definitivamente, às margens do Riacho do Ouro, regato perene que hoje atravessa parte do perímetro urbano da cidade de Barbalha/CE, lugar onde viveu em concubinato com a baiana Izabel Francisca, deixando vários descendentes, dentre eles o coronel Joaquim Pinto Madeira, líder de uma das maiores revoltas já vistas nos sertões do Nordeste e vítima da manipulação do sistema judiciário.
         A vida desse advogado, até agora, foi pouco explorada, e isto talvez se deva à escassez de documentos ou mesmo à influência que a historiografia local sofreu com os conflitos pessoais de seus narradores em épocas passadas. Entretanto, é oportuno realçar este importante personagem da história caririense para melhor entender as causas que levaram aos arranjos sociais do presente e do passado.

A ADVOCACIA NO BRASIL

            Infelizmente, a memória sobre a advocacia no Brasil tende a ser contada a partir do século XIX, esquecendo-se de quase 300 anos de sua história, intervalo que merece ser resgatado, pois, certamente, sem esses profissionais a vida na América portuguesa teria sido bem mais penosa.  
         A história sobre a advocacia no Brasil é omissa, pois, como se vê no site da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dá a entender que estes profissionais aportaram no País logo após a Independência, quando a Assembleia Constituinte de 1823 previu a criação dos cursos jurídicos, os quais só foram inaugurados em 1828. Outro marco para a resumida história da advocacia brasileira data da fundação do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), em 1843[2], antecipando a OAB em quase noventa anos, a qual só veio a ser criada em 1930, por força do artigo 17 do Decreto nº 19.408.
         O exercício desta atividade no Brasil, logicamente, remonta ao período colonial, ou melhor, existe desde o primeiro século do descobrimento, conforme apontam os velhos registros do Tribunal da Inquisição. Na Capitania de Pernambuco, por exemplo, os autos da Santa Inquisição, datados de 26 de agosto de 1595, mencionam uma denúncia feita pelo licenciado Diogo Bahia contra dois cristãos-novos (judeus convertidos à fé cristã), o qual, apesar de ser advogado, neste ato, atuou como promotor:

Licenciado Diogo Bahia contra Thomaz Lopes, o Maniquete, e Melchior Mendes de Azevedo.
Dixe seer christão velho natural de Codeceiro do Arco termo de Monte Alegre arçobispado de Braga filho de Gaspar Gonçalves Bahia e de Isabel Fernandes sua molher defunctos, de ydade de quarenta annos sacerdote de missa que nesta villa usa de advogado nos auditórios della que também nesta visitação do Santo Officio.
E denunciando dixe que tres ou quatro annos a esta parte tem ouvido dizer nesta villa geral e publicamente a alguãs pessoas com quem fala na materia de christãos novos que quando se ajuntão os christãos novos em Camaragibi ou em outra parte pera fazerem suas cerimonias judaicas que Thomaz Lopes dalcunha o Maniquete christão novo, homem velho que está no paço do varadouro desta villa ata hum pano em hum pee e que assim com aquelle pano atado no pee lhes dá signal, com o qual eles ho entendem pera se ajuntarem a fazer as cerimonias judaicas e que isto tem elle testemunha ouvido dizer nesta villa a muitas pessoas per maneira que entende que he fama publica nesta terra entre grandes, pequenos, altos e baixos.[3]   

             Dessa maneira, não resta dúvida sobre a existência de advogados no Brasil desde o século XVI, ao tempo do nascimento da civilização brasileira em moldes europeus.

A ADVOCACIA NO CEARÁ NO SÉCULO XVIII

            Em 1710, aproximadamente dez anos após a fundação da primeira vila da Capitania do Ceará, apenas dois advogados aí residiam: Manoel Monteiro e Jorge da Silva, providos pelo capitão-mor e confirmados pelo governador de Pernambuco, pois, conforme João Brígido:

Antecedentemente, a câmara do Aquiraz tinha pedido a este governador que mandasse três letrados, que aconselhassem as partes nos negócios da administração da justiça. No caráter de advogados, mandou ele para o Ceará três soldados inválidos, sem nenhum conhecimento das leis e prática do foro.[4]

Essa carência de profissionais no Ceará perdurou por longo período, pelo menos é o que se constata até o ano de 1783, conforme uma carta escrita em Aquiraz por João Damasceno, no dia 02 de maio, e remetida ao capitão Antônio de Castro Viana, na qual revela a falta de advogados nas vilas da Comarca do Ceará, nos seguintes termos: “todos os dias eles estão avocando causas pela razão da falta de advogados nas vilas da Comarca: eis aqui outra razão de clamar; e que eu quando quero faço do torto Direito; e do Direito torto[5].
            O exercício da advocacia na Colônia brasileira deveria ser autorizado pelo Conselho Ultramarino, instalado em Portugal[6], através das chamadas provisões, isto de acordo com as palavras do governador-geral da Capitania de Pernambuco, o qual, em carta de 1759, dirigida ao governador da Capitania do Ceará, destacou o seguinte:

No que toca às Provisões para advogar nem a V.M. nem a eles são permitidas passar por pertencer esta regalia para toda América somente ao Conselho Ultramarino e só no caso dos povos lhe requererem estarem faltos de Advogados que os patrocinem nas suas causas e os Ministros respectivos informarem carecerem deles por não irem indefesos e desamparados nas suas ações, como remédio interino a poderá Vossa Mercê conceder aos inabitáveis nesta indigência, advertindo-os que a mandarão tirar com brevidade possível pelo dito Conselho.[7]
  
            Portanto, nota-se que, em regra, na América portuguesa, só seria possível advogar com a permissão do Conselho Ultramarino, que, em resumo, era órgão criado pelo Rei D. João IV para cuidar da administração das colônias portuguesas. No entanto, excepcionalmente, os capitães-mores governadores e os ouvidores gerais poderiam dar essa licença, a qual deveria, logo em seguida, ser autorizada (homologada) pelo dito Conselho.
         Aparentemente, essa autorização para exercer a advocacia, em geral, era por tempo limitado, com intervalo de apenas três anos, semelhante ao que acontecia no funcionalismo público da Coroa portuguesa no Brasil, a exemplo dos ouvidores-gerais (bacharéis em Direito, espécie de juiz-Estado) e capitães-mores das capitanias (figura análoga aos atuais governadores dos estados-membros), que também eram nomeados para exercer tais funções por apenas um triênio, mas havendo a possiblidade de recondução ao cargo através de requerimento ao Rei.
         Além desse caráter temporário, a provisão também restringia o espaço no qual certo indivíduo poderia exercer a advocacia. Isto é o que se depreende de um requerimento feito em 1736 por Antônio de Holanda Cavalcante (sacerdote do hábito de São Pedro e advogado no Ceará), pedindo ao rei de Portugal, D. João V, provisão para continuar a advogar na praça do Recife, cidade de Olinda e em outros lugares da Capitania de Pernambuco[8].
         Apesar de existir, em regra, essa limitação temporal e espacial do exercício da função advocatícia, são encontrados alguns requerimentos solicitando que a referida provisão fosse dada em caráter vitalício e em todo o território do Estado do Brasil[9].

ORIGEM DO DR. MANUEL DE SÃO JOÃO MADEIRA

            Analisando antigos registros paroquiais de Missão Velha/CE, encontra-se a informação de que o dr. Manuel de São João Madeira era natural de Lisboa (Portugal), pelo menos é o que indica um assentamento de batismo de um de seus netos, do dia 06 de dezembro de 1769:

Florencio filho de Antonio de Barros Rego natural da freguezia da capitania de Pernambuco e de sua molher Dona Luiza Maria da Piedade natural e moradora no Riacho do Ouro desta freguezia de Sam Joze dos Kaririz novos neto paterno de Braz Ferreira Colaço natural da freguezia de Ipojuca e de sua molher Dona Francisca do Rego Barros na [fl. 37]
Natural da freguezia da Moribeca neto materno do Doutor Manoel de sam joam Madeira natural de Lisboa e de Izabel Francisca molher Solteira natural da Bahia nasceu aos Sette dias do mes de Novembro de mil Sette centos Secenta e nove annoz foy batizado [Sem] Santos óleos nolugar do Riacho do Ouro desta freguezia aos seis dias do mes de Dezembro de mil Sette centos Secenta e nove annos pello Reverendo Padre Frey Manoel Jezus Ferreira de Souza de licença minha foram padrinhos Manoel Ponciano Pinto Madeira Solteiro e Dona Beatriz de Mello cazada moradores desta mesma freguezia de Sam Joze de que eu Joze Gomez Barretto Cura dos Kaririz novos fiz este termo aos seis dias do mes de Dezembro de mil Sette centos Secenta e nove annoz para Constar.
P.e Joze Gomez Barretto
Cura dos Kaririz novos [fl. 37v].[10]


           
         Todavia, examinando outro manuscrito, constata-se que, na verdade, o dr. Manuel de São João Madeira nasceu na Vila da Aldeia Galega, também conhecida por Aldeia Galega do Ribatejo até o ano de 1930, quando passou a ser chamada de Montijo (hoje, cidade), é o que afirma o assentamento de casamento de dona Maria Luiza da Piedade, filha do dr. Manuel de São João Madeira, datado de 26 de novembro de 1768:

Aos vinte e seis dias do mes de Novembro de mil Sete centos Sessenta e oito annos nesta manhã no Riacho do ouro desta Freguezia de Sam Joze dos Kaririz novoz na casa do doutor Manoel de Sam Joaó Madeyra feitas as denunciaçoens na forma do Sagrado Concilio tridentino nesta Igreja Matriz onde a Contrahente he natural e ambos moradores e tendo justificado o Contrahente [de?] Solteyro [e dado fiança?] a banhos e certidão [de solteiro?] como consta do mandado de cazamento sem se decobrir impedimento, como consta da certidão de banhos que ficão em meu poder, em prezença de mim Joze Ferreira da Costa Cura desta Igreja de Sam Joze vindo e sendo presentes por testemunhas o Capitáo Domingos Pais Landim e o tenente Agostinho Pais Rebello pessoas conhecidas Se Cazaráo em face da Igreja solenemente por palavras Antonio de Barros Rego Collaço natural da Freguezia do Cabo morador no Riacho do Ouro desta Freguezia de Sam Joze dos Kariris novos filho do Alferes Braz Ferreyra ja defunto e de sua molher Dona Francisca do Rego Barros já defunta naturais da Freguezia de Ipojuca neto paterno de Luiz Gonçalves da Costa e de sua molher Maria Pereira de Brito naturais da dita Freguezia de Ipojuca neto materno do Sargento Mor Cosme do Rego Barros natural da Freguezia de Moribeca e de sua molher Messia do [Samptos?] Souza natural da Freguezia do Cabo com Dona Luiza Maria da Piedade natural desta Freguezia de Sam Joze dos Kariris novos e moradora no Riacho do Ouro desta mesma Freguezia filha natural do Doutor Manuel de Sam Joaó Madeyra [viúvo?] natural da vila da Parmela digo da villa da Aldeya Galega Portugal [banda?] da Cidade de Lisboa e de Izabel Francisca solteyra natural da villa da Cachoeyra Arcebispado da Bahia [fl. 34]
Da Bahia [neta paterna de] Manuel Pinto Madeyra natural da vila da Parmela do mesmo [Patriarchado] e da sua molher Antonia Luiza natural da mesma Cidade de Lisboa neta materna do Sargento Mor Tomas Martins Pereyra e de sua mulher Michaela dos Anjos naturais da villa da Cachoeira Arcebispado da Bahia e logo lhes dei as bençãos Conforme aos ritos e Cerimonias da Santa Madre Igreja examinadas da Doutrina Christaã: a que eu Joze Ferreira da Costa Cura dos Kariris novos fis este termo aos nove dias do mes de dezembro de mil sete centos sessenta e oito annos para Constar que por verdade assiney com as testemunhas aSima declaradas
Joze Ferreira da Costa [assinatura]
Cura e vigario da v.a dos Karirys novos [fl. 34v].[11]   
           

            
            Outra fonte, constante dos arquivos da Universidade de Coimbra, reforça que o dr. Manuel de São João Madeira era mesmo natural da Vila da Aldeia Galega[12]. Talvez, por esta razão, não seja descabida a dita confusão acerca da naturalidade do dr. Manuel de São João Madeira, já que a referida vila fica nas vizinhanças de Lisboa, cuja fronteira é feita apenas pelo Rio Tejo.
            Acrescente-se que o pai do dr. Manuel de São João Madeira, Manuel Pinto Madeira, também era português, mas da Vila de Palmela (Parmela)[13], ao lado da Vila da Aldeia Galega, sendo casado com Antônia Luiza, por sua vez, nascida em Lisboa.


FACULDADE DE COIMBRA: PORTUGAL

            O diploma dado por uma universidade tinha o condão de alçar os indivíduos a patamares superiores dentro das sociedades de outrora, pois estes ungidos da ciência acadêmica gozavam de grande credibilidade, sendo os mais legítimos donos da verdade, os arautos do conhecimento academicista.
         Por outro lado, aqueles que dominavam conhecimentos notáveis sem possuir diploma universitário eram simplesmente denominados de curiosos[14], não desfrutando da mesma credibilidade dos letrados, licenciados e bacharéis.
         Na metade do século XVIII, deveria ser raro encontrar alguém no Brasil que houvesse frequentado alguma universidade; e boa parte dos indivíduos que atuavam como advogados, ou eram pessoas sem diplomas universitários, os chamados rábulas[15], ou eram formados em outras áreas como filosofia e teologia.
         Nesta época, a antiquíssima Universidade de Coimbra, criada no ano de 1290, oferecia poucos cursos, entre eles os que tratavam dos estudos das leis, o que era dividido em duas faculdades: a dos Cânones e a de Leis. Logo, quem passasse por suas cadeiras estaria habilitado a ocupar lugares de letras, trocando em miúdos, poderia ingressar em cargos públicos, com tratamento de doutor (de douto, conhecedor), axiônimo que, à época, só era aplicado aos graduados em medicina, teologia e direito[16].
         Dessa forma, é possível mensurar o tamanho do prestígio que um advogado, bacharel em direito, tinha no Brasil colonial, ainda mais no interior, no sertão, onde, certamente, a escassez destes profissionais era mais acentuada.
         Portanto, sendo Manuel de São João Madeira doutor pela Universidade de Coimbra[17] e vivendo no Sertão dos Cariris Novos (a léguas de distância do litoral), infere-se que ele tenha sido uma das pessoas de maior destaque na região, o que, no entanto, é omitido pela História do Cariri. 

O ATRATIVO DAS MINAS DE OURO DE SÃO JOSÉ DOS CARIRIS NOVOS

            Em 24 de setembro de 1731, o dr. Manuel Madeira já fazia parte do funcionalismo público na Colônia brasileira, exercendo a função de tesoureiro dos Defuntos e Ausentes na Capitania de Pernambuco[18]. Em que pese esta vaga informação, pouco se conhece sobre a vida deste advogado nos vintes anos seguintes, até a data em que foi residir no Cariri cearense.
         E quando ele teria chegado à Capitania do Ceará?
         Atualmente, não existe exatidão para a data da chegada do dr. Madeira à terra cearense. O que se pode afiançar é que por volta de 1753, com o início da exploração do ouro no Cariri, o dr. Manuel Madeira ficou encarregado da fiscalização das Minas de São José dos Cariris Novos, de acordo com os apontamentos do Barão de Studart:

Livre de Proença de Lemos, dor de ilharga chama-o ele, Jerônimo de Paz tratou de organizar a repartição da Intendência, utilizando-se dos auxiliares, que de Pernambuco tinham vindo ou que já moradores no Ceará haviam sido gratificados com algum emprego ou comissão. A ele coube o título de Intendente, ficando assim por substituto do ouvidor; o Capitão João Ferreira de Oliveira foi nomeado tesoureiro, emprego que já tinha por nomeação interina do dito ouvidor, e do qual estava empossado, prestada a respectiva fiança desde 4 de agosto de 1753; ficou sendo fiscal o Doutor Manuel de S. João Madeira, o Coronel Álvares de Matos teve a guardamoria, Luís Manuel ficou por escrivão e João Carvalho por escriturário.[19]

            Isto é comprovado por uma carta do capitão comandante e intendente das minas dos Cariris Novos, Jerônimo Mendes da Paz, enviada ao governador de Pernambuco, Luís José Correia de Sá, e escrita no dia 08 de agosto de 1753, na qual há o relato sobre a indicação e nomeação do dr. Manuel de São João Madeira para o cargo de fiscal das ditas minas:

E aberto o Sacco achei cartas p.a a Camara do Ico, q´ Logo entendi táo beim continham [fl. 04] a proposta de Thezoureyro, e Fiscal, e fiz com q´ o Ouvidor lhe escrevesse p.a q´ lhe participaSsem q.m era os nomeados e torney a mandar a o Ico com estas cartas, e Supposto a Camara naó me Remetteo a Resposta p.a V.Ex.a, Respondeo ao Ouvidor q´ tinha Recebido ordem de V.Ex.a p.a nomear Thezour.o e Fiscal, q´ p.a o primr.o emprego nomeavam o mesmo q´ ja tinham nomeado por ordem do d.o Ministro q´ era o Cap.m Joaó Ferr.a de Oliva, e p.a o 2º nomeava ao D.or M.el de S. Joaó Madeira, na minha opiniaó eleycaó em ambos m.to acertada eu Recolhi a mim p.a a Remetter a Secretaria a carta p.a o Ouvidor em resposta, e exi-i della passes em húa das folhas de papel sellada e aSsinada a Provizáo p.a Thezour.o cuja copia Remetterei p.a se Rezistar, e fiz por náo teve o effeyto na q´ lhe havia passado o [palavra ilegível] no Rezisto... [fl. 04v].[20]

            Neste cargo de fiscal da Minas de São José dos Cariri Novos, o dr. Manuel Madeira agia junto com o Intendente, tendo a obrigação de averiguar o pagamento do quinto do ouro retirado no Cariri, como ocorreu no dia 20 de março de 1754, quando passou certidão de arrecadação de 2 oitavas de ouro, cujo contribuinte era o padre Gonçalo Coelho de Lemos, vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Luz:    

Intendente e Fiscal da caza da Intend.a e arecadação da caza dos Reaez Quintos das Minas de Sam Jozè dos Kareriz novos abaicho a signados. Fazemos saber que o R.P.e Gonçalo Coelho de Lemos vizinho deste Arrayal das ditas Minas e Cura desta Freguezia de Nossa Snrâ da Luz apresentou nesta Caza da aRecadação do Quintos dêz oitavas de Ouro empô das quaez tiradaz duas oitavas do quinto pagou e ficão Carregadaz em receyta Viva ao Thezr. dellez o Capitao̓ Joam Ferreyra de Oliva em o L.o de sua Receyta a fl 13v.o e lhe ficaraó Livrez oito oitavas epara sua Guia semandou passar esta por noz a signada e sellada com o sello Real desta Intendencia. Arraial das Minas de Saó Jozê do Kareriz novos aos vinte de Março de mil e sete Centos Cincoenta e Coatro annos, e eu Joam Carvalho do Valle Escrivam da Intendencia Escrevi//
Jerônimo Mendez da Paz [assinatura]
Manuel de São João Madeira [assinatura].[21]

            Entretanto, o dr. Madeira não demorou muito tempo como fiscal, pois, apesar das ditas minas terem sido abertas no dia 06 de junho de 1753[22], em 1758 o Rei mandou fechá-las[23] por motivos ainda não totalmente esclarecidos.
         Aparentemente, o dr. Manuel de São João Madeira chegou ao Ceará atraído pelas minas de ouro, isto em meados do século XVIII, o que leva a crer que tenha sido ele o primeiro advogado, bacharel em Direito, a ir residir no Cariri cearense.

REGISTRO DE SUA ATUAÇÃO COMO ADVOGADO NO CARIRI CEARENSE

            Próximo ao ano de 1753, o dr. Manuel de São João Madeira atuou como advogado de um dos homens mais poderosos que residiam no Cariri, o sergipano Francisco de Magalhães Barreto e Sá (réu/requerido na ação), o qual litigou judicialmente contra Ana Lobato (autora da ação) por uma fértil faixa de terra, o Sítio da Barbalha (na época, descrito entre os sítios Lagoa e Salamanca), que veio a originar a cidade do mesmo nome. Esta celeuma se deu entre grandes latifundiários, sendo resolvida perante o juiz ordinário da Vila do Icó/CE, ou seja, por um juiz leigo, que não era bacharel em Direito.
         Até o presente instante, a única manifestação escrita pelo dr. Manuel Madeira que se tem notícia, exercendo a função de advogado, é uma contestação que trata do referido litígio judicial pela terra supradita, nos seguintes termos:

P. que as estremas de que se trata que estremão as terras do R. com as da A. sempre forão pella parte do Riacho do Ouro em hua varjota e ypoeira que esta na beira do Brejo pella parte de bacho do sittio chamado a Barbalha nome que tomou de huma mulher asm. chamada que de renda esteve no lugar  pagando-a ao coronel João Mendes Lobato a quem o aRendou e dele era sor. no qual a ta. mulher plantou lavouras e dizem que tambem arvores de espinho sem contradição de pessoa alguma a vista e face da autora e hoje do do. Sittio faz exma. do Riacho do Ouro.
P. que não só a da. Barbalha esteve de renda nas das. Terras; mas tãmbem depois della outro rendeiro chamado João de Figueiredo, tão bem pello do sr. dellas o Coronel João Mendes, que como tal passava arendamentos e cobrava as rendas o que tudo ce mostrarar a seu tempo por documentos sendo nesseçarios.
P. que passando estas terras ao novo possuidor que foi Ignássio de Figueiredo este arendou o do. sittio chamado a Barbalha a seu irmão Manuel Fellis pa. criar gados, e plantar toda casta de lavouras e o do. Manuel Fellis logo fez sercados e abriu vaquejadouros athe a da. Ipueira e Varjota tãobem sem contradição de pessoa alguma nem ainda da A. e cetem passados varios anos.
P. que as estremas do sittio da A. chamado Lagoa sempre fora na tal Ipueira e Varjota pela parte do Riacho do Ouro abaxo do sittio chamado Barbalha, e pella outra parte do Brejo abaxo de uma Ingazeira que este mto. abaixo do Engo. Do Capm. Franco. de Brito, e não no do Engo. como diz a A. e tanto asm. que.
P. que na Ingazeyra, o abaxo della esteve situado o alferes Vitorino de Oliveira por parte do sor. das terras o Coronel João Mendes com currais, e pastos mtos. annos sem que a A. a isso ce opuzesse donde sertamte. se segue não pertenceram as terras a da. A. mas Sim ao do. Coronel João Mendes, logo he falço ser a estrema a donde diz a A. e este ainda hoje o possue.
P. que o R. numca teve duvida nas estremas nem foi o que as marcou porque sempre foi notorio serem estas pella parte já dita, mas sim A. como no seu Libello a fls. se mostrou e tanto que.
P. mandando o R. rossar nas suas terras pa. plantar a A. lhou, digo, plantar a A. lhe impediu dizendo aquellas terras lhe pertencião, sem posse judicialmente, estando estas debaxo das extremas do R. e asim ficando sem plantar naquele rossado não quiz continuar por ser homem manço e passifico amigo da paz, e não querer discórdias; no que resultou grande prejuizo que a seu tempo peddirá.
P. que nestes termos e nos de direito deve a A. ser condenada a estar pellas extremas antigas que sempre forao desde os pros. pessuidores athe ao presente julgandosse ser nelas conservado o R. com todas as perdas, e danos lucros sessantes e danos emergentes que a A. causou ao R. em lhe proibir o seu rossado visto ser o R. como he pessuidor de boa fé e custas.
P.R.C. Dejud. Onn Mil. Jur. Mo.
                                       pp
Madra [rubrica e sinal].[24] 

            Porém, no ano de 1757, o dr. Manuel Madeira deixou de atuar na dita causa, tendo em vista que seu cliente, Francisco de Magalhães, até então assistido por seis advogados, substituiu seus patronos, passando procuração a apenas dois profissionais denominados de licenciados (certamente por terem licença, dada por meio de provisão, para atuarem como advogados no Ceará): José Pereira de Melo e Manuel Ribeiro do Vale[25].
         Decerto, por ter sido patrono da dita causa, o dr. Manuel Madeira deveria receber seus honorários advocatícios, sendo provável que tal pagamento tenha sido feito não em dinheiro, mas em terra, pois, coincidentemente, ele foi residir numa parte da referida área disputada, o Riacho do Ouro (circunscrito pelo atual município de Barbalha), encravado nas primitivas propriedades dos Mendes Lobato.

A FAMÍLIA DO DR. MANUEL DE SÃO JOÃO MADEIRA

            Apesar do engajamento na Igreja católica[26], o dr. Manuel de São João Madeira viveu por longos anos em concubinato com a baiana Isabel Francisca[27], coisa que, à época, era abominado pelos religiosos e sujeito à pena de excomunhão[28]. Esta relação de concubinato se dava quando duas pessoas não casadas viviam maritalmente, sem haver entre elas causa de impedimento para o casamento.
Vivendo desta maneira, o casal teve três filhos naturais, uma mulher e dois homens: Dona Luiza Maria da Piedade casada com Antônio de Barros Rego Colaço; Valentim de São João Madeira; e Manoel Ponciano Pinto Madeira, pai do coronel Joaquim Pinto Madeira[29].
Atualmente, as informações históricas sobre a vida do dr. Manuel de São João Madeira e seus descendentes são deficientes, além disso, apesar do tão propalado episódio conhecido por Assassínio Jurídico de Pinto Madeira, percebe-se a existência de lacunas acerca desses personagens. Mas por que os historiadores não se ocuparam em esmiuçar o passado dessa gente, tendo em vista a importância que tiveram na sociedade caririense dos séculos passados?
Para encontrar a resposta é preciso volver os olhos para o coronel Joaquim Pinto Madeira, neto do dr. Manuel de São João Madeira, e sua participação nos movimentos de 1817 (Revolução Pernambucana no Cariri), 1821 (votação da Constituinte portuguesa), 1822 (guerra de Independência), 1824 (Confederação do Equador) e 1832 (Revolta de Pinto Madeira).
Em todos estes momentos de distúrbios no Cariri, Joaquim Pinto Madeira se mostrou a favor do absolutismo monárquico, pois, até então, era o sistema de governo que conhecia; além disso, contrariar o poder absoluto do rei significava ir de encontro também à religião, estando sujeito a penas muito severas, como a perda dos bens por confisco, morte cruel, infâmia da família, etc.[30]
         Destarte, ficando Pinto Madeira ao lado do rei, inevitavelmente, terminou se rivalizando com os prosélitos do liberalismo, que, no Crato, tinham como líderes muitas famílias tradicionais, a exemplo dos Alencar, os Maia, os Ferreira Lima, entre outros, surgindo disso um enorme antagonismo, tanto na esfera política quanto na pessoal.   
Entre os anos de 1831 e 1832, quando os inimigos de Joaquim Pinto Madeira recobraram as energias, alcançando patamares políticos relevantes, deram início ao seu plano de vingança, e, sob o pretexto de que Pinto Madeira era, além de absolutista e restaurador, inimigo da Constituição, ordenaram, na Câmara da Vila do Crato, a sua prisão, no dia 06 de junho de 1831[31].  
Diante disto, Joaquim Pinto Madeira reagiu comandando um enorme exército armado, principalmente de cacetes, vindo a dominar praticamente todo o Cariri[32]. Porém, no sítio Correntinho[33], depois de quase dez meses de combates e na companhia de mais de 3.000 homens, terminou se entregando ao general Labatut[34], sendo preso e enviado, primeiramente, para os cárceres do Recife/PE[35]. Em seguida, foi levado ao Ceará, e, daí, transferido para o Maranhão[36], donde fora remetido de volta ao Ceará no ano de 1834, por ordem do presidente Ignácio Correia de Vasconcelos[37].
Curiosamente, quando Pinto Madeira chega preso ao Ceará, um dos seus maiores inimigos, o senador José Martiniano de Alencar, havia tomado posse como presidente da província cearense e não titubeou em enviar o dito preso ao Crato, para que fosse submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri.
Como é sabido, ao chegar à Vila do Crato, Pinto Madeira foi julgado erroneamente por crime comum (homicídio qualificado) em vez de crime de rebelião. Assim, depois de ter sido condenado à forca, fora arbitrariamente executado, negando-se ao réu o direito de recorrer da sentença para que se fizesse novo júri na capital, em Fortaleza.

CONTINUA!
EM BREVE, NA REVISTA ITAYTERA, 2016/2017.







[1] Na opinião do Padre Antônio Gomes de Araújo, o dr. Manuel de São João Madeira “foi o primeiro colono a exercer a profissão de advogado neste Cariri”, onde teria fixado residência no Riacho do Ouro (Barbalha) “no fim da primeira metade do século XVIII” (ARAÚJO, Padre Antônio Gomes de, A Cidade de Frei Carlos, Crato, Faculdade de Filosofia do Crato, 1971, p. 43).
[2] História da Ordem dos Advogados do Brasil, OAB (Disponível em: <http://www.oab.org.br/historiaoab/antecedentes.htm>. Acesso em: 05/01/2016).
[3] Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil: Denunciações e Confissões de Pernambuco (1593 - 1595), Recife, FUNDARPE, 1984, p. 471 e 472.
[4] BRÍGIDO, João, Ceará (Homens e Fatos), Fortaleza - CE, Editora Demócrito Rocha, 2001, p. 409.
[5] ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, CONSELHO ULTRAMARINO, BRASIL−CEARÁ,1783, maio, 2, Aquiraz: CARTA de João Damasceno ao capitão Antonio de Castro Viana sobre a falta de advogados nas comarcas. AHU_ACL_CU_006, Cx. 9, D. 595. fl. 01.
[6] O Conselho Ultramarino era um órgão burocrático da Coroa Portuguesa, tendo sido criado em 1642 e extinto em 1833, constituído, à época de sua criação, por 3 conselheiros, dentre eles, dois homens fidalgos, homens de guerra (Conselheiros de Capa e Espada); e um homem de leis (Conselheiro letrado). Estava atrelado diretamente ao rei e sua competência era ampla, açambarcando as ditas Provisões (CAETANO, Marcello, O Conselho Ultramarino: Esboço da sua História, Rio de Janeiro, Companhia Editora Americana, 1969, p. 43).
[7] STUDART, Guilherme, Notas Para a História do Ceará, Brasília, Edições do Senado Federal, Volume 29, 2004, p. 145 e 146.
[8] ARQUIVO HITÓRICO ULTRAMARINO, CONSELHO ULTRAMARINO, BRASIL−CEARÁ, [ant. 1736, janeiro, 23]: REQUERIMENTO de Antonio de Holanda Cavalcante, sacerdote do hábito de São Pedro e advogado no Ceará, ao rei [D. João V], a pedir provisão para continuar a advogar na praça do Recife, cidade de Olinda e mais lugares da capitania de Pernambuco. Anex: certidões. AHU-CEARÁ, cx. 2, doc.102. AHU_ACL_CU_006, Cx. 3, D. 172.
[9] O território brasileiro, até o ano de 1751, estava dividido em dois “Estados”, ou melhor, em duas colônias, a do Maranhão: iniciando da província do Piauí e estendendo-se por toda a região Norte, a Amazônia; e a do Brasil: começando do Ceará até a porção Sul do País, ressaltando-se que o atual litoral do Piauí, naquela data, pertencia à província do Ceará (PRUDÊNCIO, Antônio Ivo Cavalcante, Heróis da Solidão: Províncias do Norte (1817 a 1824), 1ª Ed., Fortaleza - CE, 2011, p. 27.).
[10] ASSENTAMENTO DE BATISMO DO LIVRO PAROQUIAL DE MISSÃO VELHA/CE, 1769-1805, fl. 37 (Fonte: Family Search, disponível em: <https://familysearch.org/ark:/61903/3:1:9392-9R91-3X?owc=collection%2F2175764%2Fwaypoints&wc=MHNM-T3D%3A369521501%2C369521502%2C369573101%3Fcc%3D2175764&cc=2175764>. Acesso em: 03/01/2016). Abaixo deste documento, na folha nº 37, está escrito o seguinte: "filha do doutor mel. de S. João madeira/Isabel Francisca Solteira".
[11] ASSENTAMENTO DE BATISMO DO LIVRO PAROQUIAL DE MISSÃO VELHA/CE, 1765-1770, fls. 33 e 34. (Fonte: Family Search, disponível em: <https://familysearch.org/ark:/61903/3:1:9392-9R9B-YP?owc=collection%2F2175764%2Fwaypoints&wc=MHNM-RM3%3A369521501%2C369521502%2C369521503%3Fcc%3D2175764&cc=2175764>.Acesso em: 24/12/2015).
[12] Arquivo da Universidade de Coimbra (Disponível em: <http://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=182460>. Acesso em 03/01/2016). O genealogista Francisco Augusto afirma que o dr. Manuel de São João Madeira seria natural da “Freguesia da Aldeia Galega da Merceana, Alenquer, Lisboa” (LIMA, Francisco Augusto de Araújo, Siará Grande: uma província portuguesa no nordeste oriental do Brasil, Vol. IV, Fortaleza – Ceará, Expressão Gráfica, 2016, p. 1796). Como se percebe, atualmente, não há certeza quanto ao lugar de nascimento do dr. Manuel de São João Madeira, pois existiu em Portugal mais de uma Aldeia Galega: a do Ribatejo (Montijo) e a da Merceana.
[13] Devido à dificuldade da leitura paleográfica dos assentamentos eclesiásticos, Francisco Augusto erroneamente leu “Perenal” em vez de “Parmela” (LIMA, op. cit., p. 1796). No entanto, uma análise minuciosa dos documentos referenciados neste trabalho não deixam margem para dúvida.
[14] STUDART, Guilherme, Notas Para a História do Ceará, op. cit., p. 409. O naturalista inglês, George Gardner também registrou a dita expressão: “curioso” (GARDNER, George, Viagem ao Interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841, São Paulo, Editora da Universidade do São Paulo, 1975, p. 197). Sobre o uso do referido termo, ver: CABRAL, Tomé, Dicionário de Termos e Expressões Populares, Fortaleza ‒ Ceará, Instituto Cultural do Cariri, 1972, p. 277. Ver também: GIRÃO, Raimundo, Vocabulário Popular Cearense, Fortaleza – CE, Imprensa Universitária, 1967, p. 99.
[15] Os rábulas eram pessoas não formadas em direito que exerciam as funções de advogado, citados sob esta denominação desde o tempo da antiga civilização romana. No Brasil, o Estatuto da OAB de 1963 regulamentou a referida atividade, porém, o Estatuto subsequente, de 1994, veio a extinguir a figura do rábula.
[16] BLUTEAU, Padre D. Raphael, Vocabulário Português e Latino, Coimbra, Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, MDCCXIII (1713), p. 301.
[17] Arquivo da Universidade de Coimbra (Disponível em: <http://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=182460>. Acesso em 03/01/2016).
[18] Arquivo da Torre do Tombo, Portugal (disponível em: <http://digitarq.arquivos.pt/details?id=1917095>. Acesso em 16/11/2015, às 12h55min).
[19] STUDART, Guilherme (Barão de), op. cit., p. 53.
[20] ARQUIVO HITÓRICO ULTRAMARINO, CONSELHO ULTRAMARINO, BRASIL − CEARÁ, 1753, agosto, 8, Minas de São José dos Cariris Novos: CARTA do [capitão comandante e intendente das minas dos Cariris Novos], Jerônimo Mendes da Paz, ao governador de Pernambuco, Luís José Correia de Sá, sobre as minas de São José dos Cariris. AHU-CEARÁ, cx. 5, doc. 39. AHU_ACL_CU_006, Cx. 6. DOC. 368.
[21] ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, CONSELHO ULTRAMARINO, BRASIL – CEARÁ, 1754, março, 20, Minas de São José dos Cariris Novos: CERTIDÃO do intendente e do fiscal da Casa de Intendência e Arrecadação dos quintos reais das minas de São José dos Cariris Novos, Jerônimo Mendes da Paz e Manuel de São João Madeira, atestando que o padre Gonçalo Coelho, cura da freguesia de N. Sra. Da Luz, pagou os quintos que lhe competia. CTA: AHU-PIAUÍ, cx. 4, doc. 18. CT: AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 386.
[22] ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, CONSELHO ULTRAMARINO, BRASIL – PERNAMBUCO, 1759, janeiro, 21, Cariris Novos: OFÍCIO do comandante e intendente das Minas dos Cariris Novos, Jerônimo Mendes Paz, ao [secretário de Estado Marinha e Ultramar] Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a execução do fechamento das minas. Anexo: 05 docs. Obs.: m. est. AHU_ACL_CU_015, Cx. 88, D. 7149. fl. 03.
[23] STUDART, op. cit., p. 117. Ver também: PINHEIRO, Irineu, Efemérides do Cariri, Fortaleza – CE, Imprensa Universitária, 1963, p. 41.
[24] ALENCAR, Odálio Cardoso de, Origens do Cariri (1ª Parte), 1ª Edição, Fortaleza - Ceará, 1988, p. 21 e 22.
[25] Ibidem, p. 45. É aparentemente contraditório falar na escassez de advogados no Cariri e, ao mesmo tempo, apontar que alguém pudesse ser assistido por seis advogados, concomitantemente. No entanto, isto deve ser visto com cautela, pois, aos ricos, era perfeitamente possível trazer advogados de outras paragens. Além disso, a escassez de que falamos refere-se ao lugar de residência/domicílio dos advogados bacharéis em Direito.
[26] PINHEIRO, Irineu, O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes, fac-símile da Edição de 1950, Fortaleza, Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 210.
[27]  O genealogista Francisco Augusto afirma que o dr. Manuel de São João Madeira veio a casar-se com sua companheira Isabel Francisca, legitimando os filhos do casal: “O Doutor, Advogado Manoel de São João Madeira viveu com Isabel Francisca, solteira, natural da Vila da Cachoeira, Bahia, depois casou-se, legitimando os filhos havidos antes do matrimônio, conforme norma da Igreja Católica Apostólica e Romana” (LIMA, op. cit., p. 1796). Esta afirmação estribou-se em dois assentamentos de batismo em que o dr. Madeira fora padrinho de duas crianças, isto nos anos de 1760 e 1761. Porém, este argumento é frágil, pois nos dois assentamentos transcritos neste trabalho há indícios categóricos de não haver laço matrimonial entre o dr. Madeira e Izabel Francisca, pelo menos até o ano de 1769: isto porque no documento relativo ao casamento da filha do dr. Madeira, Luíza Maria da Piedade, em 1768, ela é tratada como filha “natural” e sua mãe é qualificada como “solteira”; já no outro documento, com data de 1769, referente ao batismo de Florêncio, neto do dr. Madeira, os mesmos termos se repetem.
[28] Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: Feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide, Brasília, Edições do Senado Federal, Brasília, 2011, p. 339.
[29] MACÊDO, Joaryvar, Povoamento e Povoadores do Cariri Cearense, Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1985, p. 96.
[30] PIERANGELLI, José Henrique, Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica, Bauru - São Paulo, Editora Jalovi LTDA, 1980, p. 20 a 23.
[31] PINHEIRO, Irineu, Efemérides do Cariri, op. cit., p. 96.
[32] A área dominada pelos cabras de Pinto Madeira ultrapassava os limites do Cariri, atingindo a Paraíba (BRÍGIDO, João, Ceará: Homens e Fatos, op. cit., p. 59).
[33] O Sítio Correntinho, em Crato/CE, ainda hoje conserva o mesmo nome, estando localizado ao sopé da Chapada do Araripe, na divisa com o município de Nova Olinda/CE.
[34] NOGUEIRA, Paulino, Execuções: Penas de Morte no Ceará (Parte II), In Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, Ano VIII, 1894, p. 176 a 180.
[35] PINHEIRO, Irineu, Efemérides do Cariri, op. cit., p. 112.
[36] NOGUEIRA, op. cit., p. 195.
[37] Ibidem, p. 209.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Massacre aos Índios Xocó no Cariri Cearense: Documento Inédito

Massacre aos Índios Xocó no Cariri Cearense: Documento Inédito
                 
                                                                                          Heitor Feitosa Macêdo
        
         Até hoje, pouco se conhece sobre a presença dos índios Xocó na Região supedânea da Chapada do Araripe, que divisa o Sul do Estado do Ceará com Pernambuco, Paraíba e Piauí. É por esta razão que, no presente artigo, pretendo colaborar com um pequeno suporte documental que trata de um massacre feito contra tais índios no ano de 1867, a fim de que outros estudiosos possam aprofundar suas pesquisas acerca do assunto.   
Representação de um índio do grupo "tapuia", que incluía os
Xocó (Obra do holandês Albert Eckhout: "Homem Tapuia", séc. XVII) 

           Na segunda metade do ano de 2014, quando tomei chegada no Instituto Cultural do Cariri (ICC), com sede no Crato/CE, o biólogo Weber Girão, à época, vice-presidente desse pomposo sodalício, me apresentou uma pasta repleta de documentos manuscritos, a maioria datada do século XIX. Até aquele instante, não conhecíamos a importância do conteúdo daquele cartapácio.
         A curiosidade me dominou a ponto de assumir o compromisso de realizar a leitura do dito alfarrábio, composto por 93 páginas de uma caligrafia nem sempre muito convidativa. Há pouco nos conhecíamos, mas, mesmo assim, Weber Girão me entregou a pasta com as folhas centenárias. Penso que não tínhamos outra alternativa, pois o ICC é uma instituição que vive à mendicância, sem nenhum recurso público, a depender de parcas contribuições de alguns modestos sócios e do aluguel de parte das salas do prédio de sua sede.
         Então, foi assim que me detive por mais ou menos duas semanas sobre tais escritos, tentando ser fiel à leitura paleográfica (paleo = antigo, grafia = escrita) dos manuscritos que me foram confiados. Algumas folhas muito deterioradas quase que se desmanchavam a toques delicados. Era necessário ter muito cuidado para não piorar o péssimo estado de conservação do material.
         Durante a penosa leitura, encontrei informações preciosíssimas para a História do Cariri cearense. Desde cartas-patentes a correspondências dos confederados de 1824. Cada informação me compelia mais e mais à decifração de abreviaturas; de letras quase apagadas; de latinismos a torto e a direito; do português arcaico, tão genuíno e agradável aos ouvidos do homem gramaticalmente moderno.
         Das várias informações obtidas, julgo que uma das mais importantes esteja relacionada ao documento referente a um auto processual de 1867, no qual apura-se um crime cometido contra os índios Xocó, “aldeados” na Serra da Cachorra Morta, na então Vila de Milagres/CE.
         Mas, antes de adentrar o mérito principal da questão, temos que fazer uma breve explanação sobre a história dos Xocó na Região do Cariri cearense, antigamente denominado de Cariris Novos.
         O termo “xocó” é de origem indígena, tendo como variante a palavra “socó”, que designa uma ave bastante comum no Cariri, aliás, em todo o Brasil, e que habita rios, lagoas, brejos e pântanos. A origem do vocábulo vem de Côo-có = çoó (bicho), e (manter, apoiar, arrumar), ou seja, “o bicho que se arrima”, pelo fato de essas aves se apoiarem numa só perna. Mas deve ser ressaltado que, no Cariri, existe mais de uma espécie de ave com essa denominação, pois há, além do simples “socó”, o “socó-boi”, ou seja, o socó-cobra, pois “boi”, neste caso, também é de origem indígena (mboi = cobra).
         Mas quais são as informações mais antigas sobre a origem e a presença desta “tribo” nas imediações do Cariri cearense?
         No ano de 1802, o capuchinho italiano frei Vital de Frescarolo entrou em contato com o resto de quatro diferentes nações bárbaras dos sertões de Pernambuco e Ceará: os Pipipão, Umão, Vouê e Xocó, relatando o reduzido número de seus membros bem como as violências que vinham sofrendo por parte dos latifundiários, criadores de gado:

(...) foi servido encarregar-me da importante diligencia de pacifical-os, instruil-os, baptizal-os e aldeal os, até pôl-os no caminho do céu, e ao serviço do rei (...). Aos 7 de Julho sahi de Pernambuco, e aos 31 do dito cheguei na capela de Jeritacó, ribeira do Moxotó, e no primeiro de Agosto, que era o dia de Sant’Anna, depois de ter celebrado a santa missa, lá vierão dous dos ditos gentios a ter fala comigo, porque já estavão notificados pelos moradores da dita ribeira; com muito agrado os recebi, e perguntando eu por toda a sua gente, responderão, que estavão todos juntos no mato, esperando por mim, mas que não sahião n’essa ribeira por medo da muita gente que lá havia, e que só indo eu ao logar chamado Jacaré, por ser este logar muito retirado, sem falta todos lá sahirião; e por eu saber que esta é uma gente muito desconfiada, e só com paciência, prudência e caridade se vence, lhe fiz a vontade, e com todo rigor da seca e da fome, do melhor modo que pude, aos 12 de Agosto, ao sol posto, cheguei n’este logar Jacaré, sem achar gentio nenhum; e aos 13, ás 5 horas da tarde, é que aparecerão 4 correios dos ditos gentios, e um d’elles era o seu capataz; e chegando, como sinal de respeito e de entrega, logo encostarão seus arcos e frexas ao meu pobre ranxo.Com agrado e alegria os recebi, e perguntando eu aonde estava a sua gente, respondeu o lingua e capataz, que a gente vinha muito devagar em razão da fome, dos velhos e dos meninos, mas que amanhan, até depois, sem falta estavão todos n’este logar. Com efeito aos 15, dia da gloriozissima Assumpção de Maria Santissima ao céu, ás 4 horas da tarde, é que tive o inexplicável contentamento de ver-me cercado, e ter na minha prezença 114 gentios brabos, que é o numero total d’elles, entre maxos e fêmeas, grandes e pequenos. Uns tantos d’elles mostravão no semblante que nenhum medo tinhão; mas uns tremião de modo que não posso explicar, e principalmente as mulheres; porém assim mesmo uns tantos encostárão os arcos ao meu ranxo, e outros m’os derão para guardar (...) e por fim lhes dei a benção com o Santo Cristo, e os mandei arranxar no mato. No dia seguinte os chamei todos á minha prezença, e por meio de 10 linguas, que tem todo este ranxo de vermelhos, principiei a explicar-lhes qual era a cauza da minha vinda a estas brenhas: que era mandado de Deus, do rei e do governo para elles se aldearem, baptizar, instruir na fé católica, servir ao rei e nunca mais viver como bixo no mato, mas sim como christãos em aldeia para se salvarem. A isto responderão todos que este sempre foi o seu dezejo, mas que tinhão medo dos brancos, e que esta não fosse falsidade minha, como já foi aquella do riaxo do Navio, do Brejo do Gama e outras, que dice a V. Ex. Revma o anno passado, quando aldeei os indios brabos do Olho d’agua da Gameleira, na freguezia do Cabrobó, que debaixo da capa de paz e da santa missa fizerão d’estes mizeraveis tão horrenda carnagem de prender, atirar, xumbar, acutilar, espancar, matar e picar, como si não fossem gente da mesma especie como nós.

            Três décadas depois, em 1838, chega aos Cariris Novos o naturalista George Gardner, onde encontrou “índios não civilizados”, isto é, que ainda conservavam os antigos costumes étnicos por não terem sofrido influência da cultura europeia:

Há duas pequenas tribos de índios não civilizados no distrito de Barra do Jardim; mas seu número vai diminuindo rapidamente. Uma das tribos, os huamães, com cerca de oitenta indivíduos, habita geralmente a umas sete léguas a sudoeste da vila. A outra, a dos xocós, em número de setenta mais ou menos, tem moradia habitual a cerca de treze léguas para o sul. Embora normalmente inofensivos por índole, tinham sido, pouco antes de minha visita, apanhados a roubar gado nas fazendas vizinhas. Aparecem às vezes na vila. Diz-se que têm hábitos pouco limpos e, na falta de melhor alimento, comem cascavéis e outras cobras.   
   
            A Barra do Jardim fica no atual município de Jardim, Sul do Estado do Ceará, na divisa com Pernambuco, ao sopé da Chapada do Araripe, no Cariri cearense. Ao que parece, este grupo de índios Xocó, apesar de nômade, migrava frequentemente para a região Araripana, em decorrência das condições climáticas favoráveis, e, neste itinerário errante, com o passar do tempo, diante do choque étnico com os “invasores europeus”, sofreu um processo de “sedentarização”.
         No ano de 1859 chegou ao Ceará a Comissão Científica de Exploração, enviada pelo Imperador D. Pedro II, com o propósito de estudar as Províncias do Norte do Brasil, termo que, à época, incluía a atual Região Nordeste. Os cientistas estavam agrupados em cinco seções (1- Botânica; 2- Geológica; 3- Zoológica; 4- Astronômica e Geográfica; 5- Etnográfica e Narrativa de Viagem).
         Na chefia da Comissão Etnográfica estava o poeta e cientista Gonçalves Dias que, cumprindo com sua tarefa, foi averiguar as informações acerca da existência de índios “não civilizados” na Serra do Salgadinho, conforme asseverou seu colega de viagem Capanema: “O Dr. Dias tinha quer ir ver os restos de uma tribo indígena ainda numerosa em 1848 e hoje quintada, que se acha na Serra do Salgadinho”. Contudo, suas expectativas não foram atendidas, pois disse o mesmo Capanema que os índios da província cearense já eram todos aculturados: “Após de mim adoeceu meu companheiro de viagem, Dr. Gonçalves Dias, que depois de restabelecido seguiu para o Maranhão em busca de indígenas puros, que não encontrava no Ceará”. 
         Estas são as principais notícias que se tem sobre os índios Xocó no Cariri cearense. Fora deste espaço, sabe-se que o referido grupo também existe nas margens do Rio de São Francisco, na Ilha de São Pedro (em Porto da Folha, atual Estado de Sergipe), onde tais indivíduos eram conhecidos por “Romaris”. Ocorre que neste lugar os Xocó também foram vítimas da usurpação de terras, pois, sob o pretexto de que a tribo havia sido extinta, a propriedade onde viviam passou a pertencer à “prefeitura de Porto da Folha”. Este discurso da extinção dos índios foi ladeado por uma ação perniciosa de violentas perseguições, a fim de suprimir oficialmente a existência da identidade Xocó. Isto resultou na fuga desses indivíduos para os aldeamentos de seus parentes, os Cariris, formando o grupo Cariri-Xocó.   
         É importante lembrar que a família de ascendência europeia mais antiga do Cariri, os Mendes Lobato, também veio de Porto da Folha, em Sergipe. Este fato enseja levantar a hipótese acerca da possibilidade de o curso migratório destes brasilíndios ter favorecido a invasão dos “brancos” nas imediações da Chapada do Araripe.
         O senso comum da populaça nega a presença de remanescentes indígenas no Cariri cearense, pois, pelo fato de estes terem sofrido miscigenação e por terem se aculturado, não são mais considerados “índios”. Por outro lado, pela falta de conhecimento de suas próprias origens, estes remanescentes não se autorreconhecem como sendo descendentes diretos dos primeiros habitantes das Américas.
         Ostentar nomes e sobrenomes cristãos; usar telefone celular e internet; falar em língua portuguesa; vestir-se com roupas convencionais; residir em casas de alvenaria com água encanada e luz elétrica são alguns dos principais sustentáculos para perpetuar o discurso da extinção dos índios no Sul do Ceará e, também, na maior parte do Brasil.
          No Cariri, o discurso histórico sobre a extinção completa dos povos indígenas sustenta-se no fato de os índios aldeados na então Missão do Miranda (em Crato), desde a década de 1740, terem sido transferidos em 1779, juntamente com os índios Jucá (da Missão de Arneiroz), para o litoral cearense, onde diferentes etnias foram alocadas caoticamente (tabajara, cariri, jucá, cariú, xocó, etc.).
         Não se pode negar que tenha havido o dito deslocamento, mas, mesmo assim, boa parte desses íncolas permaneceu no território caririense, sob variadas formas, as quais decorreram das fugas para as matas e serras, relativamente, próximas; da mestiçagem com negros e brancos; da integração à “sociedade civil”, transformando-se, geralmente, em rendeiros (“moradores”) e vaqueiros; bem como pela escravização, mesmo que em contrariedade às leis da época.
          É comum encontrar nos manuscritos referentes aos Cariris Novos, dos séculos XVIII e XIX, a indicação de indivíduos autóctones, pois, apesar de ostentarem nomes cristãos, são qualificados nos antigos textos como "cabras", "curibocas", "mamalucos" (mamelucos), "caboclos" (“caboculo”), etc.
         Apesar de não ser oficialmente aceito, é inconteste a atual presença dos povos indígenas no mosaico social caririense. Para comprovar esta afirmativa basta pesquisar nos núcleos de favelização da zona urbana a ancestralidade de seus habitantes, ou ir ao campo e fazer o mesmo em relação àqueles que praticam a agricultura de subsistência. Geralmente, encontrar-se-ão nos costados dessa gente indivíduos que eram “moradores” do coronel Fulano ou "vaqueiros" do coronel Beltrano. Esta é a mais pura atestação da absorção do "Povo kariri" à sociedade contemporânea!
         O “cronista” João Brígido dos Santos, certamente estribado no antigo conceito de que para ser índio era necessário preservar os costumes do tempo do descobrimento do Brasil, ou seja, andar de tanga e cocá, além de viver de caça e pesca, julga que a população indígena do Sul do Ceará era menor que na parte Norte:

É preciso não esquecer uma circunstância que dá ideia mais completa do movimento imigratório no sul do Ceará. A população de origem americana é menor ali do que no norte. Os índios foram quase exterminados nas regiões do Jaguaribe pelas guerras que tiveram entre si e principalmente pelas bárbaras e incessantes correrias dos capitães-mores de Entradas, enquanto que no norte a proteção dos jesuítas os tinha feito poupar.
Desenho que ilustrava o Jornal
"O Araripe" (1855-1865),
cujo redator era João Brígido.

            Adotando posição semelhante a de João Brígido, Joaryvar Macedo, ao mapear as origens dos “colonos” caririenses, afirma que os povos ameríndios pouco contribuíram para a atual formação étnica e social da referida região:

A corrente migratória do extremo sul do Ceará integrou-se, em maior parte ou menor contingente, de: a) baianos (...). Os escravos provinham, em maior número, da África Ocidental, particularmente da Costa da Mina e do Reino de Angola. Os do Brasil procediam, especialmente, do Rio São Francisco. Lembre-se que, para a formação étnica e social deste Cariri, verificou-se a contribuição ‒ não muito expressiva ‒ de indígenas.

            Diante disto, será razoável aceitar que a sociedade caririense é formada em maior parte por brancos e por negros africanos? Será que o autor foi influenciado pelo discurso da negação da presença do índio no Cariri, que, outrora, fora a principal ferramenta de legitimação ao esbulho das terras indígenas?
         Em 1719, no inventário da esposa do maior latifundiário da história do Cariri, o capitão Antônio Mendes Lobato, a descrição dos bens indica apenas um escravo africano na “extensa” relação de cativos, sendo que o restante deles compunha-se de índios "calabaças" e "cariús".
         Em 1838, o cientista inglês George Gardner descreveu a compleição étnica da Vila do Crato, destacando a numerosa mestiçagem com os povos indígenas, nos seguintes termos: “Toda a população da Vila chega a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou mestiços que deles descendem”.
         De passagem entre o Icó e Crato, outro cientista, desta vez o médico botânico Francisco Freire Alemão, se deparou com uma mulher “cabra” (índia) que era escrava. Também fala sobre a existência de muitas mulheres pardas e mamelucas no Juazeiro (do Norte). Igualmente, quando de sua estada no Crato, indicou haver mulheres “cabras ou mamelucas” bem como homens "cabras" vestindo camisa e ceroulas, etc.
         Mas, além dessas fontes, outras informações apontam haver possíveis remanescentes do primitivo Povo Kariri na atual sociedade caririense. No início do século XX, o médico Irineu Pinheiro registrou uma antiga tradição em torno do fumo e um hábito bem peculiar, o de limar os dentes, ambos, provavelmente, de origem autóctone.
         Pesquisas atuais suspeitam que ainda possam existir remanescentes dos Xocó em Milagres, como Dona Dionísia Severo, idosa com mais de 70 anos, que neste lugar reside e ainda pratica tradições herdadas do conhecimento indígena, como, por exemplo, o cultivo de ervas pertencentes à flora nativa.
           
O Conteúdo do Documento: Resumo

            Em meados do século XIX, os Xocó haviam sido aldeados na Serra da Cachorra Morta pelo major Manoel José de Sousa, que também exercia a função de diretor destes índios e, após sua morte, seu filho Manoel Fortunato de Sousa assumiu o dito cargo.
         Aldeados nesta serra, os Xocó viviam da agricultura, porém, suas lavouras estavam sendo invadidas por gados de alguns pecuaristas. Para resolver a situação, a administração da Vila de Milagres, através da criação de uma lei, estabeleceu multa para os criadores que não retirassem seus gados da Serra da Cachorra Morta. Todos os fazendeiros obedeceram a determinação, exceto José Inácio da Silva.
         Devido a sua contumácia, José Inácio foi multado pelo fiscal, no entanto, “apelou” para o juiz de direito e conseguiu a “absolvição” da multa, demonstrando que ele estava sendo favorecido por algumas autoridades. Assim, José Inácio continuou a criar seus gados na dita serra. Porém, os índios começaram a “maltratar” algumas rezes, causando o descontentamento do proprietário.
         Daí, José Inácio da Silva começou a arquitetar um plano para matar os índios e, assim, ficar na posse da terra criando seus gados. Nesse sentido, forjou uma ordem para que o delegado lhe entregasse uma “força” composta por 72 “praças”, o que fora feito na madrugada do dia 28 de abril de 1867. Desta forma, foi invadir a aldeia sem qualquer comunicação ao diretor dos índios, contrariando a disposição do Decreto Nº 426, de 24 de julho de 1845.
         Durante a invasão, a tropa violava as choupanas dos índios “cometendo toda a sorte” e “excessos nas famílias” dos índios (espancamento e estupros?). Todavia, não encontraram os chefes da tribo, com a exceção do índio Mariano, o qual foi amarrado e conduzido a um lugar próximo da aldeia, onde “se abarrancarão”, esperando que os demais viessem socorrê-lo. Como esperado, passados poucos minutos, quatro índios apareceram pedindo a soltura do Mariano. Nesse momento, os soldados abriram fogo contra os Xocó, resultando na morte de um dos índios e, em outros, ferimentos (graves e leves), havendo também a morte de um dos soldados, que fora atingido por “fogo amigo”, devido à inadequada posição do cerco.
         Ocorre que o “processo judicial” estava parado e, por conseguinte, o fato criminoso não estava sendo apurado devidamente, ficando os criminosos impunes, os quais, em suas defesas, pretextavam que haviam ido até a aldeia apenas para tomar as armas de caça dos índios.
         Diante do descaso, o Vice-Presidente da Província do Ceará exigiu que as autoridades competentes averiguassem com rigor o caso para que os culpados fossem punidos.  

O DOCUMENTO: PALEOGRAFIA REALIZADA POR HEITOR FEITOSA MACÊDO DOS MANUSCRITOS DO INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI – ICC (CRATO/CE, 25/08/2014)  


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Copia
Reservado = Juizo Municipal de Milagres em 20 de julho de 1867 = Ill.mo Ex.mo Senr̃ = Quando me achava fora desta Comarca no gozo de uma licença concedida por essa Presidencia, deo-se neste termo um grave conflicto no lugar Cachorra Morta entre os indios ali aldeiados e uma força comandada por José Ignacio da Silva, e a elle fornecida pello Deleg.do de Policia e Tem.te Coronel do Batalhão de infantaria deste Municipio Manoel de Jesus Conceição Cunha, do qual resultou haverem duas mortes e alguns ferimentos graves e leves. Esse facto já foi levado ao conhecimento de V.Ex.a pelo Diretor dos mesmos índios, e vi que V.Ex.a ordenara ao Senr̃ Doutor Chefe de Policia que mandasse instaurar um processo sem perda de tempo. O meu fim pois é scientificar a V.Ex.a, que não me tem sido possível ainda tomar conhecimento desse deploravel facto criminoso, por que q.do assumi ao exercício das funções de meu cargo já tinha um Delegado deste termo tomado a iniciativa desse facto e instaurado um processo que constou-me ter sido com vistas ao Promotor Publico, mas que até o presente ainda não subio á minha audiência, e pelo que me acho inhibido de tomar a iniciativa desse facto criminoso, aguardando-me porem para proceder a respeito as diligencias que as
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Leis me autorizao quando me for presente dito processo. E é tal o patronato que tem apparecido aos verdadeiros criminosos, que o tal processo se acha [abafado], e por tanto paralisado a acção da justiça. Reclamo por tanto de V.Ex.a providencias no sentido de prosseguir o Delegado de Policia nos devidos termos desse sumario crime, afim de que possa eu tomar conhecimento de tão bárbaro e premeditado crime, de modos que não fiquem empunes seos verdadeiros autores. É tal empenho com que se procura ocultar a verdade deste facto criminoso e os [méis?] empregados afim de que não possa eu tomar a iniciativa ou mesmo conhecimento desse processo, que até o proprio Doutor Juiz de Direito desta Comarca Americo Militão de Freitas Guimarães, de quem se devia esperar imparcialidade que so por lhe constar que eu procurava [sejudicar] e informar-me desse facto, apressou-se em dirigir-me o officio, que por copia junto verá V.Ex.a. = Ex.mo Senr̃, o lamentável acontecido do dia 28 de abril do corrente anno na aldeia dos índios Cachorra-morta deste Termo, foi um crime premeditado. Pretendeo-se exterminar a esses infelizes, e leveou-se a effeito seos tenebrosos planos. = Aldeiados e catequisados esses índios na Serra denominada Cachorra-morta pelo finado Major Manoel José de Souza foi pelo Governo Imperial nomeado director
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dos mesmos, e depois de sua morte foi nomeado seo filho Manoel Fortunato de Souza, actual director. = A Serra denominada Cachorra-morta sendo composta de terrenos proprios para a agricultura, era todavia invadida e muito [combatida?] de gados, que nella criavão muitos fazendeiros, de modo que não podia prosperar ali a agricultura. Nestas circunstancias a Comarca Municipal desta Villa impôs, sob pena de multa, aos fasendeiros a retirada de seos gados da serra, todos os creadores respeitarão as desposições Municipais, retirarão seos gados, a excepção de José Ignacio da Silva que, menospresando a lei Municipal, não quis retirar seos gados. = Por essa sua obstinação já lhe foi imposta pelo Fiscal em correição a multa respectiva, que não querendo sujeitar-se, e sendo processado apellara para o Doutor Juiz de Direito, e este o absolvera da multa. Já então contava José Ignacio com a benevolência de certas autoridades com menospreso da lei e em prejuizo dos índios e da lavoura da serra Cachorra-morta. José Ignacio continuou a crear seos gados na serra e estes dannificando a lavoura dos indios, aconteceo por vezes que os indios maltratassem algumas rezes daquelle e dahi a rixa e entriga de José Ignacio contra os pobres indios. = Era preciso extinguil-os, e reduzir a cinzas essa pequena
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aldeia, afim de que José Ignacio podesse continuar a criar seos gados na serra. = José Ignacio vem a esta Villa, combina-se aqui tenebroso plano de extermínio desses infelizes; o Ten.te Coronel e Delegado de Policia Conceição Cunha fornesse a José Ignacio uma força de setenta e duas praças, contra a disposição de lei, finge-se uma ordem do Subdelegado do distrito do Coité José Leite Furtado á José Ignacio inimigo dos indios, entrega-se esta força e na madrugada do dia 28 de abril José Ignacio envade com ella a aldeia dos índios e sem previa sciencia e consenso de seo Director tudo contrario as desposições da lei/ Decreto Nº 426 de 24 de julho de 1845 e os principios de humanidade; e ao passo que eSsa força evadindo e violando as choupanas desses infelizes iaô cometendo toda a sorte excessos nas famílias dos mesmos e não tendo encontrado aos chefes dessas familias a excepção do indio Mariano a este mesmo prenderão, e amarrarão e o condusirão para um lugar proximo da aldeia, onde se abarrancarão, esperando sem duvida seos infelizes companheiros, victimas de suas innocencias e lealdades a seos irmãos. O plano não falhou e de feito d’ahi a poucos minutos ex que se apresentão quatro indios pedindo a soltura de seo companheiro, a cuja resposta, postos de baixo do cerco, forão
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espingardeados, do que resultou a morte de um indio e ferimentos graves e leves em outros, e tambem a morte de um soldado, victima não dos indios, mas das balas de seos proprios companheiros, segundo a posição do cerco que as balas de um iam ofender a outros, tanto aSsim que a infeliz victima [indigitrava?] antes de morrer o soldado seo proprio companheiro que lhe havia dado a morte. São estas pois Ex.mo Senr̃, as informações que tenho colhido desse facto criminoso e que posso ministral-as a V.Ex.a = Não querendo por em duvida a imparcialidade e exactidão das informações que me consta estar tomando o Doutor Juiz de Direito desta Comarca acerca desse deploravel acontecido, toda via sendo ellas dadas, segundo me consta pelo proprio José Ignacio e pellas autoridades culpozas jamais poderão attingir ao fim desejado, isto é, a punição dos verdadeiros criminozos. = É sob’ maneira frívolo o pretesto de que se valem os autores desse crime, isto é, de que esta força ia em procura de designados ou tomar armas dos indios, por quanto nenhum designado ali havia que fosse conhecido, e quanto as armas [esse] infelizes as tinhão é verdade mas somente armas finas próprias de caçar de que fazem esses infelizes profissão e parte de sua alimentação. = Não se diga tambem
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Que o Director dos mesmos não cumpria com o seo dever acerca da catequisação e civelisação desses indios, por quanto é muito sabido a ascendencia, zelo e interesse que tem para com os mesmos e ninguém ainda reclamou pela falta de policia dos mesmos que se tenha em portado com boa conduta e apllicado a seos trabalhos de agricultura. Digne-se pois V.Ex.a de aceitar ao menos como subsidiaria estas minhas informações que só tem por fim o descobrimento da verdade desse facto criminoso e que em abono da justiça deseja vel-os punidos. Aguardo pois a tal respeito as ordens de V.Ex.a = Deos Guarde a V.Ex.a = Ill.mo Ex.mo Senr̃ D.or Sebastião Gonsalves da S.a M. D. Vice Presidente da Provincia. O Juiz Municipal - Antonio Lopes da Silva Barros =
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Copia
Juizo de Direito da Comarca do Jardim 18 de Julho de 1867. = Ill.mo Seńr. = Constando-me que por esse juizo Municipal se vai tomar conhecimento dos deploráveis acontecimentos que se deram em Cachorra-morta deste Termo no dia 28 de Abril deste anno; tenho por conveniente remeter-lhe incluzas para seo conhecimento e governo copias do officio do Ex.mo Vice Presidente desta Provincia, dirigido ao Doutor Chefe de Polícia; e o deste a mim tambem dirigido, relativos a esses mesmos acontecimentos, devendo previnil-o que ja tenho procedido, e continuo a proceder a sindicancia recommendada = Deos Guarde a V.S.a Ill.mo S.r Dr Antonio Lopes da Silva Barros = Juiz Municipal do Termo do Jardim e Milagres = O Juiz de Direito Americo Militão de Freitas Guim.es Conforme O Escrivão do Crime e Civel. Deonizio Eleitherio Bezerra de Menezes.
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