O
Cariri nos Estudos sobre a Etimologia da Palavra Cangaço
Heitor Feitosa Macêdo
(advogado
e pesquisador)
A discussão acerca da origem da
palavra “cangaço” parece ter arrefecido diante das opiniões de escritores
consagrados, como a de um dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL),
Gustavo Barroso, o qual adota “canga de aço” como sendo a razão etimológica do
termo cangaço. Ocorre que, até o presente, a maioria dos estudiosos tem se
apoiado nessa hipótese para explicar a formação deste vocábulo, fato que merece
ser reavaliado diante de novas fontes de informação.
Diferentes
Significados de Cangaço e Cangaceiro
Ao
contrário do que se pensa, a palavra cangaço não define apenas a forma de
banditismo rural ocorrida nos sertões do Nordeste em épocas passadas, possuindo
também outros significados.
Afora
o modo de vida adotado pelos indivíduos cangaceiros, ou seja, o cangaceirismo,
Aurélio Buarque de Holanda também registra que cangaço pode referir-se ao
engaço de uvas depois de pisadas e de extraído o vinho; ou ao conjunto de armas
dos cangaceiros e; ainda, pode reportar-se aos objetos de uso de uma casa
pobre; bem como ao pedúnculo e à espada do coqueiro, que se desprendem da
árvore quando secos.
O
historiador e folclorista Câmara Cascudo não se afasta muito da definição dada
anteriormente, contudo, complementa que, no sertão (interior do continente),
cangaço igualmente alude aos utensílios do cangaceiro, como o preparo, carrego,
aviamento, e, além das armas, diz respeito às munições, bornais, bisaco com
suprimentos, balas, alimentos secos, meizinhas tradicionais, roupa, etc. No
mais, acrescenta ele que os termos “tomar o cangaço”, “viver no cangaço”,
“andar no cangaço” e “debaixo do cangaço” são sinônimos do bandoleiro,
assaltador profissional, ladrão de mão armada, bandido.
Antonio
Geraldo da Cunha afirma em sua obra que cangaço teria registro desde 1813,
fazendo menção ao engaço das uvas depois de pisadas, ademais, opina que o termo
se relaciona ao modo de vida dos cangaceiros e ao conjunto de suas armas.
Igualmente, no trabalho de Francisco Fernandes veem-se as mesmas definições,
como engaço, bagaço, cango, canganho, tarecos, vida de cangaceiro, banditismo
ou bandoleirismo.
O
Dicionário da Enciclopédia Britânica faz iguais digressões, no entanto, aponta
uma informação extra, asseverando que cangaço também pode significar animal
magro.
Esta ideia é reforçada por Abelardo F. Montenegro, o qual, baseado no Dicionário
da Gíria Brasileira, de Manuel Viotti, aponta que cangaço é também acepção de
animal magro ou de destroços.
Estudando
o vocabulário popular cearense, Raimundo Girão fala que cangaço poderia
significar o modus vivendi (modo de
viver) e o modus operandi (modo de
agir) de certos bandidos, ou os cacarecos e trastes pertencentes ao poviléu,
ou, ainda, o esqueleto do animal devorado por aves de rapina, a carcaça:
Cangaço
- s.m. Gênero de vida dos bandoleiros que até recentemente infestaram, com os
seus crimes e pavores, o Nordeste. Cangaceiro é o que vive dêsse modo, atacando
e matando. Bandido, salteador = Os cacarecos ou trastes de gente pobre: ‘Fulano
abandonou a casa e levou todo o seu cangaço’. Esqueleto devorado por aves de
rapina. Carcaça.
Já
Pedro Baptista assegura que, no início do século XX, em certos recantos do
sertão, cangaço referia-se à ossada, esqueleto de qualquer animal doméstico ou
selvagem. No mais, observa que o vocábulo “nem sempre designa o homem armado, o
mal fazejo, na linguagem simples”, mas, por vezes, é utilizado para distinguir
o guarda-costas (ou cabra) do “cabeça do bando”.
O
membro da Academia Brasileira de Letras, Gustavo Barroso, também apresenta uma
definição múltipla e bastante abrangente para o cangaço (fenômeno social) e
para as pessoas nele envolvidas (os cangaceiros):
O
cangaceiro do Norte é selvático e feroz, sofrendo de um descalabro nervoso –
produto da ancestralidade e do cruzamento étnico. Cangaceiro é o homem que vive
“debaixo do cangaço”. O cangaço não é somente, na linguagem sertaneja, o
armamento do bandoleiro; é, também, o seu modo de vida nômade, desregrado e
sanguinário. O termo cangaceiro estende-se a todas as modalidades do criminoso
nos sertões; é o salteador, o sequaz de atrabiliário e cruel dono de fazenda,
de ignorante e perverso chefe político; um criminoso perseguido pela justiça,
muitas vezes vítima da exarcebação de ódios políticos, que vive pelos matos às
ocultas, exercendo vinganças, cometendo desatinos, matando inimigos descuidosos
nas largas estradas solitárias; ou ainda os criminosos degenerados, tarados
pelo atavismo, com nevroses de todas as espécies.
Na
interpretação de Barroso, o cangaço era uma forma de vida que se espraiava por
todas as classes sertanejas do Nordeste, do rico ao pobre, do chefe político ao
agricultor, todos estavam envolvidos na cangaceiragem:
O
bandido, o salteador, o degenerado torvo, de faculdades deprimidas, o chefe
político vingativo e mau, o criminoso romântico, misto de generosidade e
selvageria, crueldade e nobreza, o chefe de família pundonorosa, susceptível,
bárbara, o foragido, todos são cangaceiros, todos têm a mesma paixão pela luta,
a mesma inclinação para essa vida incerta, vagabunda, com o perigo de uma
emboscada em cada moita, de uma cilada em cada risonha hospedagem: o mesmo
espírito ardiloso e premunido, a mesma selvatiqueza de sentimentos, idênticos
instintos de tigre, inclinações iguais, quase iguais psicopatias, tamanha
ferocidade.
Ressalta
o referido autor que, neste modo de vida cangaceiro, viviam grupos importantes
do sertão, famílias afidalgadas, a elite agrária dos sertões nordestinos de
outrora, a exemplo dos Barroso do Curu, os Cunhas do Boqueirão e outras:
Há
famílias de cangaceiros. A herança do crime perpetua-se de geração em geração;
e essa gente vive nas suas fazendas sempre cercada de bandoleiros, aureolada
pela fama dos feitos. Tem grande influência na sua zona, intervindo em todas as
questões, quer políticas, quer particulares, tudo podendo e ousando tudo. Assim
são, por exemplo, os Barroso do Curu, os Cunhas do Boqueirão, os Paulos do
Trapiá, os Dantas do Teixeira e os Feitosas dos Inhamuns.
Com
base neste relato e em outros escritos, Abelardo F. Montenegro classifica o
cangaço em dois sentidos, o primeiro, na “acepção lata” e, o segundo, na “acepção
estrita”, da seguinte forma:
Na
acepção lata, cangaceiro “é o salteador, o sequaz de atrabiliário e cruel dono
de fazenda, de ignorante e perverso chefe político; o criminoso perseguido pela
Justiça, muitas vezes vítima da exarcebação de ódios políticos, que vive pelos
matos às ocultas, exercendo vinganças, cometendo desatinos, matando inimigos
descuidosos nas largas estradas solitárias; ou ainda os criminosos
degenerados”.
Na
acepção estrita, “cangaceiro é aquele indivíduo que, tendo sido ultrajado por
outrem, em sua pessoa ou em algum membro de sua família, com o seu lar
descatado, violentado, desonrado, enfim se vinga do autor dos respectivos atos
praticados, fugindo do lugar em que acaba de praticar o crime, de pura
represália, para escapar à ação da justiça local, que reputa falha, exceto se é
afilhado ou correligionário do chefe político da zona”.
Com
base nisto, entende-se que o cangaço, em sentido amplo (“acepção lata”),
abrangeu todo o arranjo social vigente na geografia interiorana do Nordeste,
tanto o Poder oficial (o judiciário, a política, a força militar e policial, os
coronéis, fazendeiros, etc.) quanto o Poder não oficial (os cabras, jagunços,
capangas, pistoleiros, cangaceiros, etc.), isto é, todo o sistema vivia debaixo
do cangaço. Por mais que pareça ser paradoxal, boa parte da elite nordestina mantinha
relações simbióticas com os cangaceiros, eram duas forças que se completavam,
uma exitindo em função da outra.
Segundo
Barroso, em publicação do início do século XX: “o cangaceiro existe em função
do coronel e o coronel domina em função do cangaceiro, Combate-se o coronelismo
e se estará trabalhando para a extinção do cangaceirismo”.
No
que diz respeito ao cangaço em sentido amplo (“acepção estrita”), subentende-se
que este fenômeno social é caracterizado pela presença de indivíduos que
empreendiam constante fuga depois de se vingarem de alguma ofensa e/ou por não
ter encontrado justiça perante as autoridades competentes.
Há
também classificações diversas sobre os cangaceiros. Gustavo Barroso os
classifica em românticos, psicopatas,
evadidos ou acoitados e os valentões. Já
Aberlado Montenegro, além de citar a diferenciação entre bandido e cangaceiro,
afirma que este último pode ser classificado em profissional e amador ou,
ainda, segundo o jornal “A Tribuna”, de 7-4-1922, em particulares, políticos e
profissionais.
Em
trabalho mais recente, Frederico Pernambucano de Mello tece algumas diferenças
entre alguns termos como cabra, jagunço, capanga:
A
segunda figura a ser estudada é a do cabra ou jagunço, ainda que entre os três
tipos haja diferenças que não devem ser ignoradas. Cabra é o homem de armas que
possui patrão ou chefe, desempenhando mandados tanto de ordem ofensiva quanto
defensiva. Se na sua atuação há uma predominância do aspecto defensivo, do
chamado guarda-costas, nos trabalhos de cobertura pessoal ao chefe, passa a
receber, via de regra, a denominação de capanga, tipo mais discreto e
confiável, que convive com o chefe em estreita intimidade, tendo adquirido,
desde muito cedo e mais do qualquer outro tipo aqui analisado, larga expressão
urbana (...). Para José Américo de Almeida, por outro lado, “o cangaceiro
originou-se da instituição do guarda-costa, como uma necessidade de defesa das
fazendas ameaçadas pelo gentio”.
Além
disso, o mesmo autor também diferencia “cangaceiro bravo” do “cangaceiro manso”:
Nada
mais sintomático dessa tendência que o fato de dar-se na zona rural do Nordeste
ao cabra, à sua forma variante mais íntima que é o capanga, e mesmo ao jagunço,
a designação de cangaceiro manso, expressão que traduz exatamente a ideia de
comporem estas figuras uma linha auxiliar do fenômeno maior, espécie de
sementeira de vocações não despertas de todo porque entregues ao exercício de
um aventureirismo guerreiro ainda relativamente brando, mas que a um leve
estímulo poderiam facilmente resvalar no cangaço integral (...) não nos
parecendo correta, portanto, a ideia de que o cangaceiro brabo seja filho, na
ordem histórico-evolutiva, de um cangaceiro manso cujo potencial guerreiro foi
tornado ocioso pelo desfrute pela sociedade sertaneja de um clima de paz
relativamente satisfatório, gerador de desemprego tanto para cabra quanto para
capanga ou jagunço que, nessa apertura, “organizava ou procurava um bando”.
No
que diz respeito aos pistoleiros, nos sertões nordestinos, Frederico aponta que
suas origens estão nos “tocaieiros” ou “matadores de pé-de-pau”, os quais, além
de reduzirem a limite mínimo o seu próprio risco de morte, agiam geralmente
sozinhos e matavam para obter ganho pecuniário:
O
pistoleiro mata para obter um ganho, seja em dinheiro, terras, gados, joias ou
outros valores. Difere do cabra e do capanga não apenas por agir normalmente
sozinho, mas pela circunstância de não se relacionar diretamente com o mandante
do crime, recebendo instruções e prestando contas a um intermediário, o chamado
empreiteiro, também conhecido como cruzeteiro na região do sertão de baixo e do
agreste meridional, com centro na cidade de Garanhuns, no Estado de Pernambuco.
Mas
o grande insight deste pesquisador
acerca do assunto foi identificar a principal característica do cangaceiro, que
o distinguiria do jagunço, do cabra, capanga e pistoleiro. Tal característica
seria a ausência de vínculo de subordinação exclusiva com o contratante dos
serviços de cangaceiragem, ou melhor, o cangaceiro não possuiria patrão:
Deve
restar bem claro que o relacionamento não produzia vínculo de subordinação
exclusiva para qualquer das partes. A característica principal do cangaceiro,
vale dizer, o traço que o faz único em meio aos demais tipos aqui já
analisados, é a ausência de patrão. Mesmo quando ligados a fazendeiros, por
força de alianças celebradas, o chefe de grupo não assumia compromissos que
pudessem tolher-lhe a liberdade. A convivência entre eles fazia-se de igual
para igual, agindo o cangaceiro como um fazendeiro sem terras, cioso das
prerrogativas que lhe eram conferidas por poder das armas, sem dúvida o mais
indiscutível dos poderes.
Junto
a isso, o referido estudioso classifica o cangaço em três tipos,
quais sejam, o cangaço-meio de vida, o cangaço de vingança e o cangaço refúgio.
Segundo ele, o primeiro tipo, cangaço-meio de vida, é o banditismo de
profissão, tendo como representantes Lampião e Antônio Silvino. O segundo tipo,
cangaço de vingança, possui um entendimento literal, encontrando suas razões na
autotutela, na vingança privada, chamado pelo autor de “cangaço nobre” e tendo
como alguns de seus representantes Sinhô Pereira e Jesuíno Brilhante. O
terceiro tipo, cangaço refúgio, seria uma alternativa para pessoas perseguidas,
que, no “asilo nômade das caatingas”, encontravam proteção.
Estribado
nessa mesma ideia, Pernambucano de Mello afasta a aplicação generalista da
teoria marxista para explicar para a formação do cangaço, que, segundo ele, não
se resumia apenas a uma luta de classes, travada entre o coronel e o
cangaceiro, mas possuindo raízes histórico-culturais mais complexas, ligadas ao
choque étnico, ao tempo dos primeiros contatos ocorridos no Brasil
“recém-descoberto” ou invadido, quando numerosos grupos humanos se mantiveram,
reciprocamente, insurretos aos regramentos alheios aos seus códigos culturais.
A esta teoria de insubordinação constante, projetada ao longo do tempo, o autor
deu o nome de “irredentismo”:
Vincando
tão expressivamente uma Europa calejada de crenças, o seu tanto blindada a
novidades, um continente distante enfim, a sedução da existência do homem em
estado de natureza, traduzida, no plano da atitude – e desde que fincadas as
primeiras estacas da organização colonial – por um irredentismo orgulhoso, uma
sobranceria forrada da ilusão de cada um ser rei de si mesmo, não poderia
deixar de ter as marcas mais profundas plantadas senão no Brasil, a terra berço
de maior evidência, quanto a esse sentimento libertário – ou anárquico, a
outros olhos – naquele período. O irredentismo – cumpre que se complemente como
preâmbulo ao seu entendimento – antes de se empinar em rebeldia, nasce apenas
repúdio. Bem-comportado repúdio à ideia de ser redimido de suposta selvageria
mediante a adoção de valores estranhos aos seus. Mais que estranhos,
estrangeiros. Europeus. A rebeldia surgirá com a coação. A ministração a pulso
em lugar do convencimento. E temos o caldo de cultura para o conflito.
Partindo
de todas essas informações, é necessário examinar mais a fundo em que época,
mais ou menos, o fenômeno social do “cangaceirismo” aparece nas crônicas
históricas e se o uso da terminologia “cangaço”, é, semanticamente, coetânea ao
referido banditismo.
Comportamentos
Cangaceiros e suas Antigas Definições
No
vocabulário dos europeus que haviam chegado ao Nordeste do Brasil, nos
primeiros tempos do período colonial, encontram-se diversas terminologias
usadas para identificar pessoas ou grupos que não se alinhavam com as regras sócio-jurídicas
do Velho Mundo, a exemplo de termos como criminosos, delinquentes, canalha,
gentalha, vadios, assassinos, vagabundos e, até mesmo, frases como “sem lei, fé
e rei”.
Por
óbvio, essa visão/dicção promanava do choque cultural ocorrido a partir do
intenso contato entre as diferentes etnias que convergiram para o referido
espaço, principalmente na zona litorânea, onde as embarcações, vindas de
Além-mar, atracavam.
Não
bastasse a diversidade já existente entre franceses, holandeses, espanhóis,
portugueses, africanos e outros, o contato destes com o índio americano
provocou grande impacto nas regras jurídicas e morais dos monoteístas europeus.
Andar nú, comer carne humana, não ter escrita, viver sem acumular “riquezas”, praticar
a liberdade sexual, não possuir residência fixa, etc., tudo isso abalou
profundamente os rígidos conceitos do Velho Continente. Tanto é que o modo de
vida indígena chegou a influenciar diversos pensadores da Europa, inclusive
filósofos da renascença e, até mesmo, iluministas:
E
a Europa vai-se enchendo de índios, em grande parte brasileiros, tupinambás,
tabajaras, caetés, tamoios, que dançam para reis, devassam clausuras de freiras
curiosas e avistam com filósofos, a exemplo de Montaigne, por volta de 1562,
motivando a escrita de um dos Ensaios
mais altos, sumário pungente do pensamento humanista da Renascença. Sem o
saber, os nossos índios iam desatando, na cabeça dos pensadores mais ilustres
do tempo, os laços constrangedores manejados pela realeza e pelo papado, na
subjugação política e psicológica do homem dito civilizado. Mesmo que o
imponente retrato do índio americano divulgado na Europa apresentasse retoques
místicos não difíceis de flagrar, o certo é que o século XVII, ao entrar em sua
segunda metade, já não tinha nessa figura flamboyante
apenas uma curiosidade mas um modelo. E sobre este irão fundar-se correntes
filosóficas e jurídicas, quintessenciadas em doutrinas políticas que explodem
com o individualismo revolucionário do século XVIII. Com Rousseau. Com a
Revolução Francesa. Com o “bom selvagem”.
Desde
o primeiro contato, o branco utilizou palavras para descrever esses povos
primitivos do Continente
Americano, referindo-se a eles pelos termos: índio, bugre, gentio, bárbaro,
negro brasil, brasis, brasiliano, brasilíndio, ameríndio, íncola, ameríncola,
povo pré-colombiano, homem americano, autóctone, aborígene, nativo, silvícola,
silva, selvagem, alarve, caboclo, tupi, tapuia, etc. Ocorre que, com a chegada
dos caucasianos, parte destes povos indígenas resistiu de diversas formas à
invasão do interior do continente, passando a serem vistos como inimigos do
Estado made in Europa.
Frederico
Pernambucano de Melo afirma que o cangaço é um fenômeno social resultante da
mistura étnica, do caldeamento cultural surgido no litoral e, posteriormente,
disseminado para o interior do continente, o sertão, entre a civilização do
couro:
O
cangaço, em sua raiz de insurgência nômade, grupal e autônoma – é dizer, de
chefia situada dentro do próprio bando – mostra-se tão velho quanto a própria
colonização brasileira, as suas desordens remontando ao período das capitanias,
fenômeno de origem litorânea que é, sem que dispusesse, nesses primórdios junto
ao mar, do nome por que ficaria conhecido e que só viria a receber no sertão,
quando para ali vai sendo enxotado pelo sucesso da colonozação na faixa verde.
Segundo
o mesmo autor, é na zona geográfica do sertão que a forma de banditismo já
praticada no litoral recebe o nome de cangaço. Sob este ponto de vista, o
fenômeno social pre-existente no litoral, só ganhará nome próprio no interior
do continente brasileiro, no sertão.
De
acordo com Gustavo Barroso, no Ceará, os cangaceiros, antes de possuírem tal
denominação, eram chamados de “cacheados”. No final do século XVIII, quando a
então capitania cearense era governada pelo capitão-mor João Batista de Azevedo
Coutinho de Montaury (de 1782 a 1789),
havia um estereótipo bastante conhecido e malquisto pelas autoridades, o qual
era caracterizado, sobremodo, pelo comprimento dos cabelos, com carapinhas
felpudas, escondidas debaixo de seus chapéus, feitos com casco de peba ou
couro. Sobre isso, explica Barroso:
Os
antigos cangaceiros do Nordeste tinham o hábito, que se prolongou até bem pouco
tempo, de usar como distintivo profissional, sinal de valentia e fereza, uma
longa melena sobre a testa, que, frisada naturalmente pela mestiçagem, se
enrolava, formando uma trunfa ou topete. E daí talvez venham as expressões ter topete e ser topetudo, indicadoras de audácia. Quando o possuidor da mexa
estava de chapéu à cabeça, ninguém a via; porém, logo que o tirava ou o
derramava para traz, ela aparecia. E nenhuma pessoa se atrevia a tirar o menor paluxio para as bandas dum tipo desses.
Nesse tempo, não se chamavam jagunços nem cangaceiro os cabras famanazes e os bandidos:
eram os cacheados.
Diz
o mesmo autor que, nesse tempo, tais indivíduos, mestiços identificados pelas
compridas melenas, não eram apelidados de “cangaceiros”, nem de “jagunços”, mas
de “cacheados”.
Nas
andanças do referido capitão-mor (governador) pelas vilas de Aquiraz ou
Fortaleza, bastava que algum homem de cor e cabeludo deixasse o chapéu cair
para trás da nuca, descobrindo o cacho sobre a testa, para que Montaury
ordenasse a sua captura. Em seguida, o dito governador determinava sumariamente
o corte da indesejada madeixa, tomado pelo anseio de eliminar os bandidos e
vadios que infestavam o Ceará.
Mesmo
sendo uma medida ineficaz, Montaury, convicto de sua missão, chegou a ordenar a
todos os homens de cor que, quando passassem pelo paço do governo, colocassem à
mostra o tope de suas cabeças, com a finalidade de decepar a golpe de terçado
as gaforinhas “cangaceirais”. Apoiado na tradição oral, Barroso narra como ocorriam
esses cortes compulsórios de cabelo:
Na
tal residência da rua de Baixo, debruçava-se pela manhã no muro que dava para a
via pública e punha-se a observar a gente que ia para a antiga Praça do
Conselho, depois, da Sé. Mal dava com um cabra
de chapéu descido para a nuca e cacho bamboleando no meio da testa, gritava aos
soldados da guarda: ‒ Pega! Quatro ou cinco milicianos seguravam o valentão e
traziam-no à presença terrível do déspota. Com um safanão, o cabo da esquadra
atirava-lhe o chapéu de couro ou de casco de peba ao chão. O cacho flutuava
livre. E o capitão-mor ordenava: ‒ Sargento, corte a trunfa deste não sei que
diga! O inferior arrancava o amolado chilfarote da bainha e decepava o atributo
capilar do famanaz. Os soldados desarmavam-no e soltavam-no. Montaury bradava:
‒ Vá embora, cabra! E, cuidado, não deixe crescer outra trunfa!
Continuando
a busca pelos mais antigos registros sobre o termo cangaço ou cangaceiro,
observa-se que, em um dicionário publicado no ano de 1832, na cidade de Ouro
Preto/MG, da autoria do goiano Luiz Maria da Silva Pinto, cangaço era “s.m. o
mesmo que Bagaça, e Bagaço”.
Já
no jornal pernambucano “Diário Novo”, na edição de 03 de agosto de 1843, sob o
título “Comunicado”, há uma matéria sobre a força e o terror usado pelo Governo
no período eleitoral. Nesta, é citada a palavra “cangaço” dentro seguinte
contexto: “No meio porem de todo este cangaço do governo o que tem feito a
oposição?”.
Pelo contexto em que está inserida a terminologia, entende-se que cangaço foi
usado no sentido de uso da força, em desrespeito à legalidade do processo
eleitoral.
Noutro
jornal pernambucano, “A Carranca”, na edição do dia 22 de dezembro de 1845, no
título “Que Mania”, também aparece a palavra cangaço:
Ex
operibus eorum cognocetis eos (Sete Setembro, n. 30)
Com effeito! até o Evangelho, esse monumento saneto, e invulneravel, he
invertido, e adulterado pelo carunxo mór,
pelo plagiário em chefe, Miguel do Sacramento Lopes Gama! Ex fructibus corum cognoscetis eos (diz
o Evangelho) mas o fradixo, que he filho primogenito da inversão, e da
desordem, e encanecido no pessimo habito de furtar, de parodiar, e de torcer a
seu geito as passagens de todos os autores, que lhe caem nas garras, sai-se com
o – ex operibus ecrum &e.! Forte
mania! Impingir obras por fructos! Bem sabemos, que faz mesmo
sentido, mas que precisão tinha o frade de substituir huma palavra com outra?
Em fim este cangaço de petas nasceo no mesmo dia, em que nasceo o diabo
(...).
Mesmo
analisando o contexto, fica difícil entender o que o autor pretendeu dizer ao
citar o termo “cangaço de petas”. Apesar disso, vale ressaltar a relativa
antiguidade do uso da palavra dentro de uma linguagem de jornal, isto é, dentro
de uma escrita oficial.
Em
um dicionário do final do século XIX, publicado no Rio de Janeiro, no ano de
1889, pelo Visconde de Beaurepaire-Rhoan, natural de Niterói, há três
diferentes sentidos para “cangaço”. Diz o autor que a palavra é de origem
portuguêsa e, nas então províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte
e Ceará, significava:
Cangaço
(1º), s.m. (Pern., Par. do N., R. Gr. N.,
Ceará) pedunculo e espatha do coqueiro, os quaes se desprendem da arvore,
quando estão seccos.// Etym. E’ vocabulo portuguez que se applica ao pedúnculo dos
cachos da uva, e mais, com a significação de bagaço, á parte grosseira que fica
dos productos expremidos (Aulete).// Em Alagôas dizem Cangaraço (B. de Maceió).
Cangaço
(2º), s.m. (mesmas provs. acima citadas)
objetos de uso de uma casa pobre. Neste sentido usa-se no plural, e vem a ser o
mesmo que Cangacaes.
Cangaço
(3º), s.m. (mesmas provs.) conjunto
de armas que costumam conduzir os valentões: ‒ Fulano vive debaixo do Cangaço, isto é, carregado de armas
(Meira).
Ainda,
Beaurepaire-Rhoan traz em seu dicionário o significado do termo “cangaceiro”,
que, segundo ele, no Ceará, era o nome dado ao homem que carrega “Cangaço”,
isto é, “armas em excesso, affectando valentia”.
|
Francisco Freire Alemão |
Mas
é no corpo de um antigo diário de viagem, escrito entre os anos de 1859 a 1861,
que vamos encontrar a mais antiga definição para o termo “cangaceiro”, dada
pelo médico carioca Francisco Freire Alemão, cientista enviado por D. Pedro II
para a província do Ceará, na qualidade de chefe da Seção Botânica da Comissão Científica
de Exploração.
Quando Alemão esteve na região do
Cariri cearense, mais especificamente, na cidade do Crato, tomou nota sobre o
assunto, dizendo que: “De viagem os figurões, ou os que querem passar por tais,
andavam sempre com certo número de homens armados, chamados cangaceiros”.
Duas
Hipóteses sobre a Origem da Palavra Cangaço
Primeira
Hipótese: Origem Portuguesa (Cangaço ou Canga de Aço)
O
imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) Gustavo Barroso parece ter sido o
responsável pela primeira afirmativa escrita sobre a origem da palavra cangaço,
a qual, segundo ele, é oriunda da língua portuguesa.
Gustavo
Barroso, um dos maiores estudiosos sobre o cangaceirismo, foi responsável por construir
a hipótese mais aceita, atualmente, para explicar a origem da palavra cangaço.
Segundo o referido autor, a terminologia “cangaço” surgiu do hábito de os
antigos bandoleiros se sobrecarregarem de armas, trazendo o bacamarte passado
sobre os ombros, à feição de uma canga, por isso dizer que estes indivíduos
andavam debaixo do cangaço, isto é, de uma canga de aço.
A
obviedade e a lei do menor esforço consignam essa hipótese como verdadeira e
acima de qualquer suspeita, no entanto, tal afirmativa é, no mínimo, uma visão
simplista e insuficiente para explicar a origem do termo cangaço, pois alguns
questionamentos colocam em dúvida tal hipótese.
Primeiramente,
é sabido que os cangaceiros andavam em bando, então, em meio ao séquito, o
indivíduo que portasse sua arma sobre as espáduas, possivelmente, teria o cano desta
apontado para algum companheiro que se posicionasse em um dos seus flancos,
havendo, assim, grande risco de disparo acidental ao longo das estreitas
veredas e dos ínvios caminhos das caatingas, irregulares, pedregosos e repletos
de garranchos.
Em
segundo lugar, partindo do princípio de que as armas eram relativamente pesadas,
é óbvio que portar sobre os ombros um bacamarte boca de sino, mosquete, trabuco,
rifle, fuzil ou qualquer outra ferramenta do mesmo peso e natureza, composta de
ferro e madeira, poderia causar grandes incômodos ao longo de horas de
caminhada. Além disso, há antigos informes documentais sobre o uso da
“bandoleira”, isto é, uma correia que permitia o transporte das armas longas, a
tiracolo, sem sobrecarregar os ombros e os braços.
No
que tange a este assunto, Frederico Pernanbucano de Mello, em entrevista ao
ex-cangaceiro Medalha (Miguel Feitosa Bizarria Lima), apurou que, em regra, não
era comum os cangaceiros do bando de Lampião portarem suas armas sobre os
ombros:
O
processo era comum à bandoleira, correia forte de couro destinada a suster a
espingarda no ombro, de ordinário em linha vertical paralela ao tronco. E,
aqui, mais um ponto a desvelar a ambiguidade das atitudes de misticismo naquele
meio, mesmo na relativa homogeneidade do bando de Lampião: para alguns
cangaceiros, nada era mais inadmissível que pendurar a espingarda nas costas em
diagonal com o tórax, a correia indo do ombro esquerdo para a ilharga direita,
ou vice-versa. Seria “botar nas costas o pau da Cruz e chamar a morte”, por ser
de madeira a base da estrutura da arma. Assim nos relatou Medalha, grave, e
ficamos na crença.
A
forma como eram portadas as armas por homens ligados ao cangaço ou pré-cangaço
já é citada em documentos escritos no início do século XVIII, a exemplo de uma
narrativa sobre a prisão do segundo ouvidor-geral (juiz) da então capitania do
Ceará, o bacharel Antonio Loureiro de Medeiros, a qual foi efetuada no começo
da década de 1730, nos seguintes termos: “e entrando nela [Fortaleza] o capitão da infantaria, querendo prender a Antônio de
Loureiro, este puxou por uma faca de ponta que trazia, e duas pistolas no
sinto, e uma carabina de tiracolo”.
Ao
usar a expressão “carabina de tiracolo”, significa dizer que as armas longas de
fogo já eram transportadas por meio das bandoleiras, isto é, com correias
(geralmente, feitas com couro) afixadas próximas às extremidades das armas de
fogo, para, assim, serem sustidas em um dos ombros de quem as portava.
Portanto,
em nossa opinião, a etimologia aventada por Gustavo Barroso não deve prevalecer
por não possuir uma justificava histórica mais robusta.
Segunda
Hipótese: Origem Indígena
Língua
Tupi
Contrariando
a pretensa origem lusa do étimo em apreço, Tomé Cabral afirma que o substantivo
masculino “cangaço”, na segunda acepção apontada em seu dicionário, possui sentido
de esqueleto,
pois, segundo ele: “parece, a princípio provir do tupi canguera (ossada, osso
sem carne)”. Completa o autor, citando a opinião de Batista Caetano, que
cangaço tem origem no “abanenga” (língua geral), sendo derivado de “kang”
(osso) ou “akang” (crânio ou cabeça).
No
entanto, Tomé Cabral admite haver dúvida em torno da exata origem do termo
cangaço, ponderando que o assunto: “Merece
entretanto, um estudo mais aprofundado a respeito de sua origem, tendo-se em
vista a semelhança gráfica e a quase homofonia entre cangaço e cangalho e
sobretudo ao sentido mais ou menos equivalente”:
Cangaço
- sm. - 1) - O modo de vida do cangaceiro. O banditismo. ‘...prometendo
retirar-se do cangaço’ (LCF 27). ‘...quis sanear o cangaço o Estado da Paraíba’
(XOB 99). ‘...afivelando a cartucheira e se perdendo no cangaço’ (LMN 59). CAIR
(ou ENTRAR) NO CANGAÇO - Ingressar na vida de cangaceiro. ‘Era muito melhor
caírem logo no cangaço’ (FMM 227) VIDA DE CANGAÇO - ‘Vida de cangaceiro, de
salteador habituado ao cangaço’. ‘Tomar o cangaço, viver no cangaço, andar no
cangaço, debaixo do cangaço, são sinônimos do bandoleiro, assaltante
profissional” (LCF 183)”. Na segunda vez que Tomé Cabral menciona a palavra
cangaço, é com significado anatômico, referindo-se a esqueleto, pessoa ou
animal esquelético: “3) - O corpo, em sentido figurado ou burlesco. ‘...o dia
em que alguém pisar em cima de meu cangaço’ (cit. NML 151). 4) - Traste, objeto
quase imprestável; resto de móvel ou de certos utensílios.
Já
o estudioso Leon Clerot registra em seu dicionário a palavra tupi “cangaça”
como sendo um nome geográfico no Estado de Pernambuco e com o significado de
travessia da cabeceira (“acanga-açába” = cabeça) ou travessia de caminho
(“acanga” = cabeça + “acaba-apeaçába”). No entanto, apesar da semelhança
fonética, existe uma diferença de gênero e de sentido, o que não impede que
tais vocábulos (cangaço e cangaça) possuam alguma ligação etimológica.
Língua
Tapuia: Cariri (Kiriri)
Pedro
Baptista, no ano de 1929, suscitou a possibilidade de a palavra cangaço ter
origem na língua dos chamados “tapuias” (isto é, índios que não falavam tupi),
mas, mais particularmente, na língua dos índios Cariris, e isto com base na
antiga obra do Padre Luiz Vincencio Mamiani, autor do “Catecismo Kiriri”,
publicado em 1698, no qual está registrado o termo “canghi”, que quer dizer
“bom”. Argumenta Pedro Baptista que esta adjetivação estaria relacionada à
“compassiva tradição sertaneja” em se lembrar dos seus heróis “sempre aureolados
de bondade e nobreza d’alma”.
Além
desse catecismo, o termo em comento também é encontrado numa antiga gramática da
língua dos índios Cariris, publicada em 1699 pelo mesmo padre (“Arte de
Grammatica da Lingua Brazilica da Nação Kiriri”), na qual há o registro do
vocábulo “canghitè”, o qual, quando traduzido para o português, possui o
sentido de “obra boa”.
Em
publicação recente, Luis Bernardo Pericás sugere que cangaço poderia ter se
originado da palavra Cayacu (Kâyacu), pertencente à língua dos índios Cariris,
tendo como significado “lua”. O autor, partindo do princípio que tal astro está
diretamente ligado à noite, e, consequentemente, aos animais de hábito noturno,
compara-os aos salteadores: “quase invisíveis, que surgiriam desavisadamente no
meio da noite para realizar os seus ataques”. Todavia, o próprio Pericás dá
pouco crédito a esta hipótese pela inviabilidade da corruptela, nos seguintes
termos: “É difícil ligar a palavra a uma corruptela do cariri Cayacu (Kaâyacu),
ou ‘lua’, em português, conectando, de alguma forma, os salteadores a criaturas
‘noturnas’, quase invisíveis, que surgiriam desavidamente no meio da noite para
realizar seus ataques”.
Relação
da Palavra Cangaço com as Línguas Indígenas
A
“língua brasileira” não pode ser confundida com a língua portuguesa, herdada do
continente Europeu, pois o intercurso étnico, promovido desde o período
colonial, com a interação de povos de diferentes origens, propiciou a formação
de um vernáculo propriamente brasileiro, com forte influência indígena.
No
Brasil, o mais remoto registro da palavra cangaço está estampado no antigo “Dicionário
da Língua Portuguesa”, publicado por Moraes Silva, no ano de 1789. Neste
trabalho, “cangáço” é apresentado como sinônimo de “engaço” ou “bagaço”,
conforme também registram os dicionários modernos.
No
entanto, deve ser destacado que Moraes Silva era brasileiro, natural do Rio de
Janeiro, e sua obra teve por base um dos mais antigos dicionários portugueses,
“Vocabulario Portuguez e Latino”, escrito pelo padre Dom Rafael Bluteau, no
início do século XVIII, no
qual não se encontra o registro da palavra “cangaço”, podendo-se deduzir que
este substantivo inexistia no vocabulário português, sendo fruto de uma língua
diversa, com a qual Moraes Silva teve contato. Aparentemente, é a partir da
publicação deste último que o termo “cangaço” sai da mera dicção (oralidade) e
passa a ter registro escrito.
Então, se “cangaço” não tem origem
no vernáculo português, mas está presente na língua brasileira, qual a melhor
explicação para este fato?
Além
dos diversos topônimos indígenas, outros termos dessa mesma origem estão
presentes na língua brasileira, a exemplo do nome “acanguçú” ou “canguçú”
(acang-uçú = a cabeça grande; a cabeçuda), para fazer referência ao felino
Jaguareté, ou seja, uma espécie de onça pintada um pouco menor, de malhas mais
finas e numerosas, possuindo uma cabeça maior do que a espécie tipo.
Em
uma publicação do ano de 1887, o linguagista Paulino Nogueira expõe inúmeras
palavras de origem indígena usadas pelos moradores da Província do Ceará, dentre
elas, canguçú, sobre a qual diz ser:
onça
de pintas ou malhas grandes, que dizem ser filha da pintada com a sussuarána; é
o leopardo do Brasil. Pompêo, Ens. Est.
cit., T. 1º, P. 211, Nota 4 - Do cruzamento desta com a tigre dizem que sáe a
preta manchada - Ety.: - acanga
cabeça, e uçú grande. B Caetano, Vocab.
cit., P. 20, e B. Rodrigues, Rev. do
Inst. cit., P.61, Tem realmente a cabeça grande. Pelas malhas também lhe
veio o nome de jaguaripe, de jaguar
onça e igpé nodôa, mancha. Malta
cit., P. 249.
Através
de contrato com o Governo do Ceará, Thomaz Pompeo de Sousa Brasil, entre os
anos de 1855 e 1862, realizou um amplo estudo sobre esta província, tendo como
objeto de estudo sua Topografia, Hidrografia, Orografia, Reino Mineral, Reino
Animal e Reino Vegetal, etc. Assim, incumbido desta tarefa, escreveu sobre a
onça, do gênero Felix, constatando a presença de várias espécies: a preta,
também chamada de tigre; a pintada ou jaguar; a ruiva ou sussuarana, também
conhecida por cagoar; e, além destas, as “cangaçús”, que eram “umas de pintas
ou malhas grandes, que dizem ser filhas das pintadas com sussuaranas”. Como
se percebe, Pompeo redige “cangaçús” (obviamente, plural de “cangaçú”), evidenciando
a semelhança com o termo “cangaço”.
A
terminologia indígena “canguçu” (“acanga” = cabeça + “uçú” ou “açú” = grande)
também é usada para nomear regiões de diferentes Estados, como em Minas Gerais
e Rio Grande do Sul. Além disso, este mesmo vocábulo, igualmente, serve para
denominar um peixe marinho (Scomberomorus
regalis).
O
etnógrafo e poeta Gonçalves Dias, em seu “Dicionário da Língua Tupi”, publicado
em 1858, registra o termo indígena “acánga” e suas variações. Esta palavra,
usada de forma isolada, tem o sentido de “cabeça”, no entanto, conforme a
aglutinação dos sufixos, pode ganhar diferentes significados. Assim, os termos
túpicos “acánga-acy” quer dizer doer a cabeça; “acánga-ayba”, tresvariar; “acánga-aybã-nungára”, adoidado; “acánga-cangoera”, crânio;
“acánga-catu”, habilidade, juízo, retentiva; “acánga-etic”, acenar com a
cabeça; e, por fim, “acánga-açú”, da união de “acanga” (cabeça) com o aumentativo
da língua tupi “açu” (grande), que, no entendimento da língua indígena, possui
a conotação de “habilidoso”.
O
Padre Bluteau, em dicionário do início do século XVIII, menciona a palavra
“cangoera”, que, segundo ele, é pertencente à língua do “gentio do Brasil” e
fazia referência aos ossos dos mortos com que os índios fabricavam seus
instrumentos musicais.
O tupinólogo Leon F. R. Clerot aponta para o mesmo significado, ou seja,
reforça que “cangoera” (acang-uéra) refere-se aos ossos, a ossada, “podendo-se
traduzir somente: a caveira”. Já
Eduardo de Almeida Navarro acresecenta que a “kangûera” fazia menção à magreza,
semântica que, ainda hoje, subsiste nos sertões do nordeste:
Kangûera1
(etm. – ossos que foram) (s.) –
esqueleto (Catilho, Nomes, 31);
ossada; espinha: pirá-kangûera – espinhas de peixe; mba’e-kangûera
– ossada (de animal) (VLB, II, 59);
(adj.: kangûer) – esquelético, muito
magro, descarnado, posto nos ossos: Xe kangûer. – Eu estou esquelético. (VLB, II, 28).
Kangûera2
(etim.
– osso que foi) (s.) – instrumento
para fumo; espécie de cigarro grande; “canudo
que se faz de uma folha de palma seca e tem três ou quatro folhas secas de
erva-santa, que os índios chamam petume” (Sousa, Trat. Descr., 317).
Kangûera3
(etm. – osso que foi) (s.) – CANGOEIRA, CANGUEIRA, instrumento musical feito de ossos de pessoas mortas
(Vasconcelos, Crônica (Not.), §143, 107).
Cite-se
que nos Estados do Pará e Ceará é encontrado o topônimo Jacarécanga (“yacaré-canga”,
a ossada de jacaré, ou “yacari-canga”, a cabeça do jacaré).
No território cearense também existe o topônimo “cangati” (acanga-atí, cabeça
pontuda, saliente). Destaque-se
que, no tupi, a palavra “kanga” é bastante usual:
Kanga1
(s.) – secura; (adj.: Kang) – seco,
enxuto, que perdeu toda a água (VLB,
I, 120). Nota – Daí, no P.B., SACANGA,
galho seco de árvore; graveto.
Kanga2
(s.) – 1) osso (Castilho, Nomes, 31): ... I kanga îepotasaba pe’abo o
îosuí. – As juntas de seus ossos afastando umas das outras. (Ar., Cat., 62v); ... Asé i kangûerĩ tiruã
momba’etéû, o aîuri serekóbo... – Até mesmo seus ossinhos a gente cultua,
tendo-os no pescoço. (Ar., Cat.,
12v); 2) espinha (de peixe) • Kanga putu’uma – tutano dos ossos (VLB, II, 138; D’Evreux, Viagem, 159); kanguûera – osso fora do corpo, osso descarnado; espinha já fora do
peixe (VLB, I, 126). Nota Daí, no
P.B. (pop.), CANGUIÇO, pessoa muito
magra. Daí, também, os nomes geográficos CANGUEIRA
(PR), CANGUERA (SP) (v. Rel. Top. e
Antrop. no final).
Kanga3
(s.) – armação (p.ex., de navio, de casa etc.); qualquer peça de tal armação: ó-kanga
– armação de casa; ó-kangûama – madeira o armação para futura casa (VLB, I, 41).
No
início do século XIX, durante os movimentos de influência iluminista
(simpáticos à Independência do Brasil e à proclamação da República), diversos
brasileiros, tocados pelo sentimento nativista, adotaram como sobrenome
palavras indígenas. Durante um desses movimentos liberais, a Confederação do
Equador, de 1824, também deflagrada na então província do Ceará, um de seus integrantes
João Nepomuceno da Silva adotou o nome de Canguçú ou Cangussú, conforme aparece
em um documento datado de 15 de julho de 1824:
Ill.mo
e Ex.mo Snr.or. Pela participaçaô que acabo de expedir ao
Sargento Mor graduado Joao Nepomoceno e
Silva CanguSsu, Comandante do Batalhão de 1ª Linha desta Provincia, sobre a
baixa do Cabo de Esquadra do mesmo Batalhão Alexandre Francisco Roiz̉, para
reverter á Praça [documento mutilado]
de Simples Soldado, por ser comprehend...?
[documento mutilado] em furto, e
indigno por iSso da Praça, que tinha, fica cumprido o Officio de V...? [documento mutilado] da data de hoje, pela parte que me to...? [documento mutilado] Deos Guarde a V. Ex.ia Q.tel
do Gov.o das Armas na Cid.e do Ceará 15 de Julho de 1824;
3º da Independ.ia, e Liberdade do Brazil. Ill.mo e Ex.mo
S.r Prezidente Tristaỏ Gonsalves d’Alencar Araripe. Joze Pereyra
Filgueiraz.
|
Documento datado de 15 de julho de 1824, onde aparece o nome de João Nepomuceno da Silva Canguçú |
Frente
ao exposto, é razoável pensar que a palavra cangaço possa ter origem na
expressão indígena “cangussu” ou “canguçu” (cang
= osso + açu = grande) para fazer
menção aos índios que se retiravam para as matas, diante da invasão branca, com
o objetivo de fugir e resistir, levando consigo, nessa vida nômade, seus
utensílios, como vasilhas, redes, machadinhas, alimentos e armas. Também é
possível que, nessas retiradas abruptas, a depender da época do ano, tais
indivíduos ficassem expostos à sede e à fome, principalmente no tempo das estiagens.
Dessa maneira, é presumível que, nesse contexto, tenha se formado um cenário
composto por índios de corpos magros, cabelos compridos, carregados de objetos,
resistindo ferozmente no meio das matas e caatingas.
Mas esse contexto não é simples
suposição, pois, nos sertões ao redor da Chapada do Araripe, na divisa dos atuais
Estados da PB, PE e CE, em 1802, um religioso da Ordem do Capuchinhos
Italianos, frei Vital de Frescarolo, presenciou um cenário semelhante, no qual
os índios tapuias (os Pipipão, Umão, Vouê e Xocó) estavam, em tempo de seca,
fugindo das perseguições movidas pelos “brancos”:
(...)
foi servido encarregar-me da importante diligencia de pacifical-os,
instruil-os, baptizal-os e aldeal os, até pôl-os no caminho do céu, e ao
serviço do rei (...). Aos 7 de Julho sahi de Pernambuco, e aos 31 do dito
cheguei na capela de Jeritacó, ribeira do Moxotó, e no primeiro de Agosto, que
era o dia de Sant’Anna, depois de ter celebrado a santa missa, lá vierão dous
dos ditos gentios a ter fala comigo, porque já estavão notificados pelos
moradores da dita ribeira; com muito agrado os recebi, e perguntando eu por
toda a sua gente, responderão, que estavão todos juntos no mato, esperando por
mim, mas que não sahião n’essa ribeira por medo da muita gente que lá havia, e
que só indo eu ao logar chamado Jacaré, por ser este logar muito retirado, sem
falta todos lá sahirião; e por eu saber que esta é uma gente muito desconfiada,
e só com paciência, prudência e caridade se vence, lhe fiz a vontade, e com
todo rigor da seca e da fome, do melhor modo que pude, aos 12 de Agosto, ao sol
posto, cheguei n’este logar Jacaré, sem achar gentio nenhum; e aos 13, ás 5
horas da tarde, é que aparecerão 4 correios dos ditos gentios, e um d’elles era
o seu capataz; e chegando, como sinal de respeito e de entrega, logo encostarão
seus arcos e frexas ao meu pobre ranxo. Com agrado e alegria os recebi, e
perguntando eu aonde estava a sua gente, respondeu o lingua e capataz, que a
gente vinha muito devagar em razão da fome, dos velhos e dos meninos, mas que
amanhan, até depois, sem falta estavão todos n’este logar. Com efeito aos 15,
dia da gloriozissima Assumpção de Maria Santissima ao céu, ás 4 horas da tarde,
é que tive o inexplicável contentamento de ver-me cercado, e ter na minha
prezença 114 gentios brabos, que é o numero total d’elles, entre maxos e
fêmeas, grandes e pequenos. Uns tantos d’elles mostravão no semblante que
nenhum medo tinhão; mas uns tremião de modo que não posso explicar, e
principalmente as mulheres; porém assim mesmo uns tantos encostárão os arcos ao
meu ranxo, e outros m’os derão para guardar (...) e por fim lhes dei a benção
com o Santo Cristo, e os mandei arranxar no mato. No dia seguinte os chamei
todos á minha prezença, e por meio de 10 linguas, que tem todo este ranxo de
vermelhos, principiei a explicar-lhes qual era a cauza da minha vinda a estas
brenhas: que era mandado de Deus, do rei e do governo para elles se aldearem,
baptizar, instruir na fé católica, servir ao rei e nunca mais viver como bixo
no mato, mas sim como christãos em aldeia para se salvarem. A isto responderão
todos que este sempre foi o seu dezejo, mas que tinhão medo dos brancos, e que
esta não fosse falsidade minha, como já foi aquella do riaxo do Navio, do Brejo
do Gama e outras, que dice a V. Ex. Revma o anno passado, quando aldeei os
indios brabos do Olho d’agua da Gameleira, na freguezia do Cabrobó, que debaixo
da capa de paz e da santa missa fizerão d’estes mizeraveis tão horrenda
carnagem de prender, atirar, xumbar, acutilar, espancar, matar e picar, como si
não fossem gente da mesma especie como nós.
Acrescente-se
a isto o fato de os proprietários de terras, nessas mesmas regiões, terem o
costume de fazer guerra aos índios no período da estiagem, pois, nessa época, a
caatinga perde sua folhagem, facilitando a visualização dos “tapuias” dentro
das matas.
O
médico francês Pedro Théberge, residente na vila do Icó/CE desde a primeira
metade do século XIX, relatou como ocorria o caça aos índios nos sertões
próximos à Chapada do Araripe, nos seguintes termos:
No
interior da província [do Ceará],
para os confins da freguezia do Jardim, e extrèmas d’esta com as provincias da
Parahyba e de Pernambuco, existiam ainda algumas tribus, que viviam no estado
selvagem, errando pelas florestas pouco frequentadas, que cobrem as serranias
que dividem as vertentes d’essas tres provincias; eram essas tribus os Chocós,
os Quipipans e os Humans; as quaes, achando-se por esse tempo em difficuldades
para se poderem sustentar do simples producto da caça, iam furtando o gado das
fazendas circumvisinhas, cujos donos, sendo prejudicados por esses furtos
continuados, empregavam todos os meios para perseguil-os ou destruil-os. N’esse
intento, convidavam as autoridades das tres provincias contiguas á cercarem os
bosques, quando o verão os despia das fôlhas, e assim tentavam prender os
cabôclos que achassem; mas, como era isto tarefa difficil e perigosa, por causa
da agilidade e valentia d’estes filhos da natureza, de preferencia matavam-n’os
á tiros como féras. Alguns fazendeiros haviam que, sem recorrerem as
autoridades, levavam a ferocidade ao ponto de ir caça-los com seus aggregados,
como se caçam as onças; e os matavam sem fórma alguma de legalidade!
Seguindo
essa linha de raciocínio, acreditamos que o substantivo “cangaceiro” seja
derivado da palavra “cangaço”, porém, de maneira híbrida, isto é, da junção de
elementos de vernáculos diversos, posto que “cang + açú” é oriundo da língua
indígena e “eiro” é um sufixo proveniente do latim. Este processo de formação
das palavras dentro da língua brasileira é evidenciado por diversos termos,
como, por exemplo, juazeiro (do tupi, “juá” = o fruto de espinho + eiro),
pequizeiro (do tupi “piqui” = casca àspera + eiro), cajueiro (do tupi “caju” = o
pomo amarelo + eiro), etc.
Portanto,
com base nas informações aqui mencionadas, concluimos que a hipótese de Gustavo
Barroso, a qual afirma que a palavra “cangaço” teria surgido da aglutinação de
canga de aço, não parece ser a mais acertada. Por outro lado, acreditamos ser
mais provável que o termo “cangaço” tenha origem nas línguas indígenas, em “cang”
+ “açú”, pois há antigos registros escritos apontando a existência desta
expressão no Tupi e no Kariri, cuja semântica se adequa ao contexto histórico
do período colonial no sertão do Nordeste do Brasil.
Artigo
publicado na Revista Itaytera nº 48, de 2019, da página 181 à 47. Ao utilizar
este material, por favor, cite a fonte, de acordo com a Lei de Direitos
Autorais nº 9.610/1998!
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