A Cumatã do Pai de Espedito Seleiro
Heitor Feitosa Macêdo
No ano de 2015, entre minhas visitas
corriqueiras a uma oficina de automóvel, próxima à localidade chamada de Asa,
em Crato/CE, a uns 500 metros do hospital Manoel de Abreu, encetei uma conversa
com os mecânicos sobre facas e punhais antigos, com cabo de embuá, terçados,
etc., enfim, sobre a cutelaria genuinamente sertaneja.
Faca "Cumatã" fabricada por Paulo Pereira, a qual pertenceu ao pai do mestre Espedito Seleiro. Coleção do autor. |
Os meus interlocutores começaram a
responder timidamente, cabreiros, como se houvesse alguma proibição acerca do
assunto, talvez por receio do artigo 19 da Lei de Contravenções Penais (nº
3.688, de 1941), o qual tipifica como ilícito penal “trazer consigo arma fora
de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade”, cuja pena é de
prisão simples (de 15 dias a seis meses) e/ou multa; ou seja, na verdade,
estavam com medo era de puxar cadeia!
O fato é que, depois de eu ganhar a
confiança dos meus referidos interlocutores, fui coletando informações sobre
estes objetos, hoje, tão escassos na região. Pra minha sorte, a prosa foi
tomando pé, até que um deles disse que sabia onde existia uma faca parecida com
as que eu havia descrito.
Dias depois, um dos mecânicos ligou pra
mim avisando que havia negociado com certo indivíduo, residente nas imediações
da Asa, uma faca antiga, grosso modo,
de 12 polegadas, que este há muito mantinha escondida na biqueira de sua casa.
Diante da notícia, minha ansiedade me
fez partir a todo pano para ver o objeto, na esperança de ter encontrado alguma
relíquia da História Sertaneja, qual as “parnaíbas” dos cabras do Cariri
cearense, utilizadas nas contendas do século XIX, como na Revolução
Pernambucana (1817), Batalha do Jenipapo (1823) e, principalmente, no cangaço.
Ao chegar ao local, me deparei com uma
linda peça, uma faca medindo uns 30 centímetros de lâmina, de um metal
aparentemente poroso, diferente das ligas metálicas polidas que se veem hoje em
dia no mercado. O cabo era uma maravilha, feito em gomos interpolados com as
cores azul e branco, de forma a acomodar-se perfeitamente à anatomia da mão. O
exemplar que eu havia encontrado era uma célebre Santa Luzia, fabricada no
Estado da Paraíba.
De pronto, comprei-a e logo a levei
para a cidade vizinha, Nova Olinda/CE, a fim de que o famoso artesão Espedito
Veloso de Carvalho (o Espedito Seleiro), confeccionasse uma bainha em couro.
Bainha fabricada pelo mestre Espedito Seleiro. |
Ocorre que, passado algum tempo, quando
fui buscar a encomenda, o mestre Espedito me informou que a faca havia sido
furtada do balcão de sua oficina, e, em seguida, entregou-me outra faca,
dizendo: “tome essa aqui, que foi do meu pai”. Era um belíssimo exemplar, no
entanto, pelo valor sentimental, recusei a oferta nos seguintes termos: “Seu
Espedito, por mim, fica como está”. Porém, o velho sertanejo, nascido no sertão
dos Inhamuns, considerou uma questão de honra efetuar o ressarcimento. Não tive
escolha, tomei posse da faca, mas não sem antes escarafunchar a história em
torno daquele fascinante objeto.
O exemplar que me foi entregue era o
que se chama de “cumatã”, uma nomenclatura retirada da língua indígena, de “curimatã”
(curimã = bolo de mandioca + tã = forte, resistente[1]),
que designa uma espécie de peixe muito comum no semiárido. Disse-me o mestre
Espedito que tal faca pertence à lida do vaqueiro no campo, pois, pelo tamanho
(mais de 23cm de lâmina), não ultrapassa a articulação do joelho, permitindo que
o cavaleiro se embrenhe pelo mato sem se enganchar na vegetação.
Peixe "cumatã" ou "curimatã", muito comum nas bacias hídricas do semiárido nordestino. A anatomia deste peixe lembra o formato da faca "Cumatã". |
A referida “curimatã” fora fabricada por
Paulo Pereira, filho do ferreiro-artesão José Pereira, por volta da década de
1950, ou seja, é ela uma clássica “Barra do Jardim” ou “Jardineira”, isto
porque a “tenda de ferreiro” destes era localizada no atual município do
Jardim, sul do Ceará. Só posteriormente Paulo se mudou para o Crato, onde
estabeleceu sua tenda na localidade conhecida por Asa. O que comprova a origem
do dito artefato é a assinatura do fabricante, as letras “PP”, em metal
amarelo. Acrescente-se que José Pereira chegou a produzir cutelos para o bando
de Lampião![2]
A arte dessa “faca-jóia” está
concentrada no cabo, chamado de “embuá” (do tupi amboá ‒ a = cabelo, pelo;
+ mbú = entesar; + ã = em pé, alto; isto é, pelos erguidos[3]), pois
as empunhaduras fabricadas pela família Pereira, em Jardim, lembram os
artrópodes miriápodes, muito comuns no sertão do Cariri cearense.
Embuá, ou ambuá, ou, ainda, imbuá. Artrópode comum no Cariri cearense, cujo formato lembra o cabo da faca "Cumatã". |
Mais que uma simples faca, o que estava
diante de mim era a sublimação de aproximadamente trezentos anos de técnica
sertaneja no fabrico de armas, com raízes nas antiquíssimas tendas do Pasmado,
no século XVIII, em PE[4],
que passava das mãos de um mestre de ofício do couro para um reles curioso!
[1] CLEROT, Leon F., Glossário
Etimológico Tupi/Guarani, Brasília, Edições do Senado Federal, 2011, p. 173.
[2] Sertão Afiado, disponível em: http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2012/10/sertao-afiado.html. Acesso em 19/08/2017, às
12h24min.
[3] CLEROT, op. cit., p. 42.
[4] MELLO, Frederico Pernambucano
de, Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço (prefácio de Ariano Suassuna), 2ª
Ed., São Paulo, Escrituras Editora, 2012, p. 124.