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sábado, 19 de agosto de 2017

A Cumatã do Pai de Espedito Seleiro

A Cumatã do Pai de Espedito Seleiro


                                                                                          Heitor Feitosa Macêdo
        
         No ano de 2015, entre minhas visitas corriqueiras a uma oficina de automóvel, próxima à localidade chamada de Asa, em Crato/CE, a uns 500 metros do hospital Manoel de Abreu, encetei uma conversa com os mecânicos sobre facas e punhais antigos, com cabo de embuá, terçados, etc., enfim, sobre a cutelaria genuinamente sertaneja.
Faca "Cumatã" fabricada por Paulo Pereira, a qual pertenceu ao pai do mestre Espedito Seleiro. Coleção do autor.

         Os meus interlocutores começaram a responder timidamente, cabreiros, como se houvesse alguma proibição acerca do assunto, talvez por receio do artigo 19 da Lei de Contravenções Penais (nº 3.688, de 1941), o qual tipifica como ilícito penal “trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade”, cuja pena é de prisão simples (de 15 dias a seis meses) e/ou multa; ou seja, na verdade, estavam com medo era de puxar cadeia!
         O fato é que, depois de eu ganhar a confiança dos meus referidos interlocutores, fui coletando informações sobre estes objetos, hoje, tão escassos na região. Pra minha sorte, a prosa foi tomando pé, até que um deles disse que sabia onde existia uma faca parecida com as que eu havia descrito.
         Dias depois, um dos mecânicos ligou pra mim avisando que havia negociado com certo indivíduo, residente nas imediações da Asa, uma faca antiga, grosso modo, de 12 polegadas, que este há muito mantinha escondida na biqueira de sua casa.
         Diante da notícia, minha ansiedade me fez partir a todo pano para ver o objeto, na esperança de ter encontrado alguma relíquia da História Sertaneja, qual as “parnaíbas” dos cabras do Cariri cearense, utilizadas nas contendas do século XIX, como na Revolução Pernambucana (1817), Batalha do Jenipapo (1823) e, principalmente, no cangaço.
         Ao chegar ao local, me deparei com uma linda peça, uma faca medindo uns 30 centímetros de lâmina, de um metal aparentemente poroso, diferente das ligas metálicas polidas que se veem hoje em dia no mercado. O cabo era uma maravilha, feito em gomos interpolados com as cores azul e branco, de forma a acomodar-se perfeitamente à anatomia da mão. O exemplar que eu havia encontrado era uma célebre Santa Luzia, fabricada no Estado da Paraíba.
         De pronto, comprei-a e logo a levei para a cidade vizinha, Nova Olinda/CE, a fim de que o famoso artesão Espedito Veloso de Carvalho (o Espedito Seleiro), confeccionasse uma bainha em couro.
Bainha fabricada pelo mestre Espedito Seleiro.

         Ocorre que, passado algum tempo, quando fui buscar a encomenda, o mestre Espedito me informou que a faca havia sido furtada do balcão de sua oficina, e, em seguida, entregou-me outra faca, dizendo: “tome essa aqui, que foi do meu pai”. Era um belíssimo exemplar, no entanto, pelo valor sentimental, recusei a oferta nos seguintes termos: “Seu Espedito, por mim, fica como está”. Porém, o velho sertanejo, nascido no sertão dos Inhamuns, considerou uma questão de honra efetuar o ressarcimento. Não tive escolha, tomei posse da faca, mas não sem antes escarafunchar a história em torno daquele fascinante objeto.
         O exemplar que me foi entregue era o que se chama de “cumatã”, uma nomenclatura retirada da língua indígena, de “curimatã” (curimã = bolo de mandioca + = forte, resistente[1]), que designa uma espécie de peixe muito comum no semiárido. Disse-me o mestre Espedito que tal faca pertence à lida do vaqueiro no campo, pois, pelo tamanho (mais de 23cm de lâmina), não ultrapassa a articulação do joelho, permitindo que o cavaleiro se embrenhe pelo mato sem se enganchar na vegetação.
Peixe "cumatã" ou "curimatã", muito comum nas bacias hídricas do semiárido nordestino. A anatomia deste peixe lembra o formato da faca "Cumatã".

         A referida “curimatã” fora fabricada por Paulo Pereira, filho do ferreiro-artesão José Pereira, por volta da década de 1950, ou seja, é ela uma clássica “Barra do Jardim” ou “Jardineira”, isto porque a “tenda de ferreiro” destes era localizada no atual município do Jardim, sul do Ceará. Só posteriormente Paulo se mudou para o Crato, onde estabeleceu sua tenda na localidade conhecida por Asa. O que comprova a origem do dito artefato é a assinatura do fabricante, as letras “PP”, em metal amarelo. Acrescente-se que José Pereira chegou a produzir cutelos para o bando de Lampião![2]
         A arte dessa “faca-jóia” está concentrada no cabo, chamado de “embuá” (do tupi amboáa = cabelo, pelo; + mbú = entesar; + ã = em pé, alto; isto é, pelos erguidos[3]), pois as empunhaduras fabricadas pela família Pereira, em Jardim, lembram os artrópodes miriápodes, muito comuns no sertão do Cariri cearense.
Embuá, ou ambuá, ou, ainda, imbuá. Artrópode comum no Cariri cearense, cujo formato lembra o cabo da faca "Cumatã".
             Mais que uma simples faca, o que estava diante de mim era a sublimação de aproximadamente trezentos anos de técnica sertaneja no fabrico de armas, com raízes nas antiquíssimas tendas do Pasmado, no século XVIII, em PE[4], que passava das mãos de um mestre de ofício do couro para um reles curioso!
                  

       
        
                 




[1] CLEROT, Leon F., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, Brasília, Edições do Senado Federal, 2011, p. 173.
[2] Sertão Afiado, disponível em: http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2012/10/sertao-afiado.html. Acesso em 19/08/2017, às 12h24min.
[3] CLEROT, op. cit., p. 42.
[4] MELLO, Frederico Pernambucano de, Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço (prefácio de Ariano Suassuna), 2ª Ed., São Paulo, Escrituras Editora, 2012, p. 124.

5 comentários:

  1. Caro heitor: Sempre garimpando achados historicos. Parabens pela contribuicao pra historia do cariri e do ceara. A tempo:
    O artista expedito seleiro e nosso conterraneo,natural de srneiroz-ce

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  2. Paz Loureiro, meu amigo! Obrigado pelo estímulo. O Espedito Seleiro é de Arneiroz, nascido na Fazenda Estreito. Prometi a ele levá-lo até o local. Na data em que isso vier a ocorrer, espero encontrar vc pela pequena e bela Arneiroz, infincada bem no meio do Boqueirão da Inhauma, conforme dizem as antigas datas de sesmarias! Uma forte abraço!

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  3. Parabéns, adoro a cultura de cutelaria

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  4. Tenho a honra e o prazer de possuir uma joia dessa também.

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  5. Olá Reitor,sou Jacinta Moreira, de tanto pesquisa achei o seu blog tenho aqui no Acre muitas histórias. Minha bisavó paterna e materna duas indígenas trazidas para casar com outros índios creio que da mesma tribo que vinha para o Acre outro lugar da Amazônia para corta seringa.Hoje eu lembro e ainda sei falar muitas palavras que eu ouvia falar meu avôs, contavam vários histórias dessa região. Aqui no Acre tem muita indígenas vivendo no meio da floresta amazônica trazidas na época 1860 aproximadamente trabalhar. Hoje são reconhecidos só como céarense que veio do Ceará não ninguém nunca estudou realmente essa história escondida por detrás da borracha. sabemos que minha família é grande na floresta AcreAna, são todos índios trazido do Ceará. Se você quiser entre em contato comigo que te envio várias palavras que creio que provém do Cariri.

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