Páginas

domingo, 19 de agosto de 2012

HERÁLDICA SERTANEJA: O BRASÃO DA FAMÍLIA FEITOSA.


HERÁLDICA SERTANEJA: O BRASÃO DA FAMÍLIA FEITOSA

                                                                          Heitor Feitosa Macêdo
Brasão que falsamente atribui-se à família Feitosa.
      Em que pese o uso generalizado de determinado brasão pela família Feitosa, a verdade aponta uma afirmativa diversa, pois, nos termos das concessões da antiga nobreza europeia, esta família não fora agraciada com títulos nobiliárquicos.
        A criação dos símbolos, adotados pelos antigos clãs familiares, não ocorreu apenas por mero deleite honorífico e nobiliário, mas, principalmente, como meio de identificar os indivíduos e os vários grupos que compunham a população em determinadas circunscrições.
        Contudo, houve época em que as palavras não mais bastavam para distinguir os diferentes grupos familiares, necessitando que outros meios suprissem a manutenção dessa heterogeneidade. Desta forma, certamente passaram a lançar mão de imagens que catalisassem o raciocínio discriminativo, condicionando e fortalecendo o liame entre as abstratas formações sociais e a concretude do visível.
        Os nomes de família nem sempre seguiram a regra atualmente estabelecida, posto que nos primórdios, as civilizações do velho continente utilizaram um único nome para singularizar o indivíduo.
        Dentre os povos que influenciaram o direito e o costume do ocidente, encontram-se os hebreus, os quais inicialmente empregavam apenas um único  nome: Jacó, Ester etc. Doravante, passaram a adotar um segundo nome, imposto pelo costume, sempre referente à uma atividade laboral, ou mesmo em alusão à localidade de nascimento, como, por exemplo, "Jesus", ao qual acrescentou-se "de Nazaré".[1]
        Entre os Gregos e Romanos, também fora adotado primeiramente um nome único, mas, à medida que a sociedade tornava-se mais complexa, a regra de nominação sofreu alterações, findando na institucionalização de um trinômio.[2]
        Na época em que a religião doméstica predominou na Grécia e no Lácio, a família, ante o proeminência do direito privado, regeu-se pelo culto dos mortos, mais especificamente dos ancestrais em comum, pais, avós etc., chamados de manes. Estes eram considerados verdadeiros deuses, e cada família tinha os seus, além disso, eram sepultados em túmulos no interior das casas, sendo inamovíveis, por isso inalienáveis e indivisíveis, o que consolidou a propriedade privada sob a égide divina.
        O direito e a organização familiar giravam em torno dessa religião, tendo por escopo principal a continuação do culto dos parentes falecidos, por meio da manutenção de uma chama que nunca poderia se apagar, em benefício dos mortos, caso contrário, estes ficariam a vagar nas trevas. Então, para manter o fogo sagrado aceso, dever dos descendentes, era fundamental a continuação dos clãs, e por conseguinte a perpetuação dos nomes de família.  
        Em Roma, os patrícios possuíam três nomes, por exemplo, Publius Cornelius Scipio, sendo desmembrado da seguinte forma: Publius era apenas um nome colocado antes do de família (proenomen); Scipio era um nome acrescido ao cognome (agnome); por fim, constituía seu verdadeiro nome Cornelius (nomen), e igualmente de toda gens, isto é, da família.

Cada gens transmitia de geração em geração, o nome do antepassado e perpetuava-o com o mesmo cuidado com que continuava o seu culto. O que os romanos chamavam propriamente de nomen era o nome do antepassado que devia ser usado por todos os descendentes e todos os membros da gens. Veio porém o tempo em que cada ramo, tornando-se independente para certas coisas, marcou a sua individualidade adotando o sobrenome (cognomen). Contudo, como cada pessoa devia distinguir-se por uma denominação particular, cada um teve assim o seu agnomen, como Caio ou Quinto. Mas o verdadeiro nome era o da gens, porque esse era o oficialmente usado, e o era sagrado; esse nome que, remontando ao primeiro antepassado conhecido, devia durar tanto quanto a família e os seus deuses. O mesmo sucedia na Grécia, romanos e helenos mesmo nesse detalhe se parecem.[3]                           
        
     Com as invasões dos povos bárbaros, volveu-se a utilizar o nome único[4]. Logo após, no período da Idade Média, sob influência cristã, o nome verdadeiro foi o de batismo, ou seja, o individual, até o século XII. Mais tarde, apareceram os patronímicos (nome do pai), "como nomes de terra, ou como sobrenome"[5].
        Cabe notar que esse processo, entre as sociedades cristãs, ocorreu de forma inversa das antigas civilizações greco-latinas, pois, nestas, primeiro surgiu o nome relacionado à família, e só posteriormente criou-se o nome atinente ao indivíduo. Já os cristãos seguiram sentido oposto, porque primeiramente aventaram o nome identificador do indivíduo, e só depois, atribuíram a este o nome correspondente à família.[6]
        Ainda na Idade Média, no furor das cruzadas, ascendem ao poder os grupos mais aguerridos, mantenedores de exércitos particulares. Práticos na arte do espólio, usurpando terras e fazendo alianças no fito de suster a propriedade sobre o latifúndio.
        Nesse momento delineiam-se as novas classes dominantes, fervilhando por toda a Europa a formação de monarquias. Porém, os régulos feudais não detinham cabalmente o poder sobre os seus domínios, dividindo-o com os nobres. Estes, geralmente, eram indivíduos aparentados do rei, ou  haviam angariado o título por meio de relevantes serviços prestados à coroa.
        Ser nobre concernia diretamente a uma relação de sangue, não podendo alcançar esse status senão pelo nascimento. Contudo, essa regra foi flexibilizada, permitindo-se uma equiparação em termos de privilégios. Isto sob o critério de riqueza e capacidade militar, ou seja, possibilitou-se a formação de uma nobreza de origem plebeia. Esse foi o marco para ascensão dos cavaleiros e dos "senhores de pendão e caldeira".[7]
        Durante esse período, além das investidas militares sobre os Mouros, também era comum o enfretamento no interior da própria nobreza, com foros de guerra privada. Por conta destas atividades beligerantes, tornou-se comum o uso de emblemas que diferençassem os combatentes. Porquanto a figura das armas foram preferencialmente as escolhidas, fazendo-se do escudo a marca principal.
        Na Europa, o anúncio dos torneios e duelos era feito ao som de uma trompa de caça, sendo que o sopro para acionar o instrumento era chamado de blasen, uma palavra de origem germânica da qual derivou o termo brasão[8].  
        Assim, firmou-se a ligação entre os nomes, do indivíduo ou de família, e o conjunto de armas (brasão), tendo ao centro um escudo, geralmente esquartelado, isto é, dividido em quatro partes, e dentro destes outras figuras individualizantes, como vieiras, castelos etc.
        Em Portugal, ao final da Idade Média, o direito costumeiro tendia a ceder espaço para as codificações, com forte influência do direito Romano. Desta forma, por volta de 1446, surge em Portugal as Ordenações Afonsinas, "o primeiro Código de toda a Europa, depois dos da Meia Idade"[9]. No entanto, este fora sucedido pelas Ordenações Manuelinas, que perduraram de 1514 a 1521. Em seguida vieram as Ordenações Filipinas, as quais estiveram parcialmente em vigor no Brasil até 1916, data em que foi criado o primeiro Código Civil brasileiro.
        Como reflexo de um processo histórico-cultural, o direito português não deixou de tratar da matéria pertinente aos brasões. Pelo menos é o que se observa no texto das Ordenações Filipinas, que previa sanções para aqueles que alterassem ou usassem indevidamente as armas, insígnias e sobrenomes de outrem.

Como os Blasões das armas e appelidos, que se dão aquelles, que per hoarosos feitos os ganharão, sejão certos sinaes e prova de sua Nobreza e honra, e dos que deles descendem, he justo que essas insignias e apellidos andem em tanta certeza, que suas familias e nomes se não confundão com as dos outros, que não tiverem iguaes merecimentos (...) Polo que ordenamos, que qualquer pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que novamente tomar armas, que de Direito lhe não pertenção, perca sua fazenda, ametade para quem o accusar, e a outra para os Captivos. E mais perderá toda sua honra e privilégio de Fidalguia e Linhagem, e pessoa, que tiver, e seja havido por plebêo, assi nas penas, como nos tributos e peitas, e sem nunca poder gozar de privilegio algum, nem honra, que por razão de sua linhagem, ou pessoa, ou de Direito lhe pertença.[10]
        
      Igualmente, para aquele que já tivesse armas, tomasse outras em seu lugar, perderia todas elas. Da mesma forma, aquele que modificasse, acrescentando ou retirando, algum caractere de suas armas poderia ser degredado para a África por dois anos, além de ter que pagar cinquenta cruzados ao Rei de Armas de Portugal.
        Acrescente-se que os Chefes de Linhagem tinham a obrigação de "trazer as armas direitas, sem differença, nem mistura de outras algumas armas"[11]. Neste caso, era possível ser Chefe de mais de uma Linhagem, contudo, o número máximo de armas que poderia trazer limitava-se a quatro, esquarteladas.
        Os bastardos só poderiam trazer estas armas depois da "quebra da bastardia", segundo ordem da Armaria. No mais, só poderiam ostentar armas as pessoas cujos nomes estivessem assentados por Fidalgos nos "Livros", o mesmo se estendendo aos seus descendentes; ou àqueles que houvessem obtido a "special mercê" de Fidalgos.[12]
        Em decorrência dessa distinção social, muitos privilégios eram dados aos integrantes dessa aristocracia de sangue, em detrimento dos demais. Por isso, ao tempo das revoluções do século XVIII, na França foram abolidas as distinções jurídico-sociais, decretando a Assembleia Nacional, em 18 de junho de 1790, que a nobreza era uma instituição incompatível com a nova organização do Estado, e que deveriam ser abolidos os títulos e brasões. Sucessivamente, depois  de dois anos, documentos referentes aos nobres foram incinerados. Todavia, Napoleão I criou uma nova nobreza e, como se não bastasse, durante a Restauração, a antiga também foi reintegrada.[13]
        Em Portugal a realeza vez ou outra experimentou a fúria dos nobres, constando a ultima revolta da data de 3 de setembro de 1758, durante o reinado de D. José, o que demandou uma repressão violenta. Por fim, com a proclamação da República, um Decreto datado de 18 de outubro de 1910 aboliu os títulos nobiliárquicos, distinções honoríficas e direitos de nobreza.[14]
        Destaque-se que o simples uso dos sobrenomes, desvinculados das armas, não possuía o condão de diferenciar satisfatoriamente uma classe e outra, já que o uso da maioria dos nomes de família era utilizado vulgarmente, ou seja, "os nomes de pessoas foram então, como até certo ponto ainda hoje, em Portugal e no Brasil, os mesmo entre os grandes e humildes".[15]
        No Brasil batizou-se a torto e a direito índios e negros com as alcunhas cristãs, suprimindo-se os nomes aborígenes em face de uma europeização nominal, como ocorrera a alguns índios que marcaram a história nacional, sendo bastante ilustrativa a história de um herói da Guerra Pernambucana, o índio Tabajara denominado Poti (do Tupi, 'camarão'), que por conta de suas façanhas obteve o título de Dom, e uma nova identidade, passando a se chamar Antônio Felipe Camarão, além da concessão de armas próprias (brasão)[16].
         Quanto aos escravos e negros, era comum que estes adotassem os nomes de seus senhores, mesmo sem possuir uma gota de sangue aristocrático.
        No entanto, em certas ocasiões, principalmente durante a independência do Brasil, quando o sentimento nativista aflorou no seio do povo, fazendo-o acrescer aos seus patronímicos nomes autóctones, como ocorrera em um ramo da eminente família pernambucana Albuquerque Cavalcante que passou a usar Suaçuna como sobrenome.[17] No Ceará, esse nativismo não foi menos intenso, ocorrendo em algumas famílias a adoção de nomes indígenas, como Araripe, entre a família Alencar; Jucá, pela família Feitosa. Outros foram: os Sucupira, os Mororó, os Ibiapina etc.
        Mesmo havendo essa frouxidão nas regras de aplicação dos patronímicos, só alguns poucos puderam ostentar e exercer poderes inerentes aos verdadeiros nobres, pois as famílias segregavam-se em castas quase impermeáveis, apoderando-se de imensidões do solo continental, excluindo o povo não apenas pela simples aposição do sobrenome, mas, também, em virtude do sangue, outro preponderante elemento de coesão da parentela.
         Sem dúvida, a unidade familiar foi o "grande fator colonizador no Brasil"[18], ocupando o solo sesmarial e consolidando a economia, como unidade produtiva, pari passu estabilizando o mosaico social; restando descartar a equivocada ideia de que o indivíduo, em si só, na figura principalmente dos degredados, fora importante elemento para a colonização do país.
        Esse processo de ocupação determinou a íntima relação entre a propriedade e a família, pois alguns epítetos clãnicos tornaram-se sinônimos de dominação regional. Nos sertões do Nordeste era de comum conhecimento a seguinte quadra:

         Se fores a Pernambuco
         Deves de estar bem preparado
         Ou a seres Cavalcante
         Ou a seres Cavalgado[19]
        
       Por séculos pugnou-se pelo casamento consanguíneo entre os abastados, pois era uma maneira de preservar a propriedade ou aumentá-la. Nesse sentido, observou João Brígido: "Na antiguidade, as famílias ricas e afidalgadas do sertão casavam como gados, quase os pais com as filhas; tudo por amor dos haveres e da tribo"[20]. A mais, entre os sertanejos era comum exortar digressões genealógicas, subindo pelos costados até esbarrar "em papas, príncipes e nobres senhores o que era grande coisa para aqueles homens, embora os não fizessem mais gordos".[21]
        Porém, esse costume não engendrava deliberadamente a ideia de eugenia, pois a pureza de sangue era um predicado alheio tanto ao português quinhentista, quanto aos primeiros ibero-brasileiros[22]. Ambos mestiços em decorrência das guerras de conquista e expansionismo geográfico.
        Os portugueses, desde o descobrimento, já detinham sangue mouro em suas veias, e, depois de apeados na América, intensificaram a mestiçagem deitando-se primeiramente com índias. Isto gerou um sem-número de mamelucos, os quais formaram a base social da família brasileira, inclusive a aristocrática, como os Dias D'Ávila, os Guedes de Brito, os Cavalcante, os Albuquerque, os Holanda, cabendo destacar os paulistas, caboclos por excelência.
        Logo, a pureza de sangue foi algo impraticável no Brasil, restando às elites manterem-se no poder por meio da conjugação do patronímico (com seus brasões, quando houvessem), do parentesco sanguíneo, e por fim, através do critério de riqueza, preponderante requisito para a união dos clãs dominantes.
        Contudo, determinados grupos familiares, apesar de plenipotenciários, ostentavam sobrenomes desvinculados dos brasões, por não terem sido concedidos nos moldes da Armaria portuguesa. Nesse caso, não podendo ser considerados nobres, pois, para isto, havia a necessidade de que o título fosse doado ou herdado. Por outro lado, para ser fidalgo era necessário haver conhecimento dos antepassados nobres, de linhagem esclarecida, "filho de algo". Assim, todo fidalgo é nobre, mas nem todo nobre é fidalgo.[23]
        No caso da família Feitosa, há que se ponderar sobre seu predicado heráldico, porque, como é sabido, essa alcunha, cuja etimologia remete a palavra latina filicatus (guarnecido ou ornado de feto)[24], não consta entre as antigas linhagens portuguesas.      
        Porém há algumas décadas, passou-se a usar equivocadamente um determinado brasão como pertencente à essa família. Todavia, um desacerto cometido por algum venal heraldista.
        Os primeiros exemplares desse brasão foram obtidos em Recife/PE, em um estabelecimento comercial localizado no Parque Dois Irmãos, aonde, talvez por engano, consignou-se à família Feitosa indevidamente um emblema nobiliárquico.
        Mas esse erro é bastante escusável, pois a culpa recai diretamente no superficial conhecimento histórico, principalmente o de cunho regional. Isto pelo fato de a família em comento ter como primeiro patriarca, no Brasil, o capitão João Álvares da Feitosa, o qual é presumidamente oriundo da Vila da Feitosa, circunscrita pelo Concelho de Ponte de Lima, em Portugal.  
        Assim, conforme a indicação do predito apodo, "Feitosa", antecedido da contração prepositiva "da", leva a crer que esse sobrenome seja de origem toponímica, isto é, relativo ao nome de um lugar, no caso, o da sobredita Vila lusitana.
        Paralelamente, um indivíduo de destaque no Brasil imperial também usou esse mesmo apelido, o Visconde da Feitosa, mais especificamente, João Manoel Fernandes Feitosa, nascido em Portugal, na cidade de Valença, no dia 10 de abril de 1836, sendo filho de João Fernandes Feitosa e de D. Mariana das Dores Caldas Magalhães. Entretanto, o Visconde migrou para o Brasil ainda jovem, estabelecendo-se no Rio de Janeiro, onde acumulou considerável fortuna, além de notabilizar-se por iniciativas de cunho social.
        No Rio de Janeiro, casou-se em 1864 com  D. Ana Gonçalves Guimarães, e apenas no ano de 1879 foi agraciado com o título de Visconde, por conseguinte, foi elevado à categoria de Conde da Feitosa, em 1890.
        Contudo, esses títulos lhe foram conferidos não em alusão ao sobrenome Feitosa, mas em razão do patronímico Fernandes, ao qual atribuiu-se às  seguintes características: "Brasão de armas: de Fernandes (a águia com um escudete sobre o peito). Coroa de Visconde (depois de Conde). Timbre: de Fernandes. Diferença: uma brica de azul com um besante de prata. (Concedidos por Cartas de 19-III-1870 e 26-II-1890)".[25]
        Além do mais, o fato de esse Visconde (Conde) ter em seu nome a alcunha "Feitosa", não há nada que comprove seu parentesco com os indivíduos do mesmo sobrenome que ocuparam o Nordeste brasileiro em meados do século XVII, duzentos anos antes do insigne Visconde chegar ao Brasil.
Brasão pertencente à família Fernandes e usado indevidamente pelos Feitosa.
        Destaque-se que o patronímico da família Fernandes não tem uma só origem, entretanto, destas, duas têm armas próprias, quais sejam:
Outro brasão dos Fernandes.
Fernandes Correia, feitor de D. João II na Flandres e cavaleiro da sua Casa, pelos grandes serviços prestados ao Imperador Maximiliano I em 1488, com dinheiro, recebeu deste mercê de armas novas. A alguns Fernandes que nada deviam ter de comum com Diogo Fernandes Correia, deram os reis de armas como representando o apelido Fernandes as que o Imperador Maximiliano lhe concedeu, alterando a ordem dos quartéis. As armas usadas por estes Fernandes são: Esquartelado: o primeiro de ouro, com uma águia de duas cabeças, de negro, armada de vermelho, carregada de um crescente de prata no peito; o segundo de vermelho, com três escudetes de prata, cada escudete com uma cruz de vermelho; o terceiro de vermelho, com um castelo de prata; e o quarto de vermelho, com três vieiras de prata. Timbre: uma águia estendida de uma só cabeça, de negro, com um escudete do segundo quartel no bico, pendente de uma torçal de vermelho. Outros Fernandes trazem por armas: De azul, com uma torre de ouro com seis bombardas de negro, quatro saintes das      ameias e duas de duas canhoneiras junto à porta. Timbre: a torre do escudo.  
        
       Portanto, o brasão utilizado pela família Feitosa é na verdade o conjunto de armas concedido  em favor do  sobrenome Fernandes, o qual não guarda nenhuma relação com a predita família.
Brasão pertencente à família Álvares.
        Nesses termos, caberia invocar algum resquício de nobreza e fidalguia no sobrenome "Álvares" (corrompido em "Alvres" e "Alves"), usado conjugadamente, desde tempos remotos, adjunto do apelido "Feitosa". Salientando-se que o mais ilustre  representante deste sobrenome fora Pedro Álvares Cabral, "descobridor do Brasil".
        Em verdade, o patronímico citado possui brasão, no entanto, sua origem é incerta, e seu uso em Portugal é tão vulgar quanto é o nome Silva no Brasil, utilizado  por inúmeras famílias "sem comunidade de origem".[26]
        A despeito do sobredito, o grupo Feitosa, em princípio, ligou-se à família Cavalcante de Pernambuco, por conta dos dois primeiros enlaces do Coronel Francisco Alves Feitosa (filho do Capitão João Álvares Feitosa). No mais, os filhos desse mesmo Coronel também casaram-se na citada família.[27] Desta feita, cabe falar em nobilitação dos Feitosa por esse viés, entestando nos fidalgos Felipe Cavalcante, Jerônimo de Albuquerque e Arnaud de Holanda.
        Finalmente, conclui-se que o patronímico Feitosa não possui brasão, por isso excluído tanto da nobreza de Portugal quanto da brasileira, apesar de ligar-se através de casamentos a algumas famílias afidalgadas.



BIBLOGRAFIA:

Alemão, Francisco Freire, Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão, Fortaleza, Projeto Obras Raras, Fundação Waldemar Alcântara, 2011.

Araripe, Tristão Gonçalves de, História da Província do Ceará: desde os tempos primitivos até 1850, 2ª Ed., Fortaleza/CE, Tipografia Minerva, 1958.

Armorial Lusitano: Genealogia e Heráldica, Lisboa-Portugal, Editorial Enciclopédia Lᴰᴬ, 1961.

Azevedo, Luiz Carlos de, INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DO DIREITO, 2ª Ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Brígido, João, Ceará: Homens e Fatos, Fortaleza, Demócrito Rocha, 2001.

Cascudo, Luís Câmara, A Casa de Cunhaú, Brasília, Senado Federal, 2008.

Coulanges, Fustel de, A Cidade Antiga, São Paulo, Martin Claret, 2005.

Feitosa, Leonardo, Tratado Genealógico da Família Feitosa, Fortaleza/CE, Imprensa Oficial, 1985.

Freyre, Gilberto, Casa Grande e Senzala, 18ª Ed., Rio de Janeiro, José Olímpio, 1977.


Maia, Virgílio, Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas, Cotia-São Paulo, Ateliê Editorial, 2004.

Nobreza de Portugal e do Brasil, Lisboa-Portugal, Editorial Enciclopédia Lᴰᴬ, Volume II, 1960.

Pequeno Dicionário Latino-Português, 6ª Ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1955.

Pierangelli, José Henrique, Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica, Bauru-SP, Editora Jalovi LTDA, 1980.

Venosa, Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil: Parte Geral, 5ª Edição, São Paulo, Atlas, 2005.  
       
       
       
                                                      


[1] Venosa, Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil: Parte Geral, 5ª Edição, São Paulo, Atlas,  2005, p. 213.
[2] Idem.
[3] Coulanges, Fustel de, A Cidade Antiga, São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 119.
[4] Venosa, op. cit., p. 213.
[5] Coulanges, op. cit., p. 120.
[6] Ibidem.
[7] Nobreza de Portugal e do Brasil, Lisboa-Portugal, Editorial Enciclopédia Lᴰᴬ, Volume II, 1960, p. 14.
[8] Maia, Virgílio, Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas, Cotia-São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, p. 34.
[9] Azevedo, Luiz Carlos de, INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DO DIREITO, 2ª Ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,  2007, p. 187.
[10] Pierangelli, José Henrique, Códigos, Penais do Brasil: Evolução Histórica, Bauru-SP, Editora Jalovi LTDA, 1980, p. 80. (Código Filipino, Livro V Das Ordenações do Reino, Título XCII: Dos que tomão insignias de armas, e dom, ou apellidos, que lhes não pertencem).
[11] Pierangelli, op. cit., p. 81.
[12] Ibidem.
[13]Armorial Lusitano: Genealogia e Heráldica, Lisboa-Portugal, Editorial Enciclopédia Lᴰᴬ, 1961, p. 11.
[14]Armorial Lusitano, op. cit., p. 16.
[15] Freyre, Gilberto, Casa Grande e Senzala, 18ª Ed., Rio de Janeiro, José Olímpio, 1977, p. 216.
[16] Araripe, Tristão Gonçalves de, História da Província do Ceará: desde os tempos primitivos até 1850, 2ª Ed., Fortaleza/CE, Tipografia Minerva, p. 111-135.
[17] Freyre, op. cit., p. 451.
[18] Freyre, op. cit., p. 19.
[19] Alemão, Francisco Freire, Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão, Fortaleza, Projeto Obras Raras, Fundação Waldemar Alcântara, 2011, p. 234.
[20] Brígido, João, Ceará: Homens e Fatos, Fortaleza, Demócrito Rocha, 2001, p. 313.
[21] Brígido, op. cit., p. 164.
[22] Freyre, op. cit., p. 9.
[23] Cascudo, Luís Câmara, A Casa de Cunhaú, Brasília, Senado Federal, 2008, p. 147.
[24] Pequeno Dicionário Latino-Português, 6ª Ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1955.
[25] Nobreza de Portugal e do Brasil, Volume II, op. cit., p. 586 e 587.
[26] Armorial Lusitano, op. cit., p. 48-49.
[27] Feitosa, Leonardo, Tratado Genealógico da Família Feitosa, Fortaleza/CE Imprensa Oficial, 1985, p. 14.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A VERDADEIRA ORIGEM DOS CARCARÁS DE SABOEIRO


A VERDADEIRA ORIGEM DOS CARCARÁS DE SABOEIRO
                                                                          
                                               Autor: Eneas Braga Fernandes Vieira
                                               Publicado por: Heitor Feitosa Macêdo
        
         Maria Celina Fernandes Moura (DIÁRIO DO CEARÁ, edições de 20 e 21 de 1950), Antenor Gomes Barros Leal (HISTÓRIAS DA FUNDAÇÃO DE BOA VIAGEM, Ceará, 1962) e outros erraram, data vênia, quando afirmaram que AGOSTINHO SANCHES DE CARVALHO e ANA GONÇALVES foram os progenitores das chamadas 7 irmãs.
Cel. João Batista Fernandes Vieira.
         Inicialmente, diga-se de passagem, filhas foram seis. O sétimo da irmandade era homem. E foram eles: Bernardina, Anacleta, Ana, Eugênia, Antônia Franco, Agostinha e Domingos Sanches de Carvalho. Portanto, mais adequado seria dizer-se 7 irmãos.
         Não viviam estes Carvalhos na Capitania de Pernambuco, antes de virem para o Ceará, como se disse, e sim em Itamaracá. Em vários assentamentos religiosos do Livro Nº 1, de casamentos e nascimentos da Freguesia de Nossa Senhora da Expectação do Icó, onde figuram os nomes de algumas das citadas irmãs, a naturalidade delas é dada como sendo daquela ilha.
         Por outro lado, não é sustentável a tese de que os pais dos 7 irmãos fossem cristãos-novos. É apenas provável que tenham sido, em vista de que as famílias Sanches e Carvalho, tanto de Espanha como de Portugal, tradicionalmente eram judaizantes. O Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, foi amigo dos cristãos-novos de Portugal e, ao tempo de Primeiro Ministro de Dom José, aboliu a discriminação religiosa, justamente para favorecer aos judeus. O médico Ricardo Sanches e Ribeiro Sanches, judeus e reformadores liberais juntamente com os maçons Verney, Frei Manoel do Cenáculo e o licenciado Francisco José Freitas, modificaram totalmente  os estatutos da Universidade de Coimbra, atitude por demais revolucionária para a época.
         Na redação oficial dos que foram julgados, em Pernambuco, pelo Santo Ofício, não consta nenhum Sanches ou Carvalho, seja de um ou de outro sexo. E moradores do Ceará que foram às barras daquele Tribunal figuram apenas dois: Antônio Correia de Araújo Portugal e Antônio Mendes da Cunha, o primeiro, residente no Icó, e o segundo, em Quixeramobim. Ambos por terem se casado por duas vezes, quando as legítimas ainda viviam, em Portugal. Aquele era casado com Felipa da Silva e Joana Rodrigues do Ó, este com Teodósia Fernandes e Ana Maria Valéria.
Visconde do Icó, F. Fernandes Vieira.
         Até bem pouco, pensava-se pela tradição velha, que os pais dos Sete Irmãos fossem Agostinho Sanches de Carvalho e Ana Gonçalves de Carvalho. Mas um documento coevo, somente agora conhecido, veio dissipar este engano. Trata-se do termo de casamento de JOÃO BATISTA VIEIRA, português de São Martinho de Galegos, Arcebispado de Braga, filho legítimo de Miguel Vieira e de Domingas Fernandes, de avós ignorados, com ANTÔNIA DE OLIVEIRA, filha legítima de José de Oliveira Bastos, português de Basto, e de Antônia Franco de Carvalho, natural de Itamaracá, neta paterna de Francisco de Oliveira e de Senhorinha Rodrigues, neta materna de MANOEL DA ROCHA FRANCO  e de sua mulher MARIA SANCHES DE CARVALHO.
         Ora, se Antônia Franco de Carvalho era uma das irmãs carvalhinhas e se sua filha, Antônia de Oliveira, era neta materna de Manoel da Rocha Franco e de maria Sanches de Carvalho, lógico é dizer que estes foram os pais dos outros irmãos Sanches de Carvalho.
         A cerimônia religiosa dos pais de Francisco Fernandes Vieira, Visconde do Icó, foi levada a efeito na Capela de N.S. da Glória, filial da Freguesia de N.S. do Carmo dos Inhamuns, hoje Jucás, em 12 de novembro de 1766, na presença do Cura dos Inhamuns, Padre Sebastião da Costa Machado, do Padre Francisco Gomes Correia e de muitas pessoas, sendo testemunhas o Capitão Gabriel da Costa Lousada e Manoel da Costa Veigas.[1]
         Bernardina casou-se duas vezes e sobreviveu e sobreviveu aos dois maridos. A 1ª vez, casou-se com o Tenente Coronel Antônio Lopes de Azevedo. E assinava Bernardina Maria de Andrade. Tiveram três filhos: Padre Antônio Lopes de Azevedo, Maria Sanches de Carvalho, solteira, e Maria Teodora do Carmo que se casou com Bento Dinis Barbosa. O seu segundo matrimônio foi com o Capitão-Mor João Bento da Silva de Oliveira. Ela assinava Bernardina Sanches de Carvalho, seu verdadeiro nome. Tiveram dois filhos: Vitoriana Maria de Santa Gertrudes, solteira, e o Sargento-Mor Bento da Silva, casado com Jacinta Alexandrina de Freitas Acióli. Bernardina e os maridos viveram no Icó. (Termos de nascimentos e casamentos lançados nos livros Nº 1 da Freguesia do Icó, já referido).
         Anacleta casou-se com o Capitão Francisco Xavier de Oliveira Campos. Assinava Anacleta da Silva de Carvalho. Viveram no Sítio Poço do Mato, hoje distrito de Caipu, Município de Cariús. O Capitão foi o doador do patrimônio do Bom Jesus do Poço do Mato.
         Eugênia casou-se com Antônio Domingos Alves, pernambucano fundador de Boa Viagem, antigo Cavalo Morto. Foi aquela que fugiu do Icó para Marvão, no Piauí, e cujo casamento foi cheio de peripécias e lenda. O certo é que em 1743, Antônio Domingos Alves era dono de terras nas ilhargas do Rio Cavalo Morto que deságua no Quixeramobim. (Livro de DATAS DE SESMARIAS, vol. 14. pág. 131; Memórias do Prof. Manoel Ximenes de Aragão, in R.I.C., Tomo 24, pág. 47; O BACAMARTE DOS MOURÕES, Nertan Macêdo e O CEARÁ, Raimundo Girão e Martins Filho).
         Domingos casou-se com D. Clara Francisca de Brito, índia da aldeia Curralinho, de Sergipe d'El Rei. Tiveram os seguintes filhos: Maria Sanches de Carvalho, Clara Joaquina de Sá, Joana Inácia da Silva e Raimundo Sanches de Carvalho. Em 1809, já viúvo, juntamente com as quatro filhas descritas acima, vendeu ao Capitão-Mor Gonçalo Batista Vieira uma légua de terra no Sítio Bom Sucesso, Jucás, onde residiam ele e as três primeiras filhas, que eram solteiras. (Escritura pública de compra e venda, no original em nosso poder).
         Ana casou-se com o Capitão Francisco Ferreira da Mota. Passou a chamar-se Ana Ferreira da Silva. Residiam no Sítio Pitombeira que fica localizado nas proximidades do povoado de Barrinha, em Saboeiro. Deles vêm os cunhados carcarás pitombeiras. Em julho de 1739, no Sítio Camaleões, que compreende hoje parte das fazendas Varzinha, Uruguai, Cavalinho, Serrinha principalmente, e Pedra Branca, de um e outro lado do Rio Jaguaribe, o Padre Francisco Xavier de Vasconcelos batizou a Antônio, filho do casal, sendo-lhe padrinhos Tomás Alonço e Ângela da Silva, mulher do Comissário Francisco Pereira de Carvalho. (Livro da Freguesia de N.S. da Expectação, pág. 24).
         Antônia Franco casou-se no lugar Caiçara, com o português de Basto, José de Oliveira Bastos, filho legítimo de Francisco de Oliveira e de sua mulher Senhorinha Rodrigues. Deles, principalmente, por ter sido um casal  que deixou grande descendência e por ter vivido no Sítio Carcará de Baixo ou Santa Cruz, para distinguir do verdadeiro Sítio Carcará, recebido em sesmaria, no ano de 1718, por Ventura Rodrigues e Domingos Rodrigues, baianos do Rio São Francisco, é que procede a família saboeirense, assim conhecida, isto é, Carcará, por causa do local do mesmo nome.
         O Sítio Santa Cruz ou Carcará de baixo foi pedido pelos pernabucanos de Serinhaém, Lourenço Alves Feitosa e Francisco Alves Feitosa, em 1721. Esta fazenda Santa Cruz, ou simplesmente Cruz, nome pelo qual ficou mais conhecida e como era, aliás, colocado nos termos religiosos, deu origem à Povoação da Cruz, hoje Saboeiro. Na primeira metade do século XVIII, ela pertencia ao Coronel Manoel Gonçalves de Souza. Ali , em 14-07-1735, foi batizada Joana, filha legítima do dito Coronel e de sua mulher Maria da Conceição. (Livro da Freguesia do Icó, já citado).
         A fazenda, mutatis mutandis, veio a pertencer a José de Oliveira Bastos e seus herdeiros.
         De Ana Gertrudes Barbosa, casada com Custódio André dos Santos, natural de Santo André, Bispado do Porto, filha legítima de Maria Teodoro do Carmo, casada com Bento Dinis Barbosa, neta, aquela, de Bernardina Sanches de Carvalho e João Bento da Silva de Oliveira, vêm os carcarás de Marrecas, Tauá, cujos descendentes convolaram núpcias com os de Pitombeira e Cruz, em Saboeiro.
         Em menor escala, os carcarás saboeirenses têm origem também do casal Francisco Xavier de Oliveira Campos - Anacleta da Silva de Carvalho.
         Mas a principal fonte genealógica dos carcarás de Saboeiro, portanto, é o casal José de Oliveira Bastos e Antônia Franco de Carvalho, natural da ilha de Itamaracá.
         Manoel da Rocha Franco era irmão do Capitão-Mor da Ribeira do Acaraú, Pedro da Rocha Franco que faleceu em 1754, com 79 anos de idade, segundo o testamento que fez a véspera da morte. Era filho de Manoel Maria e Maria Rodrigues. Nasceu em Concelho do Tejo, numa localidade chamada Logar da Igreja. (in BOLETIM DO INSTITUTO CULTURAL DO VALE CARIRIENSE, ANO-1979, Nº 6)

             



[1] O Visconde do Icó, Francisco Fernandes Vieira, era filho do português João Batista Vieira e Antônia de Oliveira Bastos, conforme os registros paroquiais. Ver: Aécio Feitosa, CASAMENTOS CELEBRADOS NAS CAPELAS, IGREJAS E FAZENDAS DOS INHAMUNS (1758 - 1801) - HISTÓRIA DA FAMÍLIA FEITOSA, Fortaleza, 2009, p. 66).

quinta-feira, 5 de abril de 2012

DOCUMENTOS INÉDITOS: (I) CONFIRMAÇÃO DE CARTA PATENTE DO CORONEL FRANCISCO ALVES FEITOSA


DOCUMENTOS INÉDITOS: (I) CONFIRMAÇÃO DE CARTA PATENTE DO CORONEL FRANCISCO ALVES FEITOSA
                                                                                                                              
  
                                                                         Heitor Feitosa Macêdo

               
         A história quase sempre é recontada a partir do surgimento de novos documentos, antes imersos em poeiras e esquecimento. E para contribuir com esse processo, o Projeto Barão do Rio Branco (Projeto Resgate) promete pôr fim a uma parte desconhecida e distorcida da história do Brasil, concorrendo para isso a elucidação da Carta Patente conferida ao sesmeiro e colonizador pernambucano Francisco Alves Feitosa.
         Esse projeto é fruto da empreitada do Ministério da Educação, da iniciativa do Embaixador Vladimir Murtinho e da Dr.ª Esther Caldas Bertolette, consistindo no resgate das imagens de documentos manuscritos referentes ao Brasil colonial, espalhados  pelo exterior.
         O conteúdo de tais manuscritos vai desde simples correspondências até cartas régias, além de pareceres do Conselho Ultramarino e do Conselho da Fazenda. A identificação e a triagem dessa documentação foram realizadas por Professores Doutores de diversas Universidades, resultando em milhares de imagens em CD-ROMS e microfilmes.[1]  
         O presente documento, confirmação de carta patente, faz parte da coletânea compulsada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, referente à Capitania de Pernambuco, material bastante extenso, com 33 mil documentos, por conta de essa Capitania ter mantido sob sua jurisdição outras como a de Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
         A ciência histórica vive às voltas com sua própria dinâmica, volvendo-se no tempo para reescrever afirmativas dantes tão categóricas, mudando o curso dos fatos segundo o paulatino aparecimento de outras fontes primárias. Contudo, vez por outra um cartapácio se revela sacudindo o pó do esquecimento, e trazendo uma visão mais exata dos fatos, carreando uma nova verdade histórica. E isso é o que tem frequentemente ocorrido com a redescoberta desses preciosos documentos.
         Nesse momento, a história, principalmente a de cunho regional, goza de novos e esclarecedores auspícios, e dentre os milhares documentos relativos à Capitania de Pernambuco, um vem corrigir a falsa assertiva adotada por historiadores até o presente instante.
         Trata-se da patente conferida ao pernambucano Francisco Alves Feitosa, que migrou para a Capitania do Ceará, juntamente com o irmão (Lourenço Alves Feitosa), em meados de 1700, com fulcro em peticionar datas de sesmarias que estavam sendo doadas a torto e a direito.
         Quando da sua chegada, escolhera a ribeira do Icó como domicílio. Neste mesmo lugar, residiam as principais famílias do Cariri, lideradas em sua maioria por empreendedores do ciclo do gado, que buscavam terras nas imensidões agrestes para o estabelecimento de seus currais.
         Francisco havia desposado uma viúva pertencente a um importante grupo familiar dominante e residente nessa mesma localidade, Isabel de Montes Silva, com a qual trespassava o bucólico cotidiano.
            Entretanto, o irmão de Francisco visava à tornar-se mais rico e poderoso, não lhe bastando as léguas de terras que havia recebido por doação sesmarial nas Capitanias de Pernambuco e Ceará. Lourenço ambicionava todas as terras que os olhos podiam alcançar. Fato que causou desagrado aos irmãos da esposa de Francisco, culminando em um enfrentamento armado.

O  Coronel  Francisco  Alves  Feitosa,  justiça  se  lhe  faça,  soube  compreender  a aflitiva  situação  de  sua  consorte,  não  tomando  parte  nos  três  primeiros  atos de hostilidades  dos  seus  parentes,  pois  que  as  tomadas  das  terras do Riacho Trussu-Barra  e  a  famosa  lagoa do Iguatu foram atos, que o comissário geral Lourenço Alves Feitosa  encabeçou,  sozinho.  No terceiro ato, porém,  entraram,  em  cena,  os          dois  Lourenços  pai  e  filho.  Bloquearam, em Icó  o  coronel  Montes,  situando-se      ambos nas testadas de suas terras. Tornaram-se,  destarte,  vizinhos  de  terras.  Recrudescendo  a  questão,  o coronel Francisco  Alves  Feitosa   vira-se   na  emergência de  solidarizar-se  com  o  seu irmão  e  parentes,  nos  últimos  atos.[2]   
               
        Esse episódio configurou o maior conflito agrário da história do Ceará, tomando proporções tão consideráveis que, a exigência pelo fim deste entrevero, necessitou bater às portas da Coroa Portuguesa, a qual aconselhou às autoridades locais que procedessem drasticamente em relação aos líderes desse levante. Para tanto, o governo português também encarregou um funcionário do seu alto escalão para apurar os fatos e punir os culpados.
         Tão logo se abriu a sindicância, a respeito da Guerra entre Montes e Feitosas, os culpados foram indigitados. Assim, Francisco, os dois Lourenços e alguns outros membros de sua parcialidade foram responsabilizados pelo embate.
         Entretanto, ainda no auge da contenda armada, entre os anos de 1724 e 1725, o governador da Capitania do Ceará já havia aplicado penalidades a alguns dos líderes da sublevação, suspendendo-lhes as respectivas patentes,[3] pois enorme era o poder e influência dado a estes indivíduos em tais cargos, providos e escudados no seio do próprio Estado.
         Frise-se que Lourenço Alves Feitosa, ao chegar de Pernambuco, já ostentava o cargo militar sob o título de Alferes.[4] Contudo haveria de angariar patamar mais elevado, chegando a Comissário Geral.[5] Quanto a Francisco, este só seria tratado pelo nome de Coronel, em documentos oficiais, a partir de 1722.[6] Apesar de essa nomeação, para o referido cargo, ter ocorrido em data anterior.
         O exato momento dessa nomeação, para o posto de Coronel, é dado pelo pai da história cearense, Antônio Bezerra, o qual assegurou que: "O Capitão Salvador Alves, além de tudo nomeou Francisco Alves Feitosa, coronel de Cavalaria das Ribeiras de Quixelou e Inhamus, por carta patente de 15 de junho de 1719"[7]. Partindo de tal afirmativa, feita pelo douto historiador cearense, seria vã ousadia tentar contestá-lo em posição tão categórica. Assim, doravante, todos os historiógrafos comungaram invariavelmente da mesma opinião, apenas repetindo-a.
        Denotaria exacerbada pretensão negar as premissas promanadas por Antônio Bezerra, porque seus escritos quase sempre se respaldam em fontes primárias, ou seja, para ele os documentos são os mais seguros meios de conhecer a verdade. Dessa forma, seguindo preceitos do positivismo, o grande escritor despreza as demais fontes dessa ciência, desacreditando-as com as seguintes palavras: "Onde a crônica se cala, diz Garret, e a tradição não fala ou fala falsamente, digo eu, antes quero uma página inteira de pontinhos ou toda branca ou toda preta...do que uma só linha de invenção do croniqueiro".[8]
         Enristando esses argumentos, Antônio Bezerra atribui completo descrédito aos cronistas da história cearense. Fato que influenciou e ainda influencia muitos dos entusiastas da história do Ceará, que tendem a considerar o trabalho desses cronistas uma simples obra folclórica, ou fruto de pura invencionice.
         No entanto, João Brígido fez por bem rebater esse posicionamento metrificado sobre os fatos, sustentando renhida luta na seara intelectual, e acerbamente definindo o perfil de seu principal opositor na seguinte frase: "Todo Bezerra é infalibilista e admite o absoluto (...)S.Sª - como escritor, enleia, como patriota, peca errando o alvo; como historiógrafo, tem vesga alma, a mente a coxear, o estudo falho, produzindo bolhas só, algumas vezes fumaça; luz, absolutamente nunca".[9] Além disso, João Brígido parece não ter ganhado a simpatia de outros ícones da intelectualidade herodotiana.[10] 
         Esse embate ainda hoje perdura por meio dos escritos legados ao presente momento, onde muitas questões continuam permeadas de dúvidas, enquanto outras já repousam em pacífica aceitação. Contudo, o tempo é o juiz ideal para dirimir conflitos dessa espécie, dando oportunidade para o surgimento de novas evidências, as quais poderão trazer a lume acontecimentos ofuscados, ou mesmo redirecionar o que se mostra pronto e acabado.
         Logo, o aparecimento do documento referente à confirmação da carta patente do Coronel Francisco Alves Feitosa desdiz, em parte, Antônio Bezerra, ao revelar que o posto de Coronel não era de Cavalaria, mas de Infantaria, conforme se extrai da seguinte transcrição[11]:

Diz Francisco Alves Feitosa que o governador da Capitania de Pernambuco o   proveu  no  posto  de  Coronel   de  Infantaria  de  Ordenança  da Ribeira dos Inhamuns  Distrito da Capitania do Ceará Grande, e porque  para  melhor   continuar  o  Real serviço de  Vossa Majestade  necessita  de  sua patente confirmada.
Para que Vossa Majestade lhe faça mercê mandar confirmar da sua patente na forma do estilo.
Duarte Sodré Pereira Tibão donatário da Vila de Águas Belas do Concelho de Sua Majestade que Deus guarde Governador e Capitão Geral de Pernambuco, e mais Capitanias anexas [etc]. Faço saber aos que esta carta patente virem que por parte de Francisco Alves Feitosa se me representou estar exercendo o posto de Coronel de Regimento de Infantaria de Ordenança da Ribeira dos Inhamuns da Capitania do Ceará por nomeação do Capitão-mor que foi dela João Batista Furtado pedindo-me lhe mandasse passar patente de confirmação do dito posto em que foi provido por baixa que se deu dele a Matheus Monis Barreto, que o servia, por haver faltado a atos demonstrados, e visto seu requerimento e me constar ser um dos homens nobres,  afazendado e de bom procedimento, como pelo bem que tem servido a Sua Majestade em as mesmas Ordenanças daquela Ribeira com os postos imediatos, tendo-se havido com inteira satisfação na execução de tudo o que de que fora encarregado com muito zelo do Real serviço e esperando dele que daqui em diante se haverá da mesma maneira em conduzir a confiança que faço da sua pessoa. Ei por bem de confirmar, e prover em o referido posto de Coronel do Regimento da Infantaria de Ordenança da Ribeira dos Inhamuns que vagou. Como fica dito para que o seja visto e exerça e goze de todas as honras, graças, franquezas, privilégios e liberdades que em razão do dito posto lhe tocarem. Pelo que ordeno ao Capitão-Mor daquela Capitania o deixo continuar a exercer debaixo da mesma posse e juramento que se lhe deu quando nele entrou a servir, e os oficiais maiores e menores, e soldados do dito regimento lhe obedeçam e cumpram suas ordens de palavras e por escrito inteiramente como devem e são obrigados. E por firmeza de tudo lhe mandei passar a presente por mim assinada e selada com o sinete de minhas armas, que se registrara nos livros da secretaria deste Governo. Câmara de Olinda, e Vedoria Geral. Dada nesta praça do Recife de Pernambuco em os vinte e três dias do mês de junho. Bento Soares Pereira a fez, ano de mil setecentos e trinta e três, o secretário José Duarte Cardoso a fez escrever.
Duarte Sodré Pereira Tibão
Carta patente pela qual Vossa Senhoria houve por bem confirmar de Francisco Alves Feitosa no posto de Coronel do Regimento de Infantaria da Ribeira dos Inhamuns em que foi provido pelo Capitão-Mor da Capitania do Ceará João Batista Furtado como nela se declara.
Para Vossa Senhoria Ver.
Registrada no Livro 1º de Registros de Patentes que serve nesta Secretaria do Governo de Pernambuco a folha 230 frente e verso. 23 de junho de 1733.
José Duarte Cardozo.[12]
            
      Desta maneira, corrige-se o engano do grande historiador Antônio Bezerra, e, consequentemente, retifica-se o erro herdado pelos demais historiógrafos a respeito da sobredita patente. Agora, tem-se a certeza de que um dos principais desbravadores do Cariri e Inhamuns, Francisco Alves Feitosa, ostentava, na verdade, o posto de Coronel do Regimento da Infantaria de Ordenança dos Inhamuns.

BIBLIOGRAFIA:

Couto, Monsenhor Francisco de Assis, Monografias (Paróquia de Iguatu, Gênese de Iguatu, História do Icó, Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus), Fortaleza/CE, Editora A. Batista Fontenele, 1999.

Bezerra, Antônio, Algumas Origens do Ceará, Fortaleza/CE, Editora Fundação Waldemar Alcântara, 2009.

Brígido, João, Ceará (Homens e Fatos), Fortaleza/CE, Editora Demócrito Rocha, 2001.

Studart, Guilherme, NOTAS PARA A HISTÓRIA DO CEARÁ, Brasília/DF, Senado Federal, 2004.


DOCUMENTOS:

Documentos Manuscritos e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE Editora Universitária (UFPE), 2006.

Datas de Sesmarias, Volume IV, nº 202, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925.

Datas de Sesmarias, Volume VI, nº 467, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925.

Datas de Sesmarias, Volume XI, nº 39, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1926.



[1] Documentos Manuscritos e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE, Editora Universitária (UFPE), 2006.
[2] Couto, Monsenhor Francisco de Assis, Monografias (Paróquia de Iguatu, Gênese de Iguatu, História do Icó, Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus), Fortaleza/CE, Editora A. Batista Fontenele, 1999, p. 81.
[3] Op cit., p. 39.
[4] Em 26 de janeiro de 1727, Lourenço já era tratado por esse axiônimo (Datas de Sesmarias, Volume IV, nº 202, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925).
[5] Lourenço é tratado como Comissário Geral, em documentos oficiais na data de 06 de fevereiro de 1720, (Datas de Sesmarias do Ceará, Volume VI, nº 467, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925).
[6] Em 17 de julho de 1722 (Datas de Sesmarias do Ceará, Volume XI, nº 39, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1926).
[7] Bezerra, Antônio, Algumas Origens do Ceará, Fortaleza/CE, Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 132.
[8] Op. cit., p. 130.
[9] Brígido, João, Ceará (Homens e Fatos), Fortaleza/CE, Editora Demócrito Rocha, 2001, p.329 e 342.
[10] O Barão de Studart faz críticas severas aos escritos de João Brígido e Pedro Théberge (NOTAS PARA A HISTÓRIA DO CEARÁ, Brasília/DF, Senado Federal, 2004, p. 33).
[11] Documentos Manuscritos e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE, Editora Universitária (UFPE), 2006. Documento datado de 17 de agosto de 1735.

[12] A presente transcrição primou mais pelo aspecto didático, para isso, utilizando uma escrita mais afeita à atual língua portuguesa.