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domingo, 7 de maio de 2017

PARTE I: O Papel de Francisco Pereira Maia Guimarães na Revolução Pernambucana de 1817

PARTE I: O Papel de Francisco Pereira Maia Guimarães na Revolução Pernambucana de 1817
  
                                                                                              Heitor Feitosa Macêdo

         A Revolução Pernambucana de 1817 teve seu início no dia 6 de março de 1817, no Recife/PE, e, daí, foi alastrada para outras capitanias do Brasil, como PB, RN, AL e CE, sendo que esta última contou com a participação de um indivíduo chamado Francisco Pereira Maia Guimarães, sobre o qual os historiadores, até o presente momento, esqueceram-se de dedicar-lhe uma pesquisa mais detalhada.
         Os livros citam breves passagens acerca da participação de Francisco Pereira Maia Guimarães nos fatos de 1817, mas não aprofundam nem sistematizam as informações. Por esta razão, é comum haver equívoco sobre o assunto, como, por exemplo, quando confunde-se Francisco Pereira Maia Guimarães com seu filho, José Francisco Pereira Maia (o “Coronel Mainha”), ou quando afirma-se que aquele teria nascido em Portugal e não na Colônia brasileira.
         São informações, aparentemente, insignificantes, mas que, uma vez reveladas, podem justificar as ações desse indivíduo no contexto de 1817.

1. A Origem do Revolucionário Francisco Pereira Maia Guimarães
1.2. Nacionalidade e Naturalidade: Documento Inédito

            Saber a nacionalidade e naturalidade de Francisco Pereira Maia Guimarães, será muito útil na análise de sua participação na Revolução Pernambucana de 1817. Todavia, antes disso, apresentaremos as contradições dos autores referentes ao tema.
         Uma das testemunhas oculares da Revolução de 1817, o padre Joaquim Dias Martins, publicou a obra Os Mártires Pernambucanos, em 1853, cujos manuscritos datam de 1823,[1] ou seja, foram elaborados ao longo de 6 (seis) anos após a Revolução de 1817. Importa dizer que nas afirmações do padre Martins consta que Francisco Pereira Maia Guimarães era natural da Capitania do Ceará:

Guimarães único (Francisco Pereira Maia) cearense de 1817; era morador na villa do Crato, no Ceará, onde exercia com applauso publico a profissão de advogado quando chegou áquella villa o illustrissimo emissario ‒ Alencar 2º ‒ a quem se unio fogosamente na causa da Liberdade: seo enthusiamo fez-se tão notável que, apenas se lavrou na camara o auto da Liberdade, que elle mesmo dictou, foi unanimemente aclamado commandante militar da villa, onde tudo começou a marchar na melhor ordem no sentido da Liberdade: mas a perfidia do brutal Capitão Mor José Pereira Filgueiras fez que tudo abortasse, ficando Guimarães preso, e sendo remettido em grilhões ao furioso Governador Sampaio, o qual, depois de tê-lo vilmente insultado, o remetteo á Alçada de Pernambuco: esta o mandou sepultar nos carceres da Bahia, onde esperou a redempção geral das côrtes de Lisboa, em 1821.[2]

            Ocorre que esta indicação, quanto ao lugar de nascimento de Francisco, não era a mais exata! Os “cronistas” da segunda metade do século XIX, como Pedro Thebérge e João Brígido, ou melhor, os primeiros “historiadores” do Cariri cearense, citam em suas narrativas Francisco Pereira Maia Guimarães, porém, indicam Portugal como sendo o berço deste revolucionário de 1817.[3] Isto não foi sem razão, pois, provavelmente, João Brígido, na época em que residia no Crato/CE, deve ter consultado os antigos livros paroquiais, nos quais encontram-se os registros (assentamentos de batismo) dos cinco filhos de Francisco Pereira Maia Guimarães: José Francisco Pereira Maia (Coronel Mainha), Antônia, Manoel, Francisco e Joaquina.
         É justamente no registro de batismo do seu filho primogênito que se atribui a Francisco Pereira Maia Guimarães a nacionalidade portuguesa, como sendo natural de Guimarães:

Joze filho legítimo de Francisco Pereira Maia Guimarães e de D. Maria Izabel da Penha, neto paterno de José Pereira Maia Guimarães natural de Guimarães e de D. Antonia Joana Cedrin natural de Maçarelos e da parte materna de Manoel Ferreira Lima ja defunto natural de Sam Mateus e Dona Izabel Maria da Franca, natural desta freguezia nasceo a 8 de Maio de 1803 e foi batizado a vinte sinco de Maio de mil oitocentos e quatro com os santos oleos foi batizado por mim e foram padrinhos Domingos Pedroso Batista por procuraçaỏ do Padre Joze Duarte Cedrim  e Dona Tereza de Jezus Batista do que para contar mandei fazer este asento em que me asigno, O Coadjutor Pedro Ribeiro da Silva.[4]

            Ora, quem ousaria duvidar de um documento oficial?
         Foi por esta razão que vários pesquisadores afirmaram abertamente que Francisco seria português. Entre estes grandes estudiosos, estão Padre Antônio Gomes,[5] Irineu Pinheiro,[6] Lourival Maia,[7] Monsenhor Montenegro,[8] etc.
         Em publicações recentes, os pesquisadores contemporâneos, alicerçados nesta fonte documental e na vasta bibliografia, continuam sustentando que Francisco Pereira maia Guimarães é filho de Portugal.
         Em um trabalho de nossa autoria, “Sertões do Nordeste: Inamuns e Cariris Novos (Volume I)”, consignamos que Francisco era português, arriscando a tese de que seu retorno a Portugal teria sido motivado pelo acirramento da lusofobia no Brasil em meados da 1822, época da Independência.[9]
         Em outro trabalho, lançado mais recentemente, o qual arrola 1976 nomes de portugueses que migraram para o Ceará, de autoria de Francisco Augusto de Araújo Lima, contempla-se a mesma coisa, ou seja, diz-se que Francisco Pereira Maia Guimarães vagiu nas plagas lusitanas de além-mar:

Francisco Pereira maia Guimarães nasceu na Freguesia de N. Senhora da Boa Viagem de Massarelos, Porto, filho de José Pereira Maia, de Guimarães, Braga, e de Antônia Joana Cedrim, da Freguesia de Massarelos, Porto. Naturalidade não documentada, pode ser natural da Freguesia de São Vicente de Mascotelos, Guimarães. No termo de batismo de seu filho José, consta Maçarelos por Massarelos, Porto.[10]
           
        Contudo, este derradeiro autor teve a felicidade de indicar dados desconhecidos sobre um documento inédito que trata do assunto e que está disponível num site português, no digitarq, da Torre do Tombo. 
             Inicialmente, tivemos dificuldade em encontrar o arquivo digital!
        Daí, de posse dessa informação dada pelo genealogista Francisco Augusto, entramos em contato com a professora mineira Maria Cecília Santos Carvalho, que nos indicou o endereço eletrônico onde o arquivo estava disponível.
         Ao realizar a leitura paleográfica do manuscrito, em meados do mês de fevereiro de 2017, constatamos (eu e a professora Cecília) que Francisco Pereira Maia Guimarães não havia nascido em Portugal e que, também, não havia nascido no Ceará. Na verdade, este indivíduo era pernambucano, por ter vagido em Recife, no ano de 1782, conforme o seu assentamento de batismo:
Diz Francisco natural da Villa do R.e e morador em Maçarelos Bispado do Porto f.o Leg.o de Joze Pereira da Maya Guim.es e de sua m.er D. Antonia Joanna Cedrim q´ faz a bem de sua justiça q´ o Rd.o Vigario do R.e lhe paçe p.r Cert.tam o thior do Seo Batismo p.to
Pa o M.to Rd.o Snr. D.or Vigario Geral Seja Serv.o md.r paçar a d.a Cer.tam em forma q´ faço fé
E R M.ce
Antonio Jacome Bezerra, Parocho Encómendado na Parochia [e] Igreja de Saó Fr Pedro Glz´ da Villa do Recife. Certifico que revendo os Livros dos assentos dos baptizados da p.te do R.e no L.o doze afls trezentas, e trinta e huma v.o achei o d.o assento na forma, e theor seguinte. =  Aos doze dias do mes de Junho do anno mil Sette centos oitenta e dous nesta Matris do Corpo Santo  de minha Licença baptizou, e pos os S.tos Oleos o Padre Ignacio Francisco dos Santos em Francisco branco nascido aos dezanove dias do mes de Mayo do d.o anno filho Legitimo de Joze Pereira da Maya, natural da freguezia da Ribr.a conselho de Monte Longo, Arcebispado de Braga, e de sua mulher Antonnia Joana Sedrim natural de Maçarelos, Bispado do Porto, neto pella parte paterna de Joze Pereira natural de Pombeyro, e de sua mulher Mariana da Maya natural da dita freguezia da Ribr.a, e pella materna de Antonio Francisco de- [fl 29]
Sedrim natural de Sedrim, e de sua mulher Thereza Jozefa Palheiros, natural de Maçarelos. Foi padrinho Francisco Lopes Porto, cazado, moradores todos nesta freguezia, de que tudo mandei fazer este assento, que por verd.e assigney. E naó se tinha mais no d.o assento, ao qual me reporto, passa o referido na verd.e, conffirmo em fé do Parocho, e esta mandei fazer, na qual me assigney. Recife quatro de Mayo de mil sette centos oitenta e sete.
Antonio Jacome Bezerra
Vigario encomendado do R.e [fl. 20].[11]
Assentamento de batismo de Francisco Pereira Maia Guimarães 

Idem


            Portanto, Francisco Pereira Maia Guimarães havia nascido na Colônia do Brasil, na Capitania de Pernambuco, mais especificamente, na Vila do Recife, no dia 19/05/1782. Esse fato muda parte da micro-história caririense e, assim, ajuda a contextualizar sua ligação com a Revolução Pernambucana de 1817, posto que, por ser brasileiro, certamente compartilhava dos mesmos sentimentos dos demais pernambucanos, que estavam sendo oprimidos pela Metrópole portuguesa, alijados dos altos cargos públicos e explorados pela excessiva tributação.
         Cabe aqui esclarecer que a professora Cecília Carvalho tem a primazia nessa descoberta, pois foi a primeira a publicar tal alvíssara na internet, no dia 2 de março de 2017, conforme consta na sua página do facebook.[12]
 
Prova de que a professora Maria Cecília Santos Carvalho foi a primeira a publicar o conteúdo do documento até então inédito sobre a nacionalidade e naturalidade de Francisco Pereira Maia Guimarães (Fonte: facebook: disponível em: https://www.facebook.com/mariacecilia.santoscarvalho?fref=nf&pnref=story).



CONTINUA!




[1] BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça, O Patriotismo Constitucional: Pernambuco (1820-1822), São Paulo ‒ Recife, FAPESP, 2006, p. 155.
[2] MARTINS, Padre Joaquim Dias, Os Martires Pernambucanos: victimas da liberdade nas duas revoluções ensaiadas em 1710 e 1817, Pernambuco, Typ. de F. C. de Lemos e Silva, 1853, p. 216.
[3] Ao tratar do episódio da Revolução Pernambucana no Cariri cearense, disse João Brígido: “Após tantas provas de monarquismo, muitos dos expedicionários foram presos à sua volta do Rio do Peixe, entre eles o português Francisco Pereira Maia Guimarães...” (BRÍGIDO, João, Ceará: Homens e Fatos, Fortaleza - CE, Edições Demócrito Rocha, 2001, p. 135).
[4] Livro dos Assentamentos de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora da Penha, Crato, 1813-15, p. 29.
[5] ARAÚJO, Padre Antônio Gomes de, Povoamento do Cariri, Crato – Ceará, Faculdade de Filosofia do Crato, 1973, p. 118.
[6] PINHEIRO, Irineu, Um Baiano A Serviço do Ceará e do Brasil, In Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, Ano LXV, 1951, p. 16.
[7] Lima, Lourival Maia, Os Maia, Crato - Ceará, Fundação Casa das Crianças de Olinda, 1982.
[8] Montenegro, Padre F., As Quatro Sergipanas, Fortaleza, UFC, 1996, p. 90.
[9] MACÊDO, Heitor Feitosa, Sertões do Nordeste, Volume I, Crato – Ceará, A Província, 2015, p. 228.
[10] LIMA, Francisco Augusto de Araújo, Siará Grande: uma província portuguesa no Nordeste Oriental do Brasil, Volume II, Fortaleza – Ceará, Expressão Gráfica, 2016, p. 823.
[11] Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Portugal, disponível em: <http://digitarq.arquivos.pt/>. Acesso em 01/02/2017.
[12] Outros pesquisadores se arrogam como primeiros descobridores desta informação (Ver: http://www.familiascearenses.com.br/. Acesso em 07/05/2017, às 19hs50min), porém, a publicação da professora Maria Cecília Carvalho é anterior às demais.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

O QUE TEM A VER A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817 COM A REPÚBLICA DAS BANANAS E A MONARQUIA TUPINIQUIM

O QUE TEM A VER A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817 COM A REPÚBLICA DAS BANANAS E A MONARQUIA TUPINIQUIM

                                                                          Heitor Feitosa Macêdo

         Para entender a atual crise pela qual passa a República brasileira, o que não foi muito diferente com as Monarquias tupiniquins, é necessário lançar mão da Teoria do Estado e sua organização.
         Monarquia e República são classificadas como "Forma de Governo". A primeira caracteriza-se pela hereditariedade e vitaliciedade do Chefe de Estado no Poder. Já a segunda consiste na eleição periódica deste Chefe de Estado.
Bandeira do Brasil durante o Império de D. Pedro II.
         Será que o fato de o povo poder escolher o indivíduo que dirigirá o País é importante ou o sangue deve preponderar sobre a liberdade de escolha?
         Até aqui, não é o bastante para colocar a República ao lado do bem e a monarquia junto do mal, como sói acontecer, pois existem diferentes "Formas de Estado", implicando certa diversidade quanto à centralização de Poder, como, por exemplo, o Estado Unitário (que admite o estado Unitário Puro, o Estado Unitário Descentralizado Administrativamente e o Estado Unitário Descentralizado Administrativa e Politicamente) e a Federação.
         Além disso, é preciso lembrar dos "Sistemas de Governo" (Presidencialismo e Parlamentarismo) para saber se as funções de Chefe de Estado e de Chefe de Governo estão ou não centralizadas na mesma pessoa. Não existe uma forma única para a organização de todos os Estados do planeta e nada impede que estes elementos constitutivos sejam mesclados, permitindo certa hibridização.
         A História brasileira tem demonstrado que tais paradigmas são falíveis, afinal, são criações humanas! Diante disto cabe indagar mais uma vez, quem deve deter o Poder Estatal: o povo; um único homem; ou o exercício deste poder deve estar adstrito a um número reduzido de pessoas? Estas são questões debatidas desde o engatinhar da Humanidade e que, ao longo da história, estão quase sempre sendo intercaladas ciclicamente (democracia, monarquia, oligarquia, plutocracia, aristocracia, sofocracia, etc.).
         Por este ensejo, cabe falar um pouco mais da democracia, símbolo maior da liberdade nos dias atuais, pelo menos no Ocidente! Mesmo sendo considerada a fórmula genérica para os problemas políticos humanos, guarda significativas variações, pois pode ser direta, representativa e, ainda, semidireta.
         Por certo, o homem não foi capaz de conceber um modelo político-administrativo que agradasse a gregos e troianos, pois a cada ideia implantada surge uma nova maneira de corromper esse sistema. Diante de todas essas nuanças é difícil falar em "liberdade", pois seu conceito admite variadas interpretações. Porém, não pode ser negado que a Revolução Pernambucana de 1817 fez penetrar, até mesmo nos mais toscos e ignorantes habitantes do Brasil, a indagação do que era ser livre, do que era ser igual, pois são sensações que independem de conhecimento científico e polimento acadêmico. Liberdade e igualdade são sentimentos instintivos! Vários trechos documentais sobre a Revolução de 1817 provam isso! O primeiro refere-se à interpretação que os índios, negros e mestiços deram à ideia de igualdade depois de deflagrada a Revolução em Recife: "Os cabras, mulatos, e criolos andavam tão atrevidos que diziam éramos todos iguais, e não haviam de casar, senão brancas, das melhores".
         Mas não foi só isso! As ideias revolucionárias também agradaram aos índios e mestiços do interior, do sertão, no que diz respeito à propriedade privada, conforme relatou o Governador do CE: "Foi neste momento que o Ouvidor Carvalho se lembrou de proclamar o principio totalmente subversivo da ordem social, a saber: - que todos os bens são comuns. - Este principio, que jamais deixa de estar arraigado no espirito de todos os indios, ainda os mais civilizados, e que agrada por extremo á todas as castas de misturados, que constitue a maior parte dos habitantes deste sertão...".

         Desta forma, o homem cria maneiras para governar o povo, mas, como sempre, uma minoria corrompe estas formas cerceando a liberdade da maioria, a qual se rebela numa busca constante, a fim de reaver este elemento que lhe é tão natural quanto o ato de comer, beber e respirar.

domingo, 30 de abril de 2017

AS DUAS OBRAS MAIS ANTIGAS SOBRE A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817

AS DUAS OBRAS MAIS ANTIGAS SOBRE A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817
        
                                                                     Heitor Feitosa Macêdo

         A Revolução Pernambucana de 1817, ou Revolução dos Padres, foi um movimento separatista, desencadeado em Pernambuco e levado a outras capitanias, como PB, RN, AL e CE, sendo que as duas mais antigas obras sobre o movimento foram escritas por dois padres que testemunharam boa parte dos fatos.

Os Mártires Pernambucanos

         O padre Joaquim Dias Martins foi o autor de uma dessas duas obras sobre a Revolução Pernambucana de 1817, intitulando-a de “Os Mártires Pernambucanos”. A intenção do autor foi tecer breves biografias das pessoas que participaram do Guerra dos Mascates, ocorrida em 1710, e dos “patriotas” que se envolveram na Revolução Pernambucana de 1817. A junção é pertinente tendo em vista que o primeiro conflito serviu para justificar umas das causas que levaram ao segundo incidente. Nesta obra, o autor trata de alguns cearenses que estiveram envolvidos nos referidos conflitos.
         Os manuscritos relativos a esta obra do padre Martins, Os Mártires Pernambucanos, datam de 1823,[1] ou seja, foram elaborados ao longo de seis anos após a Revolução de 1817. Pela proximidade que tal narrativa guarda com os fatos, é provável que o autor tenha se baseado no testemunho ocular.

 Link para baixar o livro:

História da Revolução de Pernambuco em 1817

         A outra obra é de autoria do padre Francisco Muniz Tavares, o qual foi estudante do Seminário de Olinda e membro da Academia Paraíso em Recife, na então Capitania de Pernambuco. Como é sabido, também participou diretamente da Revolução Pernambucana de 1817, ao lado dos Patriotas. Com a derrocada da Revolução, foi preso no cárceres baianos, onde pode estudar sob a batuta dos irmãos Andrada, onde ganhou o apelido de o “Discípulo”. Depois de ser solto, no ano de 1821, o padre Muniz Tavares e embarcou em direção a Portugal para assumir o cargo de deputado nas Cortes Gerais.[2]
         Ocorre que, 23 anos depois da Revolução Pernambucana de 1817, em 1840, o padre Francisco Muniz Tavares publicou a obra “História da Revolução de Pernambuco em 1817”, sendo também leitura indispensável para aqueles que desejam conhecer um das mais belos episódios da História brasileira.

 Link para baixar o livro:
          





[1] BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça, O Patriotismo Constitucional: Pernambuco (1820-1822), São Paulo ‒ Recife, FAPESP, 2006, p. 155.
[2] CARVALHO, M. E. Gomes de, Os Deputados Brasileiros nas Cortes de 1821, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1979, p. 69.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Parte III: O Suposto Romance de Bárbara Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha

Parte III: O Suposto Romance de Bárbara Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha

                                                                     Heitor Feitosa Macêdo

Informações dadas ao inglês George Gardner

           
Bárbara de Alencar (pintura de Oscar Araripe)
O cientista inglês George Gardner esteve no Crato no ano de 1838, sendo ele médico e botânico, isto é, naturalista, penetrou as sendas dos interiores brasileiros à cata de novas espécies que deveriam compor os seus registros científicos. Como era de se esperar, na demora pelos lugares por onde passava, era-lhe possível fazer apreciações do povo que encontrava ao longo do seu itinerário, não escapando aos seus olhos alguns dos principais integrantes da família Alencar.
Inegavelmente, os habitantes do sertão não ficaram isentos às críticas de seu visitante, o qual, arrimado num discurso eurocêntrico, condenava tudo o que não lembrasse seu País de origem. Assim, sobre a Vila do Crato, falou Gardner:

Toda a população da Vila chega a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou mestiços que deles descendem. Os habitantes mais respeitáveis são brasileiros, em maioria negociantes; mas como ganharam a vida, as raças mais pobres é coisa que não entendo. Os habitantes desta parte da província, geralmente conhecidos pelo cognome de cariris, são famigerados no país por sua rebeldia às leis. Aqui foi, e até certo ponto ainda é, embora em menor extensão um esconderijo de assassinos e vagabundos de toda a espécie vindos de todos os cantos do país. Embora haja um juiz de paz, um juiz de direito e outros representantes da lei, seu poder é muito limitado e, ainda assim, quando o exercem, correm o risco de tombar sob a faca do assassino.  
   
            Não é de admirar que este britânico tenha sido um tanto leviano ao tratar do povo do Crato, pois, durante os cinco meses que residiu na pequena vila, fez poucos amigos, estabelecendo minguada intimidade com a população, como ele mesmo revela em sua obra: Vivi cinco meses no meio desta gente; mas em nenhuma outra parte do Brasil, mesmo durante mais curta residência, fiz menos amigos ou vivi em menos intimidade com os habitantes.
         Talvez essa antipatia entre ele e os cratenses tenha sido regada não só por sua condição de estrangeiro, europeu, mas também por sua religiosidade, posto que era protestante convicto. Logo, adentrar um espaço naqueles idos, habitado por gente miscigenada e extremamente católica, não era tarefa agradável.
Obra do inglês George Gardner.
         Segundo o escritor Pedro Jaime de Alencar Araripe, o inglês havia sido hóspede do Capitão João Gonçalves de Alencar, no entanto, isto parece possuir um certo exagero, pois, lendo a obra deste britânico, percebe-se que ele apenas havia visitado a casa deste filho de Bárbara, no Sítio Pau Seco (atual município de Juazeiro do Norte) e, mesmo assim, o fez para tratar da doença de olhos que acometia a esposa do referido capitão.
         O certo é que, convivendo com os moradores daquela pequena urbe, George Garner obteve a informação de que o vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha, era o progenitor de todos os filhos de Bárbara:

Raramente os homens da melhor classe social vivem com as esposas: poucos anos depois do casamento, separam-se delas, despedem-nas de casa e as substituem por mulheres moças que estão dispostas a suprir-lhes o lugar sem se prenderem pelos vínculos do matrimônio. Assim, sustentam duas casas. Entre outros que vivem nesta situação posso mencionar o juiz de direito, o juiz de órfãos e a maior parte dos comerciantes. Não é de admirar tal nível de moral, quando se leva em conta a conduta do clero. O vigário, então, um velho de setenta a oitenta anos, era pai de seis filhos naturais, um dos quais, educado para sacerdote, depois se tornou presidente da província e era então senador do Império, conquanto ainda conservasse seu título eclesiástico. Durante minha estada em Crato veio ele visitar o pai, trazendo consigo sua amante, que era sua prima, com oito filhos dos dez que ela lhe dera, tendo além disso cinco filhos de outra mulher, que falecera ao dar a luz ao sexto. Além do vigário, havia na vila mais três outros sacerdotes, todos com famílias de mulheres com quem conviviam abertamente, sendo uma das mulheres esposa de outro homem.

            Mas seria possível que o padre Saldanha fosse o pai de todos os filhos de Dona Bárbara Pereira de Alencar?
         Como ficou demonstrado, na ocasião do batismo do filho primogênito de Bárbara, João Gonçalves Pereira de Alencar, no dia 27 de janeiro de 1783, o padre Saldanha foi quem mandou registrar o assento deste sacramento no livro paroquial. Ao tempo, o padre Saldanha estava com 19 anos de idade, enquanto que Bárbara possuía 23 anos de vida. Não resta dúvida que, biologicamente, ambos possuíam idade apta a procriar.
         Um trineto de Bárbara Pereira de Alencar, José Carvalho, rebate essa afirmativa de Gardner com base na tradição oral emanada do seio de sua família, usando como argumento o fato de o capitão João Gonçalves Pereira de Alencar se parecer com o marido de Bárbara, José Gonçalves dos Santos, o Surubim Pintado:

Não posso deixar de, aqui, interromper o NOSSO bom Inglez. João Gonçalves, nunca foi considerado filho do vigário. Tanta parecença física tinha elle com o pae, o portuguez marido de D. Barbara, que a calumnia nunca o pôde attingir. O inglez ‒ é visível ‒ tanto nisto, no numero das mulheres e filhos de José Martiniano, estava olvidado ou fôra mal e perversamente informado. Não é de admirar que o fôsse por uma sociedade, como a que descreve com tintas tão carregadas; como, tambem, não é de estranhar o vilipendio atirado á honra da heroina que tão alta se elevava naquelle meio, como já notou João Brígido. É ainda deste mesmo chronista cearense, numa das cartas a que já aludi, a seguinte affirmação: ‒ <<FILHOS DE SURUBIM, PARA O PUBLICO DO CRATO, ERAM TODOS OS DE D. BARBARA, MENOS UM ‒ PADRE SENADOR>>. José Gonçalves dos Santos, marido de D. Barbara, tinha o apellido de SURUBIM-PINTADO “porque tinha o rosto sarapintado de botelhas”, no diser do mesmo chronista. 
   
            Provavelmente, os comentários sobre a vida amorosa de Dona Bárbara Pereira de Alencar continuavam sendo propagados abertamente na vila cratense, mesmo depois de sua morte, em 1832. Na época, difundir uma inverdade desta natureza poderia custar caro, ensejando conflitos sangrentos, pois a honra era um bem preciosíssimo e simples nódoas eram lavadas a sangue. Desta maneira, é desarrazoado que o inglês e quem lhe repassou tal informação quisessem se expor ao risco de sofrerem retaliações violentas, e se estas não ocorriam é sinal de que os “boatos” não causavam pecha, talvez por não serem de todo inverdadeiros!
      
Informações dadas por dois correligionários do Senador Alencar
           
            O padre Joaquim Dias Martins foi o autor de uma das mais antigas obras sobre a Revolução Pernambucana de 1817, com o título de “Os Mártires Pernambucanos”, na qual tece alguns comentários que indicam existir estreitos laços entre o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, Bárbara Pereira de Alencar e o senador José Martiniano de Alencar.
        
Obra do padre Joaquim Martins.
       Depois de escrevinhar longos elogios a Bárbara Pereira de Alencar, o padre Joaquim Dias Martins aponta que ela estava: “recolhida á sua casa a Providência lhe promette a mais feliz ancianidade: porque o vigario Miguel Carlos da Silva Saldanha – vid. Art. – continúa a ser o seo guia, mestre, e consolador...”. Dizer que o padre Saldanha continuava a ser o “guia, mestre e consolador” de Bárbara não prova o romance, porém, este dado não deve ser descartado, pois indica uma proximidade bem peculiar, que será complementada em páginas subsequentes da referida obra.
         Em outra passagem, o mesmo padre Joaquim Dias Martins, ao enaltecer o padre Saldanha, destaca que este:

...era morador no Crato, e ilustre vigario d’aquella extensa e preciosa parochia, condecorado com o habito de Christo. Suas parochiaes virtudes o tinhão feito respeitavel a todas as suas ovelhas: nada porém era comparavel á estima da ilustríssima ‒ Alencar 1º e seo filho Alencar 2º ‒ e de toda esta familia: a singular predilecção que tinha por este ultimo, o fazia, ver, ouir, e sentir pelos orgãos do afilhado, crendo sem hesitar, e abraçando firmemente quando elle lhe dictava, ainda mesmo sem o entender: felizmente o joven nunca abusou da sua ascendencia... .   
            Além de revelar a aguda simpatia que o padre Saldanha dedicava a José Martiniano de Alencar (Alencar 2º) e a mãe deste, Barbara Pereira de Alencar (Alencar 1º), o autor também revela outro indício importante ao expor que José Martiniano nunca “abusou da sua ascendência”, ou seja, dá a entender que o padre Saldanha estava entre os ascendentes (ancestrais) do senador Alencar.
         Mas como o padre Joaquim Dias Martins obteve estas informações?
         Os manuscritos relativos à obra do padre Martins, Os Mártires Pernambucanos, datam de 1823, ou seja, foram elaborados ao longo de seis anos após a Revolução de 1817. Pela proximidade que tal narrativa guarda com os fatos, é provável que o autor tenha se baseado no testemunho ocular dos participantes do dito movimento de 1817, o que inclui o próprio José Martiniano de Alencar, pois ambos eram correligionários, amigos e mantiveram relativa convivência, pelo menos é o que dá a entender no seguinte trecho sobre o padre Alencar, quando este retornava das Cortes de Portugal:

...já contámos os principaes sucessos da sua vida machinal nos dous precitados artigos: aqui sómente acrescentaremos o juizo que formámos, quando o vimos desembarcar em Pernambuco, em 1821, tão gordo, tão alegre e tão desenfadado: feliz homem! Dissemos: preso sem culpa, perseguido sem causa, martirizado sem gloria e restituido sem honra: confessamos, todavia, que o povo, em vista da causa, pensa de um modo mais rigoroso.   
  
Obra do padre Moniz Tavares.
            Outro colega de José Martiniano de Alencar era o padre Francisco Muniz Tavares (apelidado de “o Discípulo”), desde a época do Seminário de Olinda e da Academia Paraíso em Recife, na então Capitania de Pernambuco. Como é sabido, ambos participaram diretamente da Revolução Pernambucana de 1817, entrincheirados ao lado dos Patriotas. Com a derrocada da Revolução, foram eles presos nos cárceres baianos, onde puderam estudar sob a batuta dos irmãos Andrada. Ressalte-se que Dona Bárbara Pereira de Alencar também estava presa nas mesmas masmorras. Depois de serem soltos, no ano de 1821, os padres Muniz Tavares e Alencar embarcaram em direção a Portugal para assumir os cargos de deputados nas Cortes Gerais. Como é perceptível, o contato entre estes dois indivíduos foi bastante intenso.
         Ocorre que no ano de 1840 Francisco Muniz Tavares publicou a obra “História da Revolução de Pernambuco em 1817”. Tendo sido uma das testemunhas oculares do fato, Muniz Tavares inclui em sua narrativa o velho companheiro de lutas, não fazendo rodeios ao dizer que o então “subdiácono” José Martiniano de Alencar era filho do Vigário do Crato, o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha:

Munidos tambem de cartas de recomendação, puzerão-se todos dois em caminho. O theatro onde Alencar podia representar, era a sua villa natal; para ahi proseguio separando-se logo do seu companheiro, que ficou inerte na Fazenda do Padre Luiz José. Chegando á casa paterna, elle contou misteriosamente os factos das Provincias revoltadas exaltando-os, e valendo-se dos meios adequados para induzir o bom pai a favorece-lo no trabalho de cathechisar o temivel Capitão-Mor. Foi porém tudo em vão; a pusilanimidade excedia a predileção. Aquelle Parocho, que mal entendia o seu breviário, e não conhecia outro objecto de culto se não o seu Deus, e o seu Rei, tremeo ouvindo a narração, e pensando unicamente na salvação do filho, que já cria perdido, o supplicou a desistir da empresa.

            A respeito disto, Ruth Alencar tenta desqualificar o autor ao afirmar que ele “pertence à classe dos caluniadores que mentem patologicamente”, estribando seus argumentos em especulações pessoais ainda não comprovadas, como, por exemplo, uma possível inimizade política entre Muniz Tavares e o padre Saldanha, bem como no fato de Muniz Tavares ter se abeberado nos escritos do padre Francisco Gonçalves Martins, erroneamente considerado como “o primeiro e único caluniador de Bárbara de Alencar”.  
         Tendo em vista que Muniz Tavares e o senador Alencar foram colegas no Seminário de Olinda, sócios da Academia Paraíso, participantes da Revolução da Revolução Pernambucana de 1817 e deputados na mesma legislatura, nas Cortes Gerais de Portugal, em 1821, não resta dúvida que conviveram de perto, sendo crível que, por esta razão, conhecessem detalhes da vida privada um do outro.
         Fato bastante curioso é que a obra de Muniz Tavares veio à lume no ano de 1840 e, mesmo diante disto, o senador José Martiniano de Alencar, no auge de sua carreira política, não tenha rebatido as supostas “calúnias”. Pelo menos, não se conhece nenhum escrito de Alencar defendendo a si ou a própria mãe do crime que maculava as suas respectivas honras.   

O Testamento do Vigário Miguel Carlos da Silva Saldanha

Admitir que tenha acontecido o tal romance não causa estranheza, isto porque a História do Ceará está repleta de casos semelhantes, vários padres mantendo relações com mulheres e com elas formando proles extensas, das quais, muitas compõem boa parte das famílias tradicionais do Nordeste.
No começo do século XVIII, são feitas acusações contra o padre jesuíta Ascenso Gago, sendo ele pai de vários filhos gerados com as índias da aldeia da Serra da Ibiapaba. Além disso, ele também é acusado de ter, às custas do trabalho indígena, acumulado valores relevantes para servirem de dote a uma de suas filhas:

Representando-se mais pelos ditos moradores que toda a causa de se não mudar a dita aldeia da serra da Ibiapaba são os padres da companhia pela conveniência que nela tem, cuja aldeia só serve de ofensas de Deus, e de inquietações aos moradores circunvizinhos, causando nelas muito escândalo os padres Ascenso Gago e Manuel Poderoso com o procedimento, que se manifesta pelos ditos moradores, chegando o dito Ascenso Gago a dotar com doze ou quinze mil cruzados uma filha, que casou, cujo dinheiro se ajuntou por meio dos índios, que em seu serviço o ganharam carregando sal para o Piauí a troco de vacas com que povoou vários sítios.

No sertão dos Inhamuns, ao lado do Cariri, também no século XVIII, encontrava-se o padre José Bezerra do Vale amancebado com uma índia jucá, sendo que deste casal descendem muitas famílias cearenses, como os Andrade, os Gois, os Arrais, os Abath (do Crato/CE). Há quem diga que o ex-presidente do Brasil Wenceslau Brás também esteja entre os descendentes do “pecaminoso” relacionamento do padre José Bezerra do Vale com a dita cunhã.
Comprovadamente, no Ceará dos séculos passados, são inúmeros os casos de padres entregues à lascívia, mas, para evitar delongas, apenas alguns serão citados a fim de contextualizar os fatos aqui tratados.
Em Russas, o padre Maia deixou larga descendência. No Pereiro, próximo a cidade de Icó/CE, o padre F. Martins, além de se apossar das terras de um fazendeiro, que também era filho de um padre, tomou-lhe a esposa, deixando vários filhos no lugar. Em Uruburetama/CE, o padre Francisco Rodrigues Barbosa era proprietário de fazenda e pai de família.
No Crato, o número de pastores entregues ao pecado da carne era significante, pois, só no ano de 1838, existiam quatro que possuíam filhos e amásias. Entre estes presbíteros cratenses, um dos que mais chamava a atenção era o padre Joaquim Ferreira Lima Verde, progenitor de uma das famílias mais numerosas do Sul cearense e de todos os que possuem esse sobrenome no País. O comportamento deste padre era tão escancarado e aceito socialmente que foram publicadas no jornal da cidade O Araripe, em 1856, algumas acusações contra ele, nas quais, inusitadamente, é chamado de assassino e corno.  
Oriundo de Lisboa, o padre Alexandre Leite de Oliveira se radicou na Vila do Crato durante o século XVIII, onde se tornou senhor de dois engenhos (Rosário e Cabreiro). Apesar da sotaina, o dito padre gerou um filho, chamado Antônio Leite de Oliveira, que também veio a se tornar sacerdote e, palmilhando a mesma senda paterna e avoenga, produziu numerosa prole, isto por ter se amigado com Dona Josefa Leonor da Encarnação, com quem teve cinco filhos: Antônio Lima de Mendonça, Venceslau Patrício, Ana Rakel (ou Rabel), Antônia e Maria Luíza, sendo todos eles tratados em seu testamento pela alcunha de “afilhados”:

Papel de doação que faz o padre Antônio Leite de Oliveira do Sítio da Venda aos seus afilhados cujo papel vai lançado nesta Nota:
Saibam quantos este público instrumento virem com o teor de um papel de doação que sendo no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e doze, aos quatorze dias do mês de Dezembro do dito ano, nesta real Vila do Crato Comarca do Ceará Grande em seu cartório, por parte do doador me foi requerido lançasse este papel de doação em Notas para obviar qualquer inconveniente que poderão padecer pelo tempo futuro e por o reconhecer verdadeiro e estar a mim distribuído pelo Distribuidor deste Juízo Joaquim José de Melo, o tomei e aqui o lancei e é o que se segue. Digo eu o padre Antônio Leite de Oliveira, Clérigo Secular do hábito de São Pedro, que entre os meus bens que possuo com posse mansa e pacífica há bem assim um Sítio de terras nominado Venda que há de ter pouco mais ou menos meia légua, que comprei e o tenho por preço de cem mil réis cujos vendedores foram Antônio Lopes de Andrade e sua mulher Arcângela Maria a quem logo paguei dita quantia e presenciaram esta venda e compra Domingos Dias Cardoso e José Joaquim, comprado com dinheiro adquirido pelas Ordens de Missas e estado clerical sem que entrasse na compra dele coisa alguma do casal de meus pais e irmãos, cujo Sítio extrema pela parte sul no riachinho da Venda e descendo pelo rio Salgado abaixo até o curral queimado com terras de Miguel Álvares, da parte do Norte e do Nascente com o mesmo rio Salgado e do poente com terras da Canabraba, o qual sítio assim extremado e como constará de sua escritura a mim passada e por ser verdadeira e legitimamente meu e não haver sobre ele embargo, nem dúvida e nem outra alguma coisa que de embargo servir possa, faço doação deste mesmo sítio aos meus afilhados Antônio Lima de Mendonça, Venceslau Patrício, Ana Rakel (ou Rabel), Antônia, Maria Luíza, filhos de Dona Josefa Leonor da Encarnação (...).

Mas não parou por aí, pois, não bastasse o referido padre Alexandre Leite de Oliveira ser genitor de um outro padre, também teve um neto que se tornou religioso, o padre João Marrocos Teles, o qual, por sua vez, é o pai do professor José Joaquim Teles Marrocos, quem ainda tentou seguir a carreira religiosa, mas acabou sendo expulso do Seminário da Prainha, em Fortaleza/CE.
Aproveitando o ensejo, deve ser destacado que o referido padre Antônio Leite de Oliveira, documentalmente, consta como padrinho de batismo de José Martiniano de Alencar. É curioso notar que Alencar também se tornou padre e constituiu família com uma “prima de primeiro grau”, demonstrando ter puxado à benção do padrinho, seguindo a regra do tempo e do meio em que estava inserido.
Essa permissividade sexual era algo constante na vida daqueles brasileiros interioranos, incluindo as pessoas mais próximas de José de Alencar, a começar por seu irmão, Tristão de Alencar Araripe, que teve um filho natural com uma escrava, o professor Pedro Jaime de Alencar Araripe.
Outro caso emblemático de licenciosidade ocorreu com o Coronel Maínha, José Francisco Pereira Maia (filho do pernambucano Francisco Pereira Maia Guimarães, um dos protagonistas da Revolução de1817 em Crato), pois, depois de ter se apartado da mulher legítima, foi viver em concubinato com nove mulheres, sendo cinco delas tias do padre Cícero Romão Batista.
O fato é que, do litoral ao sertão, dentro e fora da família Alencar, observam-se muitos religiosos entregando-se aos prazeres da carne, e para que tais indivíduos não sejam esquecidos, cabe lembrar algumas famílias do Ceará que encontraram nos padres verdadeiros garanhões, entre eles: os Pompeu, descendentes do padre Tomás Pompeu de Sousa Brasil (senador do Império); um dos ramos da família Alencar que provém do padre Pedro Antunes de Alencar Rodovalho; os Angelitinos Martins de Missão Velha, no Cariri, rebentos do padre Manuel Antônio Martins de Jesus, que foi deputado provincial; os Aires da região caririense, que têm como patriarca o padre Manuel Joaquim Aires do Nascimento (ex-vigário colado do Crato); os Beviláqua, descendentes do padre José Beviláqua (ex-vigário de Viçosa); e, por último, o exemplo pitoresco do padre José Gonçalves da Costa, deputado provincial e pai de muitos indivíduos, o qual chegou ao cúmulo de raptar a filha de um colega de profissão (o padre Manuel da Silva Sousa) para com ela coabitar.    
Já na segunda metade do século XIX, o comportamento dos religiosos impressionava o médico Francisco Freire Alemão, que, ao falar sobre a imoralidade do clero e seculares do Ceará, declarou: “Quanto ao clero, não será possível achar-se em outro lugar onde sua devassidão exceda, ou mesmo iguale, ao que se vê nesta província”.
         Depois de toda essa digressão, resta apresentar o testamento deixado pelo vigário do Crato Miguel Carlos da Silva Saldanha, pelo qual lega seus bens aos filhos do padre José Martiniano de Alencar com Dona Ana Josefina de Alencar. O testamento fora feito no dia 16 de fevereiro de 1839 na então Vila do Crato, e diz:

Testamento solene que faz em notas aberta e publicado o reverendo Vigário Miguel Carlos da Silva Saldanha.
Saibão quantos este publico instrumento de testamento virem que sendo no anno de do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e trinta e nove, anno décimo oitavo da independência e do Império aos dezeseis dias do mez de fevereiro do dito anno nesta Villa do Crato cabeça da comarca da Província do Ceará em casa do reverendo vigário Miguel Carlos da Silva Saldanha, onde fui vindo eu Tabelião Público adeante nomeado e assignado, e sendo ahi pelo dito reverendo me foi dito que queria fazer seu solene testamento aberto e publicado em notas e por isso me havia mandado chamar para lhe escrever, e que ele o ditava, o qual é da maneira seguinte: Em nome da Santíssima Trindade Pai Filho e Espírito Santo em que eu Miguel Carlos da Silva Saldanha firmemente creio e em cuja fé protesto viver e morrer. Este, o meu testamento de última vontade. Declaro que sou filho de Manuel Carlos da Silva Saldanha, e de Isabel Maria de Sousa, naturais da freguesia de Riacho de Sangue donde também sou natural, declaro e quero ser sepultado na minha Matriz sendo acompanhado pelos sacerdotes que se acharem, os quais dirão missa de corpo presente por minha alma; mando que se ergam por minha alma duas Capelas de Missas, outra pelas almas de meus pais, outra pelas de meus irmãos falecidos e uma pelas almas de meus fregueses, e mais duas Capelas aplicadas em minha intenção. Deixo para adjutório da obra de minha Matriz quatrocentos mil reis, e para o azeite do Santíssimo Sacramento, vinte e cinco mil reis e igual quantia para os pobres de porta da minha freguesia que acompanharem o meu enterro. Deixo cinqüenta mil reis para as duas filhas do falecido José Carlos. Rogo em primeiro lugar ao senhor Senador José Martiniano de Alencar, em segundo lugar ao senhor José Dias Azedo e em terceiro ao senhor capitão João Pereira de Alencar queiram fazer a obra pia de ser meus testamenteiros. Declaro que não tenho herdeiros forçados, e por isso constituo por meus herdeiros universais os filhos de dona Ana Josefina de Alencar, filha do falecido Leonel Pereira de Alencar, os quais são: José, Leonel, Ana e Tristão, a quem meus testamenteiros entregarão todas as minhas fazendas, que por minha morte ficar, tirando somente o que for preciso para o cumprimento de minhas disposições por ser esta minha última vontade para ser cumprida depois de minha morte. E deste modo disse ultimava seu solene testamento e disposição de última vontade, e revogava qualquer outra que aparecesse, pois era esta sua última vontade, e como assim disse assignou se seu próprio punho com as testemunhas o reverendo Manuel Joaquim Aires do Nascimento, o reverendo Pedro Antunes de Alencar Rodovalho, o alferes Canuto José de Aguiar, Roque Carlos Peixoto de Alencar e Manuel Carlos da Silva Peixoto, e que Antonio Duarte Pinheiro Tabelião Público o escrevi.

            É perceptível que o padre Saldanha, mesmo tendo vários sobrinhos, filhos de seus irmãos, resolveu deixar todos os seus bens aos filhos naturais de Ana Josefina de Alencar com o senador José Martiniano de Alencar. E por que ele teria feito isso? O senador, presumidamente, já era um homem rico e, em tese, não tinha parentesco sanguíneo com o padre Saldanha, coisa que era de extrema relevância na hora de um testamento para aquela gente. Seria mais razoável se o vigário tivesse testado em favor dos parentes mais próximos, pois o que não lhe faltava eram sobrinhos!
         Além disso, quando o padre Saldanha nomeia como testamenteiro, em primeiro lugar, o senador José Martiniano, percebe-se o tamanho da confiança e a estreita relação entre ambos.
         Ademais, é importante destacar que quando chega a vez de o senador Alencar elaborar seu próprio testamento, em 1853, nomeia em primeiro lugar, como testamenteiro, o seu filho primogênito, o bacharel em direito e escritor José Martiniano de Alencar; em seguida, encomenda para que se faça, após sua morte, uma capela de missas em favor de seus pais e outra capela de missas para o seu padrinho e benfeitor, o padre Saldanha, em agradecimento pelos benefícios por ele prestados.

CONTINUA!
NOTA: TODOS OS DADOS AQUI APRESENTADOS SÃO RESPALDADOS EM FONTES ESCRITAS, CONTUDO, ESTAS SÓ SERÃO REVELADAS QUANDO DA PUBLICAÇÃO EM LIVRO DE NOSSA AUTORIA.