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domingo, 5 de abril de 2020

Angico: árvore sagrada dos índios do sertão nordestino!


Angico: árvore sagrada dos índios do sertão nordestino!

                                                                Heitor Feitosa Macêdo
                                                     (advogado e pesquisador)

         Na oralidade, bibliografia e documentação manuscrita é possível encontrar referência a diversas árvores consideradas sagradas pelos antigos povos habitantes dos sertões do Nordeste, como, por exemplo, os umbuzeiros e juazeiros, pois, quem não já ouviu falar em uma história de assombração envolvendo estas espécies, vultos e visagens que aparecem debaixo das suas copas, pedras que são arremessadas, etc.
         Outros vegetais que também se relacionam aos cultos religiosos dos “índios” do interior são o toré ou torem, que se tornou nome de uma dança específica; os pequizeiros, que alimentavam esta gente na chapada do Araripe; o manacá e a jurema, com as quais faziam uma bebida para se comunicar com o mundo invisível.
         Sobre isto não existe muito segredo, apesar da escassez das fontes!
         E o que tem a ver o angico com a religiosidade indígena?
         Nos sertões do Ceará, o angico que se conhece é uma árvore frondosa, com caule repleto de acúleos, grossos na base e pontiagudos na extremidade, à feição de espinhos. Suas folhas são usadas para encher a parte inferior das selas e cangalhas, a fim de não causar “pisaduras” (hematomas) no lombo dos cavalos, burros e jumentos. Sua casca é rica em tanino, sendo, por isso, utilizada para curtir couros. Seu caule também libera uma resina, parecendo um cristal castanho, a qual sinaliza a aproximação do inverno (Alemão, p. 189) bem como também é utilizada para consumo, pelos menos foi o que vi e provei na fazenda Aguilhadas, no sertão cearense dos Inhamuns, estando na casa dos Valadão, descendentes diretos dos índios Jucá.
         Câmara Cascudo afirma que o angico também faz parte da flora medicinal do Catimbó (da língua tupi, “catimbau” = cachimbo), espécie de religião sincrética com forte influência indígena, principalmente da Pajelança. Este pesquisador aponta diversas propriedades terapêuticas do referido vegetal, o qual entrava, inclusive, na preparação do rapé, o mesmo paricá (Meleagro, p. 95).
         Já possuindo estas preciosas informações, tive a sorte de encontrar um documento curioso, na Torre do Tombo, Portugal, datado de 7 de outubro de 1756, o qual trata de uma denúncia feita diante do Tribunal da Inquisição por um padre capuchinho contra um índio feiticeiro, no Brasil.
         O padre se chamava frei Fidelis de Partana, missionário na Aldeia do Apodi, no Rio Grande do Norte. Esta aldeia, reunindo índios Paiacu, havia sido criada pelos jesuítas em 1700, durante a Guerra dos Bárbaros, porém, em 1735, passou para a administração dos Capuchinhos, os mesmos Barbadinhos (Em Nome da Liberdade, Lopes, p. 137).
         O índio denunciado tinha nome cristão, Gaudêncio, por já ser batizado, porém pertencia à nação dos Paiacu, povo que mantinha relações estreitas de parentesco com os Canindé, os Janduim, os Jenipapo e outros, todos incluídos, genericamente, no grupo dos Tapuia, isto é, índios que não falavam a língua dita Geral, o Tupi.
         A denúncia consistiu na apuração de uma confissão feita pelo índio Gaudêncio, autor de feitiçarias, com as quais, supostamente, havia matado 49 pessoas, deixando a sua quinquagésima vítima em estado grave. As causas que teriam levado aos crimes de feitiçaria eram diversas, como ciúmes de sua esposa, por vingança, por garapa de cana, por disputa de mulheres, por comida, por desentendimento com os comparsas de furtos, etc.
         Os instrumentos para realizar o feitiço eram cinco, a exemplo de um pedaço de pau, do tamanho de um prego caibral; um cordão de algodão em formato de cobra; e uma pedra de corisco, isto é, uma machadinha.
         O índio também confessou que para realizar os feitiços tomava jurema e angico. Aí via o diabo, bem como figuras horrendas, com pés de patos, chifres de bode, cabelos grossos, orelhas de cachorro. Igualmente, afirmou que, neste transe, além de voar, enxergava mulheres, com as quais mantinha relações carnais.  
         Sobre as informações trazidas por este documento, cabem várias análises, a depender do ponto de vista do estudioso. Todavia, o que mais me chamou a atenção foi o fato de estes índios usarem o angico em seus rituais religiosos para a elevação da alma. Mais curioso ainda é saber que, no Cariri/CE, dizia-se haver no Exú/PE, no pé da chapada do Araripe, nascentes tapadas com cera de abelha e troncos de angico. Será mera coincidência? Acho que não.
    
Transcrição Paleográfica feita por Heitor Feitosa Macêdo, no dia 05/04/2020:

         Aos Sete dias do mes de Outubro de1756, perante mim, foi per-/ guntado Pello R.do P.e M.e Fr. Fidelis de Partanna MiSsionario Ca/ puxinho da Aldeya do Apudi naçao̓ doPayacu, o Indio pornome/ Gaudencio, por seter descuberto por feiticeiro, aq.tas peSsoas tinhamorto com/ feiticos, nomeou as Seg.tes preSentes as testemunhas q serviraó de/ interprete, a Saber o Sarg.to Mor da Aldeya Bonifacio Teixr.a/ eo Cap.am Joze Barboza e tudo confeSsou sem ser constrangido, nem/ por medo nem por castigo.
o 1º a q.m matou foi Antonio, q hua̓ briga teve comelle,/ equis experimenttar se era certo oq lhetinha/ emsinado seo M.e por nome Joao̓ [palavra ilegível]
o 2º por nome Néculao por ciúmes co̓ sua m.er
o 3º M.el por hu̓ q.to decarne q lhenao̓ quis dar
o 4º Lourença por ter brigado com sua m.er
o 5º Joanna por ter brigado cum elle por hua pou-/ ca de garapa
o 6º Ant.o p ter brigado co̓ elle por garapa
o 7º M.el pello ter ameaçado
o 8º Marianna p ter brigado co̓ sua May elhedar nacabeça
o 9º João Ferr.a p ter morto a seu Pay co feitiços
o 10 Anto Mayano p ter dado em seo Pay
o 11 Amaro p dizer andava co̓ sua m.er
o 12 Niculao p brigar co̓ elle emtropas furtando
o 13 An.to [Mandanho?] por mulheres
o 14 Mariana m.er de An.to de Moraes p lhedar hum/ golpe em hua̓ maò
o 15 An.to p brigar co̓ elle p hu̓ porco do matto
o 16 M.el p brigar có seu Pay
o 17 Anastacia m.er deP.o p matar asuaMay có feitiSsos
o 18 Catharina por estumar hu̓ cachorro aseo Pay q/ hia furtar garapa [fl. 01]


19 – Mariana soltr.a p naò querer ter acto carnal comelle
20 – Mauricia p brigar có sua m.er
21 – Perpetua soltr.a p brigar có sua m.er
22 – Leonor soltr.a p brigar com elle
23 – Carrillo por matar có feitiços a a 2 f.os seos
24 – Alberto p peditorio de outro, q p lhe botar huns pôs/ como salitre emgarapa morreo de Rep.te
25 – D.os de Frois p matar ahu̓ seo neto co̓ feitiços
26 – An.to Pr.a eSua m.er p matar a a sua Neta có feitiços
28 – Serafina Viuva p dizer q elle contava alguas/ couzas ao P.e p cuja cauza lhe deu alguás pancadas
29 – Bento Nunes p matar aSeo Irmaó có feitiços
30 – P.o por lhe matar co̓ feitiços a outro Seo Irmão
31 – Joze Gomes p.das com sua m.er
32 – CaSsiano p mulheres
33 – Niculao p pro fia aq.l era mayor feiticeiro
34 – An.to Pr.a por lhe botar feitiço, ecomo naò morreo/ lhebotou outro mais forte eomatou logo
35 – o Cap.am Mor Aleixo Teixr.a p ter castigado aseo sobr.o
36 – Joze p ter morto com feitiços asua Madrasta
37 – Joào Nunes tambem Cap.am mor desta Aldeya/ p dizer q o havia de matar p feiticeiro
38 – Luis Mendes Irmão do Cap.am Mor p ter dado/ emsua sobr.a com hú pao
39 – Antonica soltr.a vinda da Aldeya de N. Sr.a/ da Palma do Canindê, p experimentar seos seos (sic)/ feitiços erão mais fortes
40 – An.to Pr.a p matar aSua Irmáa̓
41 – Serafina Viuva p publicar q era feiticeiro
42 – M.a deMattos Viuva p brigar com sua m.er
43 – M.el velho p ter jurado deo mattar [fl. 02]


44 – Fran.ca viuva pello descompor depalavras
45 – Fran.ca m.er do Cap.m Mor Joao̓ Nunes por ter dito tinha morto/ aseo [murido?]
46 – Lourenço p ter brigado co seo f.o
47 – Jacinto p duvidas de Roças
48 – o Cap.am Miguel p lhequerer dar por bebado
49 – Thomazia por lhe pedir o dito Jacinto
50 – Izabel m.er deFloriano p lhe negar f.a Esta ainda naò mor-/ reo, mas esta p.a iSso.
         E diSse mais q´ todas as vezes q queria botar feitiços lhe parecia o diabo./ DiSse tambem q todas as vezes q bebia jurema, ou angico lheapareciào/ m.tas evarias figuras horrendas, alguás com cabellos groseiros, e/ barbas como bode, outras com xifres debode, epe depato, eorelhas/ comode caxorro, alguás emformade mulheres, com q.m tinha acto/ carnal, elhe prometeo deo servir sempre, eq q.do quizeSse morrer/ se valeSse delle.
         As couzas q selhe acharaò comq matava saò as seguintes/
a 1ª he hu̓ pedaço de pao do tamanho de hu̓ prego caibrar, q fa/ zendo pontaria com elle sem olugar da mao̓ matava âquella/ peSsoa aq.m o indireitava.
a 2ª huá pedra decorisco, com q fazia o mesmo efeito
a 3ª huá pedra branca do feitio de Salitre có o mesmo efeito
a 4ª hú pedaco debreu q fazia o mesmo
a 5ª hú cordaò comprido defio dealgodao̓ trocido docomprim.to/ de tres braças pouco mais ou menos, húa ponta fina, e/ na outra tinha huá boca comodecobra, e q se estendia/ meya Legoa p.r fazer mal aq.m elle queria
         DiSse mais q voava q.do queria untando opeito com emgoento preto/ elogo emcolhia os pes, elhe sahia penas, evoava, e sequeria carregar/ outro untava as costas. Isto he odeq selembra athe hoje, edaqui/ pordiante setiver mais q confeSsar opoderâ escrever q.m o souber [fl. 03]


q eu por hir deviagem, em naò poder deter Lâ certifico, oq/ lhe ouvi, eo juro in verbo sacerdotis aos 7b.o Sobredito/ mes, e anno.
         Fr. Graciano de S. D.os
         Frey Fidelis de Partanna Mis.o:Ap:Cap.