DOCUMENTOS INÉDITOS: (I)
CONFIRMAÇÃO DE CARTA PATENTE DO CORONEL FRANCISCO ALVES FEITOSA
Heitor
Feitosa Macêdo
A
história quase sempre é recontada a partir do surgimento de novos documentos,
antes imersos em poeiras e esquecimento. E para contribuir com esse processo, o
Projeto Barão do Rio Branco (Projeto Resgate) promete pôr fim a uma parte
desconhecida e distorcida da história do Brasil, concorrendo para isso a
elucidação da Carta Patente conferida ao sesmeiro e colonizador pernambucano
Francisco Alves Feitosa.
Esse projeto é fruto da empreitada do Ministério da Educação,
da iniciativa do Embaixador Vladimir Murtinho e da Dr.ª Esther Caldas
Bertolette, consistindo no resgate das imagens de documentos manuscritos
referentes ao Brasil colonial, espalhados pelo exterior.
O conteúdo de tais manuscritos vai desde simples
correspondências até cartas régias, além de pareceres do Conselho Ultramarino e
do Conselho da Fazenda. A identificação e a triagem dessa documentação foram
realizadas por Professores Doutores de diversas Universidades, resultando em
milhares de imagens em CD-ROMS e microfilmes.[1]
O presente documento, confirmação de carta patente, faz
parte da coletânea compulsada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal,
referente à Capitania de Pernambuco, material bastante extenso, com 33 mil
documentos, por conta de essa Capitania ter mantido sob sua jurisdição outras
como a de Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
A ciência histórica vive às voltas com sua própria dinâmica,
volvendo-se no tempo para reescrever afirmativas dantes tão categóricas,
mudando o curso dos fatos segundo o paulatino aparecimento de outras fontes
primárias. Contudo, vez por outra um cartapácio se revela sacudindo o pó do
esquecimento, e trazendo uma visão mais exata dos fatos, carreando uma nova
verdade histórica. E isso é o que tem frequentemente ocorrido com a
redescoberta desses preciosos documentos.
Nesse momento, a história, principalmente a de cunho
regional, goza de novos e esclarecedores auspícios, e dentre os milhares
documentos relativos à Capitania de Pernambuco, um vem corrigir a falsa
assertiva adotada por historiadores até o presente instante.
Trata-se da patente conferida ao pernambucano Francisco
Alves Feitosa, que migrou para a Capitania do Ceará, juntamente com o irmão
(Lourenço Alves Feitosa), em meados de 1700, com fulcro em peticionar datas de
sesmarias que estavam sendo doadas a torto e a direito.
Quando da sua chegada, escolhera a ribeira do Icó como
domicílio. Neste mesmo lugar, residiam as principais famílias do Cariri,
lideradas em sua maioria por empreendedores do ciclo do gado, que buscavam
terras nas imensidões agrestes para o estabelecimento de seus currais.
Francisco havia desposado uma viúva pertencente a um importante grupo familiar
dominante e residente nessa mesma localidade, Isabel de Montes Silva, com a
qual trespassava o bucólico cotidiano.
Entretanto,
o irmão de Francisco visava à
tornar-se mais rico e poderoso, não lhe bastando as léguas de terras que havia
recebido por doação sesmarial nas Capitanias de Pernambuco e Ceará. Lourenço
ambicionava todas as terras que os olhos podiam alcançar. Fato que causou
desagrado aos irmãos da esposa de Francisco, culminando em um enfrentamento
armado.
O
Coronel Francisco Alves Feitosa, justiça se lhe faça, soube
compreender a aflitiva situação de sua consorte, não tomando
parte nos três
primeiros atos de hostilidades dos seus
parentes, pois que
as tomadas das terras do Riacho Trussu-Barra e a famosa lagoa do Iguatu foram atos, que o comissário
geral Lourenço Alves Feitosa encabeçou, sozinho. No terceiro ato, porém, entraram, em cena,
os dois
Lourenços pai e filho. Bloquearam,
em Icó o coronel Montes, situando-se ambos
nas testadas de suas terras. Tornaram-se, destarte, vizinhos de terras.
Recrudescendo a questão,
o coronel Francisco Alves Feitosa
vira-se na emergência de solidarizar-se com o seu irmão e parentes,
nos últimos atos.[2]
Esse
episódio configurou o maior conflito agrário da história do Ceará, tomando
proporções tão consideráveis que, a exigência pelo fim deste entrevero,
necessitou bater às portas da Coroa Portuguesa, a qual aconselhou às
autoridades locais que procedessem drasticamente em relação aos líderes desse
levante. Para tanto, o governo português também encarregou um funcionário do
seu alto escalão para apurar os fatos e punir os culpados.
Tão logo se abriu a sindicância, a respeito da Guerra entre
Montes e Feitosas, os culpados foram indigitados. Assim, Francisco, os dois
Lourenços e alguns outros membros de sua parcialidade foram responsabilizados
pelo embate.
Entretanto, ainda no auge da contenda armada, entre os anos
de 1724 e 1725, o governador da Capitania do Ceará já havia aplicado
penalidades a alguns dos líderes da sublevação, suspendendo-lhes as respectivas
patentes,[3]
pois enorme era o poder e influência dado a estes indivíduos em tais cargos,
providos e escudados no seio do próprio Estado.
Frise-se que Lourenço Alves Feitosa, ao chegar de
Pernambuco, já ostentava o cargo militar sob o título de Alferes.[4]
Contudo haveria de angariar patamar mais elevado, chegando a Comissário Geral.[5]
Quanto a Francisco, este só seria tratado pelo nome de Coronel, em documentos
oficiais, a partir de 1722.[6]
Apesar de essa nomeação, para o referido cargo, ter ocorrido em data anterior.
O exato momento dessa nomeação, para o posto de Coronel, é
dado pelo pai da história cearense, Antônio Bezerra, o qual assegurou que: "O Capitão Salvador Alves, além de tudo
nomeou Francisco Alves Feitosa, coronel de Cavalaria das Ribeiras de Quixelou e
Inhamus, por carta patente de 15 de junho de 1719"[7]. Partindo
de tal afirmativa, feita pelo douto historiador cearense, seria vã ousadia
tentar contestá-lo em posição tão categórica. Assim, doravante, todos os
historiógrafos comungaram invariavelmente da mesma opinião, apenas repetindo-a.
Denotaria exacerbada pretensão negar as premissas promanadas
por Antônio Bezerra, porque seus escritos quase sempre se respaldam em fontes
primárias, ou seja, para ele os documentos são os mais seguros meios de
conhecer a verdade. Dessa forma, seguindo preceitos do positivismo, o grande
escritor despreza as demais fontes dessa ciência, desacreditando-as com as
seguintes palavras: "Onde a crônica
se cala, diz Garret, e a tradição não fala ou fala falsamente, digo eu, antes
quero uma página inteira de pontinhos ou toda branca ou toda preta...do que uma
só linha de invenção do croniqueiro".[8]
Enristando esses argumentos, Antônio Bezerra atribui
completo descrédito aos cronistas da história cearense. Fato que influenciou e
ainda influencia muitos dos entusiastas da história do Ceará, que tendem a
considerar o trabalho desses cronistas uma simples obra folclórica, ou fruto de
pura invencionice.
No entanto, João Brígido fez por bem rebater esse
posicionamento metrificado sobre os fatos, sustentando renhida luta na seara intelectual,
e acerbamente definindo o perfil de seu principal opositor na seguinte frase: "Todo Bezerra é infalibilista e admite o
absoluto (...)S.Sª - como escritor, enleia, como patriota, peca errando o alvo;
como historiógrafo, tem vesga alma, a mente a coxear, o estudo falho,
produzindo bolhas só, algumas vezes fumaça; luz, absolutamente nunca".[9] Além
disso, João Brígido parece não ter ganhado a simpatia de outros ícones da
intelectualidade herodotiana.[10]
Esse embate ainda hoje perdura por meio dos escritos legados
ao presente momento, onde muitas questões continuam permeadas de dúvidas,
enquanto outras já repousam em pacífica aceitação. Contudo, o tempo é o juiz
ideal para dirimir conflitos dessa espécie, dando oportunidade para o surgimento
de novas evidências, as quais poderão trazer a lume acontecimentos ofuscados,
ou mesmo redirecionar o que se mostra pronto e acabado.
Logo, o aparecimento do documento referente à confirmação da carta
patente do Coronel Francisco Alves Feitosa desdiz, em parte, Antônio Bezerra,
ao revelar que o posto de Coronel não era de Cavalaria, mas de Infantaria,
conforme se extrai da seguinte transcrição[11]:
Diz Francisco Alves Feitosa que o governador da Capitania de Pernambuco
o proveu no posto
de Coronel
de Infantaria de Ordenança
da Ribeira dos Inhamuns Distrito da Capitania do Ceará Grande, e
porque para melhor continuar o Real
serviço de Vossa Majestade necessita de sua
patente confirmada.
Para que Vossa Majestade lhe faça
mercê mandar confirmar da sua patente na forma do estilo.
Duarte
Sodré Pereira Tibão
donatário da Vila de Águas Belas do Concelho de Sua Majestade que Deus guarde Governador
e Capitão Geral de Pernambuco, e mais Capitanias anexas [etc]. Faço saber aos
que esta carta patente virem que por parte de Francisco Alves Feitosa se me representou estar exercendo o posto
de Coronel de Regimento de Infantaria de
Ordenança da Ribeira dos Inhamuns da Capitania do Ceará por nomeação do Capitão-mor que foi dela
João Batista Furtado pedindo-me lhe mandasse passar patente de confirmação
do dito posto em que foi provido por
baixa que se deu dele a Matheus Monis Barreto, que o servia, por haver
faltado a atos demonstrados, e visto seu requerimento e me constar ser um dos homens
nobres, afazendado e de bom
procedimento, como pelo bem que tem servido a Sua Majestade em as mesmas
Ordenanças daquela Ribeira com os postos imediatos, tendo-se havido com inteira
satisfação na execução de tudo o que de que fora encarregado com muito zelo do
Real serviço e esperando dele que daqui em diante se haverá da mesma maneira em
conduzir a confiança que faço da sua pessoa. Ei por bem de confirmar, e prover
em o referido posto de Coronel do
Regimento da Infantaria de Ordenança da Ribeira dos Inhamuns que vagou. Como fica dito para que o
seja visto e exerça e goze de todas as honras, graças, franquezas, privilégios
e liberdades que em razão do dito posto lhe tocarem. Pelo que ordeno ao
Capitão-Mor daquela Capitania o deixo continuar a exercer debaixo da mesma
posse e juramento que se lhe deu quando nele entrou a servir, e os oficiais
maiores e menores, e soldados do dito regimento lhe obedeçam e cumpram suas
ordens de palavras e por escrito inteiramente como devem e são obrigados. E por
firmeza de tudo lhe mandei passar a presente por mim assinada e selada com o
sinete de minhas armas, que se registrara nos livros da secretaria deste Governo.
Câmara de Olinda, e Vedoria Geral. Dada nesta praça do Recife de Pernambuco em os vinte e três dias do mês
de junho. Bento Soares Pereira a
fez, ano de mil setecentos e trinta e
três, o secretário José Duarte
Cardoso a fez escrever.
Duarte
Sodré Pereira Tibão
Carta patente pela qual Vossa
Senhoria houve por bem confirmar de Francisco
Alves Feitosa no posto de Coronel do Regimento de Infantaria da Ribeira dos
Inhamuns em que foi provido pelo Capitão-Mor da Capitania do Ceará João
Batista Furtado como nela se declara.
Para Vossa Senhoria Ver.
Registrada
no Livro 1º de Registros de Patentes que
serve nesta Secretaria do Governo de Pernambuco a folha 230 frente e verso. 23
de junho de 1733.
José Duarte Cardozo.[12]
Desta maneira, corrige-se o engano do
grande historiador Antônio Bezerra, e, consequentemente, retifica-se o erro herdado pelos
demais historiógrafos a respeito da sobredita patente. Agora, tem-se a certeza de
que um dos principais desbravadores do Cariri e Inhamuns, Francisco Alves
Feitosa, ostentava, na verdade, o posto de Coronel
do Regimento da Infantaria de Ordenança dos Inhamuns.
BIBLIOGRAFIA:
Couto, Monsenhor Francisco de Assis, Monografias (Paróquia de Iguatu, Gênese de
Iguatu, História do Icó, Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus),
Fortaleza/CE, Editora A. Batista Fontenele, 1999.
Bezerra, Antônio, Algumas Origens do Ceará, Fortaleza/CE, Editora Fundação Waldemar Alcântara,
2009.
Brígido, João, Ceará (Homens e Fatos), Fortaleza/CE, Editora Demócrito Rocha, 2001.
Studart, Guilherme, NOTAS PARA A HISTÓRIA DO CEARÁ, Brasília/DF, Senado Federal, 2004.
DOCUMENTOS:
Documentos
Manuscritos e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE
Editora Universitária (UFPE), 2006.
Datas de Sesmarias, Volume
IV, nº 202, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925.
Datas de Sesmarias, Volume
VI, nº 467, Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925.
[1] Documentos Manuscritos e Avulsos
da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE, Editora
Universitária (UFPE), 2006.
[2] Couto, Monsenhor Francisco de
Assis, Monografias (Paróquia de Iguatu, Gênese de Iguatu, História do Icó,
Diocese de Iguatu, Origens de São Mateus), Fortaleza/CE, Editora A. Batista
Fontenele, 1999, p. 81.
[3] Op cit., p. 39.
[4] Em 26 de janeiro de 1727, Lourenço
já era tratado por esse axiônimo (Datas de Sesmarias, Volume IV, nº 202,
Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925).
[5] Lourenço é tratado como
Comissário Geral, em documentos oficiais na data de 06 de fevereiro de 1720, (Datas
de Sesmarias do Ceará, Volume VI, nº 467,
Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1925).
[6] Em 17 de julho de 1722 (Datas
de Sesmarias do Ceará, Volume XI, nº 39,
Fortaleza/CE, Tipografia Gadelha, 1926).
[7] Bezerra, Antônio, Algumas
Origens do Ceará, Fortaleza/CE, Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 132.
[8] Op. cit., p. 130.
[9] Brígido, João, Ceará (Homens e
Fatos), Fortaleza/CE, Editora Demócrito Rocha, 2001, p.329 e 342.
[10] O Barão de Studart faz críticas
severas aos escritos de João Brígido e Pedro Théberge (NOTAS PARA A HISTÓRIA DO
CEARÁ, Brasília/DF, Senado Federal, 2004, p. 33).
[11] Documentos Manuscritos
e Avulsos da Capitania de Pernambuco, Catálogo III (1798-1825), Recife/PE, Editora
Universitária (UFPE), 2006. Documento datado de 17 de agosto de 1735.
[12] A presente transcrição primou
mais pelo aspecto didático, para isso, utilizando uma escrita mais afeita à
atual língua portuguesa.
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