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domingo, 30 de abril de 2017

AS DUAS OBRAS MAIS ANTIGAS SOBRE A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817

AS DUAS OBRAS MAIS ANTIGAS SOBRE A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817
        
                                                                     Heitor Feitosa Macêdo

         A Revolução Pernambucana de 1817, ou Revolução dos Padres, foi um movimento separatista, desencadeado em Pernambuco e levado a outras capitanias, como PB, RN, AL e CE, sendo que as duas mais antigas obras sobre o movimento foram escritas por dois padres que testemunharam boa parte dos fatos.

Os Mártires Pernambucanos

         O padre Joaquim Dias Martins foi o autor de uma dessas duas obras sobre a Revolução Pernambucana de 1817, intitulando-a de “Os Mártires Pernambucanos”. A intenção do autor foi tecer breves biografias das pessoas que participaram do Guerra dos Mascates, ocorrida em 1710, e dos “patriotas” que se envolveram na Revolução Pernambucana de 1817. A junção é pertinente tendo em vista que o primeiro conflito serviu para justificar umas das causas que levaram ao segundo incidente. Nesta obra, o autor trata de alguns cearenses que estiveram envolvidos nos referidos conflitos.
         Os manuscritos relativos a esta obra do padre Martins, Os Mártires Pernambucanos, datam de 1823,[1] ou seja, foram elaborados ao longo de seis anos após a Revolução de 1817. Pela proximidade que tal narrativa guarda com os fatos, é provável que o autor tenha se baseado no testemunho ocular.

 Link para baixar o livro:

História da Revolução de Pernambuco em 1817

         A outra obra é de autoria do padre Francisco Muniz Tavares, o qual foi estudante do Seminário de Olinda e membro da Academia Paraíso em Recife, na então Capitania de Pernambuco. Como é sabido, também participou diretamente da Revolução Pernambucana de 1817, ao lado dos Patriotas. Com a derrocada da Revolução, foi preso no cárceres baianos, onde pode estudar sob a batuta dos irmãos Andrada, onde ganhou o apelido de o “Discípulo”. Depois de ser solto, no ano de 1821, o padre Muniz Tavares e embarcou em direção a Portugal para assumir o cargo de deputado nas Cortes Gerais.[2]
         Ocorre que, 23 anos depois da Revolução Pernambucana de 1817, em 1840, o padre Francisco Muniz Tavares publicou a obra “História da Revolução de Pernambuco em 1817”, sendo também leitura indispensável para aqueles que desejam conhecer um das mais belos episódios da História brasileira.

 Link para baixar o livro:
          





[1] BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça, O Patriotismo Constitucional: Pernambuco (1820-1822), São Paulo ‒ Recife, FAPESP, 2006, p. 155.
[2] CARVALHO, M. E. Gomes de, Os Deputados Brasileiros nas Cortes de 1821, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1979, p. 69.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Parte III: O Suposto Romance de Bárbara Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha

Parte III: O Suposto Romance de Bárbara Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha

                                                                     Heitor Feitosa Macêdo

Informações dadas ao inglês George Gardner

           
Bárbara de Alencar (pintura de Oscar Araripe)
O cientista inglês George Gardner esteve no Crato no ano de 1838, sendo ele médico e botânico, isto é, naturalista, penetrou as sendas dos interiores brasileiros à cata de novas espécies que deveriam compor os seus registros científicos. Como era de se esperar, na demora pelos lugares por onde passava, era-lhe possível fazer apreciações do povo que encontrava ao longo do seu itinerário, não escapando aos seus olhos alguns dos principais integrantes da família Alencar.
Inegavelmente, os habitantes do sertão não ficaram isentos às críticas de seu visitante, o qual, arrimado num discurso eurocêntrico, condenava tudo o que não lembrasse seu País de origem. Assim, sobre a Vila do Crato, falou Gardner:

Toda a população da Vila chega a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou mestiços que deles descendem. Os habitantes mais respeitáveis são brasileiros, em maioria negociantes; mas como ganharam a vida, as raças mais pobres é coisa que não entendo. Os habitantes desta parte da província, geralmente conhecidos pelo cognome de cariris, são famigerados no país por sua rebeldia às leis. Aqui foi, e até certo ponto ainda é, embora em menor extensão um esconderijo de assassinos e vagabundos de toda a espécie vindos de todos os cantos do país. Embora haja um juiz de paz, um juiz de direito e outros representantes da lei, seu poder é muito limitado e, ainda assim, quando o exercem, correm o risco de tombar sob a faca do assassino.  
   
            Não é de admirar que este britânico tenha sido um tanto leviano ao tratar do povo do Crato, pois, durante os cinco meses que residiu na pequena vila, fez poucos amigos, estabelecendo minguada intimidade com a população, como ele mesmo revela em sua obra: Vivi cinco meses no meio desta gente; mas em nenhuma outra parte do Brasil, mesmo durante mais curta residência, fiz menos amigos ou vivi em menos intimidade com os habitantes.
         Talvez essa antipatia entre ele e os cratenses tenha sido regada não só por sua condição de estrangeiro, europeu, mas também por sua religiosidade, posto que era protestante convicto. Logo, adentrar um espaço naqueles idos, habitado por gente miscigenada e extremamente católica, não era tarefa agradável.
Obra do inglês George Gardner.
         Segundo o escritor Pedro Jaime de Alencar Araripe, o inglês havia sido hóspede do Capitão João Gonçalves de Alencar, no entanto, isto parece possuir um certo exagero, pois, lendo a obra deste britânico, percebe-se que ele apenas havia visitado a casa deste filho de Bárbara, no Sítio Pau Seco (atual município de Juazeiro do Norte) e, mesmo assim, o fez para tratar da doença de olhos que acometia a esposa do referido capitão.
         O certo é que, convivendo com os moradores daquela pequena urbe, George Garner obteve a informação de que o vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha, era o progenitor de todos os filhos de Bárbara:

Raramente os homens da melhor classe social vivem com as esposas: poucos anos depois do casamento, separam-se delas, despedem-nas de casa e as substituem por mulheres moças que estão dispostas a suprir-lhes o lugar sem se prenderem pelos vínculos do matrimônio. Assim, sustentam duas casas. Entre outros que vivem nesta situação posso mencionar o juiz de direito, o juiz de órfãos e a maior parte dos comerciantes. Não é de admirar tal nível de moral, quando se leva em conta a conduta do clero. O vigário, então, um velho de setenta a oitenta anos, era pai de seis filhos naturais, um dos quais, educado para sacerdote, depois se tornou presidente da província e era então senador do Império, conquanto ainda conservasse seu título eclesiástico. Durante minha estada em Crato veio ele visitar o pai, trazendo consigo sua amante, que era sua prima, com oito filhos dos dez que ela lhe dera, tendo além disso cinco filhos de outra mulher, que falecera ao dar a luz ao sexto. Além do vigário, havia na vila mais três outros sacerdotes, todos com famílias de mulheres com quem conviviam abertamente, sendo uma das mulheres esposa de outro homem.

            Mas seria possível que o padre Saldanha fosse o pai de todos os filhos de Dona Bárbara Pereira de Alencar?
         Como ficou demonstrado, na ocasião do batismo do filho primogênito de Bárbara, João Gonçalves Pereira de Alencar, no dia 27 de janeiro de 1783, o padre Saldanha foi quem mandou registrar o assento deste sacramento no livro paroquial. Ao tempo, o padre Saldanha estava com 19 anos de idade, enquanto que Bárbara possuía 23 anos de vida. Não resta dúvida que, biologicamente, ambos possuíam idade apta a procriar.
         Um trineto de Bárbara Pereira de Alencar, José Carvalho, rebate essa afirmativa de Gardner com base na tradição oral emanada do seio de sua família, usando como argumento o fato de o capitão João Gonçalves Pereira de Alencar se parecer com o marido de Bárbara, José Gonçalves dos Santos, o Surubim Pintado:

Não posso deixar de, aqui, interromper o NOSSO bom Inglez. João Gonçalves, nunca foi considerado filho do vigário. Tanta parecença física tinha elle com o pae, o portuguez marido de D. Barbara, que a calumnia nunca o pôde attingir. O inglez ‒ é visível ‒ tanto nisto, no numero das mulheres e filhos de José Martiniano, estava olvidado ou fôra mal e perversamente informado. Não é de admirar que o fôsse por uma sociedade, como a que descreve com tintas tão carregadas; como, tambem, não é de estranhar o vilipendio atirado á honra da heroina que tão alta se elevava naquelle meio, como já notou João Brígido. É ainda deste mesmo chronista cearense, numa das cartas a que já aludi, a seguinte affirmação: ‒ <<FILHOS DE SURUBIM, PARA O PUBLICO DO CRATO, ERAM TODOS OS DE D. BARBARA, MENOS UM ‒ PADRE SENADOR>>. José Gonçalves dos Santos, marido de D. Barbara, tinha o apellido de SURUBIM-PINTADO “porque tinha o rosto sarapintado de botelhas”, no diser do mesmo chronista. 
   
            Provavelmente, os comentários sobre a vida amorosa de Dona Bárbara Pereira de Alencar continuavam sendo propagados abertamente na vila cratense, mesmo depois de sua morte, em 1832. Na época, difundir uma inverdade desta natureza poderia custar caro, ensejando conflitos sangrentos, pois a honra era um bem preciosíssimo e simples nódoas eram lavadas a sangue. Desta maneira, é desarrazoado que o inglês e quem lhe repassou tal informação quisessem se expor ao risco de sofrerem retaliações violentas, e se estas não ocorriam é sinal de que os “boatos” não causavam pecha, talvez por não serem de todo inverdadeiros!
      
Informações dadas por dois correligionários do Senador Alencar
           
            O padre Joaquim Dias Martins foi o autor de uma das mais antigas obras sobre a Revolução Pernambucana de 1817, com o título de “Os Mártires Pernambucanos”, na qual tece alguns comentários que indicam existir estreitos laços entre o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, Bárbara Pereira de Alencar e o senador José Martiniano de Alencar.
        
Obra do padre Joaquim Martins.
       Depois de escrevinhar longos elogios a Bárbara Pereira de Alencar, o padre Joaquim Dias Martins aponta que ela estava: “recolhida á sua casa a Providência lhe promette a mais feliz ancianidade: porque o vigario Miguel Carlos da Silva Saldanha – vid. Art. – continúa a ser o seo guia, mestre, e consolador...”. Dizer que o padre Saldanha continuava a ser o “guia, mestre e consolador” de Bárbara não prova o romance, porém, este dado não deve ser descartado, pois indica uma proximidade bem peculiar, que será complementada em páginas subsequentes da referida obra.
         Em outra passagem, o mesmo padre Joaquim Dias Martins, ao enaltecer o padre Saldanha, destaca que este:

...era morador no Crato, e ilustre vigario d’aquella extensa e preciosa parochia, condecorado com o habito de Christo. Suas parochiaes virtudes o tinhão feito respeitavel a todas as suas ovelhas: nada porém era comparavel á estima da ilustríssima ‒ Alencar 1º e seo filho Alencar 2º ‒ e de toda esta familia: a singular predilecção que tinha por este ultimo, o fazia, ver, ouir, e sentir pelos orgãos do afilhado, crendo sem hesitar, e abraçando firmemente quando elle lhe dictava, ainda mesmo sem o entender: felizmente o joven nunca abusou da sua ascendencia... .   
            Além de revelar a aguda simpatia que o padre Saldanha dedicava a José Martiniano de Alencar (Alencar 2º) e a mãe deste, Barbara Pereira de Alencar (Alencar 1º), o autor também revela outro indício importante ao expor que José Martiniano nunca “abusou da sua ascendência”, ou seja, dá a entender que o padre Saldanha estava entre os ascendentes (ancestrais) do senador Alencar.
         Mas como o padre Joaquim Dias Martins obteve estas informações?
         Os manuscritos relativos à obra do padre Martins, Os Mártires Pernambucanos, datam de 1823, ou seja, foram elaborados ao longo de seis anos após a Revolução de 1817. Pela proximidade que tal narrativa guarda com os fatos, é provável que o autor tenha se baseado no testemunho ocular dos participantes do dito movimento de 1817, o que inclui o próprio José Martiniano de Alencar, pois ambos eram correligionários, amigos e mantiveram relativa convivência, pelo menos é o que dá a entender no seguinte trecho sobre o padre Alencar, quando este retornava das Cortes de Portugal:

...já contámos os principaes sucessos da sua vida machinal nos dous precitados artigos: aqui sómente acrescentaremos o juizo que formámos, quando o vimos desembarcar em Pernambuco, em 1821, tão gordo, tão alegre e tão desenfadado: feliz homem! Dissemos: preso sem culpa, perseguido sem causa, martirizado sem gloria e restituido sem honra: confessamos, todavia, que o povo, em vista da causa, pensa de um modo mais rigoroso.   
  
Obra do padre Moniz Tavares.
            Outro colega de José Martiniano de Alencar era o padre Francisco Muniz Tavares (apelidado de “o Discípulo”), desde a época do Seminário de Olinda e da Academia Paraíso em Recife, na então Capitania de Pernambuco. Como é sabido, ambos participaram diretamente da Revolução Pernambucana de 1817, entrincheirados ao lado dos Patriotas. Com a derrocada da Revolução, foram eles presos nos cárceres baianos, onde puderam estudar sob a batuta dos irmãos Andrada. Ressalte-se que Dona Bárbara Pereira de Alencar também estava presa nas mesmas masmorras. Depois de serem soltos, no ano de 1821, os padres Muniz Tavares e Alencar embarcaram em direção a Portugal para assumir os cargos de deputados nas Cortes Gerais. Como é perceptível, o contato entre estes dois indivíduos foi bastante intenso.
         Ocorre que no ano de 1840 Francisco Muniz Tavares publicou a obra “História da Revolução de Pernambuco em 1817”. Tendo sido uma das testemunhas oculares do fato, Muniz Tavares inclui em sua narrativa o velho companheiro de lutas, não fazendo rodeios ao dizer que o então “subdiácono” José Martiniano de Alencar era filho do Vigário do Crato, o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha:

Munidos tambem de cartas de recomendação, puzerão-se todos dois em caminho. O theatro onde Alencar podia representar, era a sua villa natal; para ahi proseguio separando-se logo do seu companheiro, que ficou inerte na Fazenda do Padre Luiz José. Chegando á casa paterna, elle contou misteriosamente os factos das Provincias revoltadas exaltando-os, e valendo-se dos meios adequados para induzir o bom pai a favorece-lo no trabalho de cathechisar o temivel Capitão-Mor. Foi porém tudo em vão; a pusilanimidade excedia a predileção. Aquelle Parocho, que mal entendia o seu breviário, e não conhecia outro objecto de culto se não o seu Deus, e o seu Rei, tremeo ouvindo a narração, e pensando unicamente na salvação do filho, que já cria perdido, o supplicou a desistir da empresa.

            A respeito disto, Ruth Alencar tenta desqualificar o autor ao afirmar que ele “pertence à classe dos caluniadores que mentem patologicamente”, estribando seus argumentos em especulações pessoais ainda não comprovadas, como, por exemplo, uma possível inimizade política entre Muniz Tavares e o padre Saldanha, bem como no fato de Muniz Tavares ter se abeberado nos escritos do padre Francisco Gonçalves Martins, erroneamente considerado como “o primeiro e único caluniador de Bárbara de Alencar”.  
         Tendo em vista que Muniz Tavares e o senador Alencar foram colegas no Seminário de Olinda, sócios da Academia Paraíso, participantes da Revolução da Revolução Pernambucana de 1817 e deputados na mesma legislatura, nas Cortes Gerais de Portugal, em 1821, não resta dúvida que conviveram de perto, sendo crível que, por esta razão, conhecessem detalhes da vida privada um do outro.
         Fato bastante curioso é que a obra de Muniz Tavares veio à lume no ano de 1840 e, mesmo diante disto, o senador José Martiniano de Alencar, no auge de sua carreira política, não tenha rebatido as supostas “calúnias”. Pelo menos, não se conhece nenhum escrito de Alencar defendendo a si ou a própria mãe do crime que maculava as suas respectivas honras.   

O Testamento do Vigário Miguel Carlos da Silva Saldanha

Admitir que tenha acontecido o tal romance não causa estranheza, isto porque a História do Ceará está repleta de casos semelhantes, vários padres mantendo relações com mulheres e com elas formando proles extensas, das quais, muitas compõem boa parte das famílias tradicionais do Nordeste.
No começo do século XVIII, são feitas acusações contra o padre jesuíta Ascenso Gago, sendo ele pai de vários filhos gerados com as índias da aldeia da Serra da Ibiapaba. Além disso, ele também é acusado de ter, às custas do trabalho indígena, acumulado valores relevantes para servirem de dote a uma de suas filhas:

Representando-se mais pelos ditos moradores que toda a causa de se não mudar a dita aldeia da serra da Ibiapaba são os padres da companhia pela conveniência que nela tem, cuja aldeia só serve de ofensas de Deus, e de inquietações aos moradores circunvizinhos, causando nelas muito escândalo os padres Ascenso Gago e Manuel Poderoso com o procedimento, que se manifesta pelos ditos moradores, chegando o dito Ascenso Gago a dotar com doze ou quinze mil cruzados uma filha, que casou, cujo dinheiro se ajuntou por meio dos índios, que em seu serviço o ganharam carregando sal para o Piauí a troco de vacas com que povoou vários sítios.

No sertão dos Inhamuns, ao lado do Cariri, também no século XVIII, encontrava-se o padre José Bezerra do Vale amancebado com uma índia jucá, sendo que deste casal descendem muitas famílias cearenses, como os Andrade, os Gois, os Arrais, os Abath (do Crato/CE). Há quem diga que o ex-presidente do Brasil Wenceslau Brás também esteja entre os descendentes do “pecaminoso” relacionamento do padre José Bezerra do Vale com a dita cunhã.
Comprovadamente, no Ceará dos séculos passados, são inúmeros os casos de padres entregues à lascívia, mas, para evitar delongas, apenas alguns serão citados a fim de contextualizar os fatos aqui tratados.
Em Russas, o padre Maia deixou larga descendência. No Pereiro, próximo a cidade de Icó/CE, o padre F. Martins, além de se apossar das terras de um fazendeiro, que também era filho de um padre, tomou-lhe a esposa, deixando vários filhos no lugar. Em Uruburetama/CE, o padre Francisco Rodrigues Barbosa era proprietário de fazenda e pai de família.
No Crato, o número de pastores entregues ao pecado da carne era significante, pois, só no ano de 1838, existiam quatro que possuíam filhos e amásias. Entre estes presbíteros cratenses, um dos que mais chamava a atenção era o padre Joaquim Ferreira Lima Verde, progenitor de uma das famílias mais numerosas do Sul cearense e de todos os que possuem esse sobrenome no País. O comportamento deste padre era tão escancarado e aceito socialmente que foram publicadas no jornal da cidade O Araripe, em 1856, algumas acusações contra ele, nas quais, inusitadamente, é chamado de assassino e corno.  
Oriundo de Lisboa, o padre Alexandre Leite de Oliveira se radicou na Vila do Crato durante o século XVIII, onde se tornou senhor de dois engenhos (Rosário e Cabreiro). Apesar da sotaina, o dito padre gerou um filho, chamado Antônio Leite de Oliveira, que também veio a se tornar sacerdote e, palmilhando a mesma senda paterna e avoenga, produziu numerosa prole, isto por ter se amigado com Dona Josefa Leonor da Encarnação, com quem teve cinco filhos: Antônio Lima de Mendonça, Venceslau Patrício, Ana Rakel (ou Rabel), Antônia e Maria Luíza, sendo todos eles tratados em seu testamento pela alcunha de “afilhados”:

Papel de doação que faz o padre Antônio Leite de Oliveira do Sítio da Venda aos seus afilhados cujo papel vai lançado nesta Nota:
Saibam quantos este público instrumento virem com o teor de um papel de doação que sendo no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e doze, aos quatorze dias do mês de Dezembro do dito ano, nesta real Vila do Crato Comarca do Ceará Grande em seu cartório, por parte do doador me foi requerido lançasse este papel de doação em Notas para obviar qualquer inconveniente que poderão padecer pelo tempo futuro e por o reconhecer verdadeiro e estar a mim distribuído pelo Distribuidor deste Juízo Joaquim José de Melo, o tomei e aqui o lancei e é o que se segue. Digo eu o padre Antônio Leite de Oliveira, Clérigo Secular do hábito de São Pedro, que entre os meus bens que possuo com posse mansa e pacífica há bem assim um Sítio de terras nominado Venda que há de ter pouco mais ou menos meia légua, que comprei e o tenho por preço de cem mil réis cujos vendedores foram Antônio Lopes de Andrade e sua mulher Arcângela Maria a quem logo paguei dita quantia e presenciaram esta venda e compra Domingos Dias Cardoso e José Joaquim, comprado com dinheiro adquirido pelas Ordens de Missas e estado clerical sem que entrasse na compra dele coisa alguma do casal de meus pais e irmãos, cujo Sítio extrema pela parte sul no riachinho da Venda e descendo pelo rio Salgado abaixo até o curral queimado com terras de Miguel Álvares, da parte do Norte e do Nascente com o mesmo rio Salgado e do poente com terras da Canabraba, o qual sítio assim extremado e como constará de sua escritura a mim passada e por ser verdadeira e legitimamente meu e não haver sobre ele embargo, nem dúvida e nem outra alguma coisa que de embargo servir possa, faço doação deste mesmo sítio aos meus afilhados Antônio Lima de Mendonça, Venceslau Patrício, Ana Rakel (ou Rabel), Antônia, Maria Luíza, filhos de Dona Josefa Leonor da Encarnação (...).

Mas não parou por aí, pois, não bastasse o referido padre Alexandre Leite de Oliveira ser genitor de um outro padre, também teve um neto que se tornou religioso, o padre João Marrocos Teles, o qual, por sua vez, é o pai do professor José Joaquim Teles Marrocos, quem ainda tentou seguir a carreira religiosa, mas acabou sendo expulso do Seminário da Prainha, em Fortaleza/CE.
Aproveitando o ensejo, deve ser destacado que o referido padre Antônio Leite de Oliveira, documentalmente, consta como padrinho de batismo de José Martiniano de Alencar. É curioso notar que Alencar também se tornou padre e constituiu família com uma “prima de primeiro grau”, demonstrando ter puxado à benção do padrinho, seguindo a regra do tempo e do meio em que estava inserido.
Essa permissividade sexual era algo constante na vida daqueles brasileiros interioranos, incluindo as pessoas mais próximas de José de Alencar, a começar por seu irmão, Tristão de Alencar Araripe, que teve um filho natural com uma escrava, o professor Pedro Jaime de Alencar Araripe.
Outro caso emblemático de licenciosidade ocorreu com o Coronel Maínha, José Francisco Pereira Maia (filho do pernambucano Francisco Pereira Maia Guimarães, um dos protagonistas da Revolução de1817 em Crato), pois, depois de ter se apartado da mulher legítima, foi viver em concubinato com nove mulheres, sendo cinco delas tias do padre Cícero Romão Batista.
O fato é que, do litoral ao sertão, dentro e fora da família Alencar, observam-se muitos religiosos entregando-se aos prazeres da carne, e para que tais indivíduos não sejam esquecidos, cabe lembrar algumas famílias do Ceará que encontraram nos padres verdadeiros garanhões, entre eles: os Pompeu, descendentes do padre Tomás Pompeu de Sousa Brasil (senador do Império); um dos ramos da família Alencar que provém do padre Pedro Antunes de Alencar Rodovalho; os Angelitinos Martins de Missão Velha, no Cariri, rebentos do padre Manuel Antônio Martins de Jesus, que foi deputado provincial; os Aires da região caririense, que têm como patriarca o padre Manuel Joaquim Aires do Nascimento (ex-vigário colado do Crato); os Beviláqua, descendentes do padre José Beviláqua (ex-vigário de Viçosa); e, por último, o exemplo pitoresco do padre José Gonçalves da Costa, deputado provincial e pai de muitos indivíduos, o qual chegou ao cúmulo de raptar a filha de um colega de profissão (o padre Manuel da Silva Sousa) para com ela coabitar.    
Já na segunda metade do século XIX, o comportamento dos religiosos impressionava o médico Francisco Freire Alemão, que, ao falar sobre a imoralidade do clero e seculares do Ceará, declarou: “Quanto ao clero, não será possível achar-se em outro lugar onde sua devassidão exceda, ou mesmo iguale, ao que se vê nesta província”.
         Depois de toda essa digressão, resta apresentar o testamento deixado pelo vigário do Crato Miguel Carlos da Silva Saldanha, pelo qual lega seus bens aos filhos do padre José Martiniano de Alencar com Dona Ana Josefina de Alencar. O testamento fora feito no dia 16 de fevereiro de 1839 na então Vila do Crato, e diz:

Testamento solene que faz em notas aberta e publicado o reverendo Vigário Miguel Carlos da Silva Saldanha.
Saibão quantos este publico instrumento de testamento virem que sendo no anno de do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e trinta e nove, anno décimo oitavo da independência e do Império aos dezeseis dias do mez de fevereiro do dito anno nesta Villa do Crato cabeça da comarca da Província do Ceará em casa do reverendo vigário Miguel Carlos da Silva Saldanha, onde fui vindo eu Tabelião Público adeante nomeado e assignado, e sendo ahi pelo dito reverendo me foi dito que queria fazer seu solene testamento aberto e publicado em notas e por isso me havia mandado chamar para lhe escrever, e que ele o ditava, o qual é da maneira seguinte: Em nome da Santíssima Trindade Pai Filho e Espírito Santo em que eu Miguel Carlos da Silva Saldanha firmemente creio e em cuja fé protesto viver e morrer. Este, o meu testamento de última vontade. Declaro que sou filho de Manuel Carlos da Silva Saldanha, e de Isabel Maria de Sousa, naturais da freguesia de Riacho de Sangue donde também sou natural, declaro e quero ser sepultado na minha Matriz sendo acompanhado pelos sacerdotes que se acharem, os quais dirão missa de corpo presente por minha alma; mando que se ergam por minha alma duas Capelas de Missas, outra pelas almas de meus pais, outra pelas de meus irmãos falecidos e uma pelas almas de meus fregueses, e mais duas Capelas aplicadas em minha intenção. Deixo para adjutório da obra de minha Matriz quatrocentos mil reis, e para o azeite do Santíssimo Sacramento, vinte e cinco mil reis e igual quantia para os pobres de porta da minha freguesia que acompanharem o meu enterro. Deixo cinqüenta mil reis para as duas filhas do falecido José Carlos. Rogo em primeiro lugar ao senhor Senador José Martiniano de Alencar, em segundo lugar ao senhor José Dias Azedo e em terceiro ao senhor capitão João Pereira de Alencar queiram fazer a obra pia de ser meus testamenteiros. Declaro que não tenho herdeiros forçados, e por isso constituo por meus herdeiros universais os filhos de dona Ana Josefina de Alencar, filha do falecido Leonel Pereira de Alencar, os quais são: José, Leonel, Ana e Tristão, a quem meus testamenteiros entregarão todas as minhas fazendas, que por minha morte ficar, tirando somente o que for preciso para o cumprimento de minhas disposições por ser esta minha última vontade para ser cumprida depois de minha morte. E deste modo disse ultimava seu solene testamento e disposição de última vontade, e revogava qualquer outra que aparecesse, pois era esta sua última vontade, e como assim disse assignou se seu próprio punho com as testemunhas o reverendo Manuel Joaquim Aires do Nascimento, o reverendo Pedro Antunes de Alencar Rodovalho, o alferes Canuto José de Aguiar, Roque Carlos Peixoto de Alencar e Manuel Carlos da Silva Peixoto, e que Antonio Duarte Pinheiro Tabelião Público o escrevi.

            É perceptível que o padre Saldanha, mesmo tendo vários sobrinhos, filhos de seus irmãos, resolveu deixar todos os seus bens aos filhos naturais de Ana Josefina de Alencar com o senador José Martiniano de Alencar. E por que ele teria feito isso? O senador, presumidamente, já era um homem rico e, em tese, não tinha parentesco sanguíneo com o padre Saldanha, coisa que era de extrema relevância na hora de um testamento para aquela gente. Seria mais razoável se o vigário tivesse testado em favor dos parentes mais próximos, pois o que não lhe faltava eram sobrinhos!
         Além disso, quando o padre Saldanha nomeia como testamenteiro, em primeiro lugar, o senador José Martiniano, percebe-se o tamanho da confiança e a estreita relação entre ambos.
         Ademais, é importante destacar que quando chega a vez de o senador Alencar elaborar seu próprio testamento, em 1853, nomeia em primeiro lugar, como testamenteiro, o seu filho primogênito, o bacharel em direito e escritor José Martiniano de Alencar; em seguida, encomenda para que se faça, após sua morte, uma capela de missas em favor de seus pais e outra capela de missas para o seu padrinho e benfeitor, o padre Saldanha, em agradecimento pelos benefícios por ele prestados.

CONTINUA!
NOTA: TODOS OS DADOS AQUI APRESENTADOS SÃO RESPALDADOS EM FONTES ESCRITAS, CONTUDO, ESTAS SÓ SERÃO REVELADAS QUANDO DA PUBLICAÇÃO EM LIVRO DE NOSSA AUTORIA.



quarta-feira, 19 de abril de 2017

O encontro com uma neta de Bárbara Pereira de Alencar no Cemitério do Crato/CE

O encontro com uma neta de Bárbara Pereira de Alencar no Cemitério do Crato/CE

                                                                                                   Heitor Feitosa Macêdo

         Em uma manhã, no final do ano de 2016, eu, o pesquisador Ronald Tavares e o padre Roserlândio visitamos o antiquíssimo Sítio Pau Seco, hoje, no município de Juazeiro do Norte/CE, onde Bárbara Pereira de Alencar havia residido por longos anos.
          
Inscrição tumular da neta de D. Bárbara de Alencar.
Na verdade, a casa não existe mais, exceto o seu alicerce, posto que as paredes foram derrubadas, segundo alguns, por gente em busca de tesouros, ou melhor, botijas. Próximo à estrada “carroçável”, polvilhada de amarela piçarra, a alguns metros do Rio Batateira está um discreto outeiro, sob o qual vê-se com muita dificuldade uma sapata de pedra encoberta por pedaços de grossos tijolos adobes.
         Cacos de telhas, aqui e acolá, vão se afastando do terreiro, quase sempre carreados pelas chuvas. Além disso, ao redor dos escombros, também são vistas algumas faianças, isto é, cacos de antigas louças. Moradores da circunvizinhança noticiam sem comedimento encontrarem talheres de metal amarelo, muito provavelmente de latão.
         A uns 150 metros dos entulhos da velha casa estão as ruínas do que foi um próspero engenho, ainda sendo possível ver sua fornalha, cuja boca é formada por um arco de espessos tijolos. O clima bucólico associado aos vestígios materiais do vetusto imóvel chegam a causar certa nostalgia até mesmo para quem não presenciou os dias de glória daquele reduto da matriarca comumente chamada pelo povo de “Dona Bárbara do Crato”.  
         Nenhuma medida existe para preservar o que resta, nem por parte da família Alencar nem por parte dos gestores públicos. Aliás, ressalte-se que a cidade do Crato, da mesma forma que o Juazeiro do Norte, pode se vangloriar de ter destruído uma das duas principais moradas de Dona Bárbara, pois a casa da Praça da Sé, com beiral colonial, foi demolida para dar lugar ao atual prédio da Secretaria da Fazenda do Estado Ceará. É demasiadamente paradoxal, pois como pode a região do Cariri tanto se gabar de Bárbara e dos seus filhos ao passo que pouco faz para preservar sua memória?
         Passando ao largo dessas aflições e denúncias inúteis, nós (eu, padre Roserlândio e o Ronald) continuamos nossa caminhada insatisfeitos com as informações colhidas, pois o mal do pesquisador é sempre querer obter mais e mais. Então, retornamos as nossas habitações.
         Ao final da tarde me dispus a deixar o Ronald na Rodoviária do Crato, pois ele pretendia retornar ao Aquirás/CE. No caminho, resolvemos parar no cemitério da referida cidade para examinar alguns túmulos dos mais antigos. Passando por diversos nomes de gente graúda da cidade, terminamos nos deparando com uma lápide muito velha, datada de 1861. O formato piramidal por si só já chamava a atenção. Ao ler o epitáfio tivemos a surpresa de que ali jazia a neta de Dona Bárbara de Alencar, conforme rezava a inscrição do branco mármore: “AQUI JAZ/ DONA MARIA MARTINIANA D’ALENCAR/ FILHA LEGÍTIMA DO CAPITÃO JOÃO GONÇALVES PEREIRA D’ALENCAR E ESPOSA FIEL DE JOSÉ DE SOUSA ROLIM/ NASCEU A 11 DE JUNHO DE 1811/ FALECEU A 24 DE JULHO DE 1861”.  
Túmulo de D. Maria Martiniana de Alencar.
         De imediato me veio na mente o que escrevera um dos trinetos de Bárbara Pereira de Alencar, José Carvalho, numa publicação do ano de 1920, ao dizer que um inglês naturalista, George Gardner, havia descrito uma das netas de Dona Bárbara quando esteve na então Real Vila do Crato, em visita ao filho mais velho desta, o Capitão João Gonçalves, exatamente no Sítio Pau Seco, no ano de 1838.[1]
         O Capitão João Gonçalves era homem pacato e foi o único filho de Bárbara que não se envolveu nos movimentos revolucionários de 1817 (Revolução Pernambucana) e 1824 (Confederação do Equador). Ocorre que em 1838 o dito capitão foi visitado pelo inglês George Gardner que, por ser médico, ia consultar algumas pessoas no Sítio Pau Seco, as quais estavam sofrendo com a “Sapiranga do brejo”, isto é, o tracoma, muito comum na região. Assim disse o próprio Gardner:

Vivi cinco meses no meio desta gente; mas em nenhuma outra parte do Brasil, mesmo durante mais curta residência, fiz menos amigos ou vivi em menos intimidade com os habitantes. Além do senhor Melo, o único indivíduo cuja casa visitei frequentemente era um outro filho do velho vigário, Capitão João Gonçalves, dono de um engenho de açúcar (rapadura), a duas léguas da cidade. Conheci-o pela primeira vez quando veio me consultar a respeito de sua esposa, que sofria de oftalmia crônica. Era homem amável, de excelente qualidade, de quem ainda conservo agradável lembrança das horas passadas em sua casa. Os olhos de sua mulher melhoraram muito sob meu tratamento e, como era muito comunicativa e bem humorada, tínhamos longas conversas sobre os usos e costumes de nossos respectivos países. A família compunha-se de duas filhas, uma delas casada, vivendo dezesseis léguas de distância em lugar que visitei depois; a mais nova, bela moça de uns dezesseis anos, teve acanhamento de aparecer-me e não a vi nas primeiras duas ou três visitas. Mas, como me disse a mãe depois; sua curiosidade de ver um inglês e conversar com ele, acabou por vencer de todo o seu retraimento, de modo que passou sempre a aparecer quando eu lá estava. Ia se casar com um irmão mais moço do cunhado, havendo anos já que eram noivos. É bem raro aqui que as moças das famílias respeitáveis tenham liberdade de escolher maridos por si mesmas; são os pais que se incumbem dos arranjos em tais casos.[2]    

            Depois de reler este trecho, fiquei remoendo a possibilidade de a pessoa sepultada naquele túmulo ser a mesma que o inglês havia conhecido no Sítio Pau Seco, a filha caçula do Capitão João Gonçalves. Dessa forma, recorri a leituras que pudessem complementar a narrativa de Gardner. O resultado foi que encontrei mais dois filhos do casal João Gonçalves de Alencar e Luíza Xavier da Silva, quais sejam: Cesário Gonçalves de Alencar e Alexandrina Xavier de Alencar.[3]
         Porém, diante da escassez dos dados documentais, como saber a idade das filhas do Capitão João e, assim, identificar a mais nova? 
         Pelos escritos de José Carvalho, infere-se que o seu bisavô, o Capitão João Gonçalves, teve quatro filhos (três mulheres e um homem), sendo que um destes rebentos se chamava Bárbara (Auta de Alencar), casada com Manoel da Cruz Rosa Carvalho (avós de José Carvalho). Mas não parou por aí, pois o referido autor também revela ter conhecido a sua tia mais moça, nos seguintes termos: “Ainda a vi, já velhinha; foi realmente casada com um irmão de meu avô, o qual residiu no sítio Ouro Preto, em Salgueiro, Pernambuco, onde deixou descendência”.
         A esta altura, as pistas já eram suficientes para chegar à conclusão de que aquele túmulo não era o da filha mais jovem do Capitão João Gonçalves, pois a lápide de Dona Maria Martiniana d’Alencar diz que ela nascera no ano de 1811. Paralelamente, Gardner havia anotado em seu diário, em 1838, que a filha “mais nova” do capitão teria “uns dezesseis anos”. Logo, ao fazer a subtração das datas, conclui-se que Dona Maria Martiniana, ao tempo da visita do inglês, possuía 27 anos, aproximadamente.
         De posse dessas informações, sabia que, agora, bastava encontrar o nome do irmão do avô de José Carvalho, Manoel da Cruz Rosa Carvalho, para, assim, desvendar o nome de sua esposa e, por conseguinte, identificar a derradeira filha do Capitão João Gonçalves.
         Desta feita, dando prosseguimento à investigação, recorri a um trabalho de genealogia sobre a família Alencar, de autoria de José Roberto de Alencar Moreira, mas, infelizmente, não encontrei o que tanto procurava. Ainda com muita curiosidade, continuei pesquisando e, por fim, nos escritos de Yoni Sampaio descobri que:

Joaquim Manoel Sampaio. Nasceu em 1849. Major da Guarda Nacional. Foi chefe político em Salgueiro. Casou com Bárbara Docelina de Alencar, filha de Antônio da Cruz Neves Júnior, Toínho do Ouro Preto, e de Alexandrina Xavier de Alencar, Dondón Alencar.

            Com estas informações, ficou tudo resolvido! A filha caçula do Capitão João Gonçalves, Alexandrina Xavier de Alencar, que o inglês havia mencionado, não é a que está no túmulo do cemitério do Crato, isto é, Dona Maria Martiniana de Alencar.
         Ao fim, dei-me por satisfeito, pois, por obra do acaso, quiçá do destino, encontrei uma das netas de Dona Bárbara Pereira de Alencar, num jazigo, aparentemente, esquecido, a espera de alguma luz além da escuridão do interior de sua velha cripta piramidal.

Idem.



[1] CARVALHO, José, Heroína Nacional: Bárbara Pereira de Alencar, In Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza – Ceará, 1920, p. 213.
[2] Gardner, George, Viagem ao Interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841, São Paulo, Editora da Universidade do São Paulo, 1975, p. 94.
[3] MOREIRA, José Roberto de Alencar, Vida e Bravura: Origens e Genealogia da Família Alencar, Brasília, CERFA, 2005, p. 210.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Parte II: O Suposto Romance de Bárbara Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha

Parte II: O Suposto Romance de Bárbara Pereira de Alencar com o Vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha

                                                         Heitor Feitosa Macêdo

Cunhadio e Compadrio entre Bárbara e o padre Saldanha

            Outra tese que auxilia no exame da suposta convivência amorosa entre o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha e Bárbara de Alencar remete a dois vínculos comuns na sociedade da época, que são o cunhadio e o compadrio.
Desenho sobre a Revolução Pernambucana de 1817 representando a participação feminina, da autoria de Miguel JC (Fonte: <https://tvuol.uol.com.br/video/a-revolucao-pernambucana-como-voce-nunca-viu-04024D19326CD4896326>. Acesso em 18/04/2017)
         Estes dois institutos fazem parte dos dogmas religiosos da Igreja Católica, estando entre um dos sete sacramentos, e servem para estreitar laços, criando relações recíprocas de interação social, com conotação de parentesco espiritual, o que implica diretamente em ligações mútuas de afeto, coesão, direitos e obrigações. Ressalte-se que, no começo do século XIX, o cunhadio e o compadrio carregavam um significado muito mais importante e agudizado que hoje.
         Com o casamento, os irmãos de um dos cônjuges adquiriam a qualidade de parente do outro nubente, sendo chamado de cunhado. Já no compadrio, esta relação se dava em dois momentos: no batizado (logo após o nascimento) e na crisma (depois dos 14 anos de idade), porém, tinha o mesmo sentido, qual seja, a obrigação dos padrinhos (do latim vulgar patrinu, diminutivo de pater, ou seja, pai) de acolherem o afilhado na ausência dos progenitores, assemelhando-se, grosso modo, a uma relação subsidiária de paternidade e perfilhação.
         Mas como isto pode indicar o envolvimento amoroso entre Bárbara e o padre Saldanha?
         Analisando antigos documentos paroquiais, constata-se que duas irmãs de Brárbara de Alencar se casaram com dois irmãos do padre Saldanha.
         Antônia Pereira de Alencar, irmã de Bárbara, casou-se com Manuel Carlos da Silva, irmão do vigário Saldanha, no ano de 1793:

Em o primeiro do mes de julho de mil setecentos noventa e treis na capella de Barbalha pellas nove horas do dia depois de feitas as denunciaçons, que o depoem o Sagr. Consil. Trid. sem se descobrir empedimento algum em prezensa do Reverendo Padre Miguel Carlos da Sylva sendo primeiro examinados em Doutrina Cristam, de Parochial licença se receberam solemnemente por palavras de prezente Manoel Carlos da Sylva natural da Freguezia do Riaxo do Sangue de donde apresentou Certidam de banhos, filho legítimo de Manuel Carlos da Sylva e Izabel da Conceiçam com Antonia Perera de Alencar natural da Freguezia do Senhor Bom JESUS do Enxú de donde apresentou a certidam de banhos filha legitima de Joaquim Perera de Alencar, e Teodoria Rodrigues da Conceiçam, logo Receberam as bensons na forma do Ritual Romano, e asistiram prezentes por testemunhas Antonio Gonsalves de Arahujo Junior, e Alexandre da Sylva Pexoto, de que mandou fazer este assento, em que me asignei.
Cura André da Silva Brandão.

Neste registro paroquial constata-se a presença do padre Miguel Carlos da Silva Saldanha (repita-se, irmão do nubente), sendo que este casamento ocorreu no Cariri, mais especificamente, em Barbalha/CE. Sendo provável que Bárbara de Alencar também estivesse presente, pois também se tratava do matrimônio de sua irmã, momento de grande festividade.
Além desta, outra irmã de Bárbara de Alencar, Josefa Pereira de Alencar, depois de enviuvar, casou-se com Alexandre Carlos da Silva Saldanha (também chamado de Alexandre da Silva Peixoto), irmão do padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, no dia 22 de janeiro de 1795:

Aos vinte e dois dias de janeiro de mil setecentos noventa e sinco nesta Matris de Sam José pellas nove horas do dia depois de feitas as denunciações, que o depoem o Sag. Consil. Trid. sem se descobrir empedimento algum em prezensa do Reverendo Cura André da Sylva Brandão sendo primeiro examinados em dotrina Cristam se receberam solenemente por pallavras de prezente Alexandre da Sylva Pexoto natural da Freguezia do Riaxo do Sangue donde aprezentou Certidam de banhos, filho legitimo de Manoel Carlos da Sylva, e de Izabel Rodrigues da Conceiçam, com Josefa Pereira de Alencar viuva que ficou do João José sepultado na Matris do Enxú donde apresentou a certidam de óbito, e aprezentou certidam de banhos filha legitima de Joaquim Perera de Alencar, e de Teodora Rodrigues, e asistiram prezentes por testemunhas o Padre Miguel Carlos da Sylva, e o Padre Francisco Eduardo, de que mandou o Reverendo Cura fazer este assento, em que com as testemunhas se asignou.
O Cura André da Silva Brandão
Miguel Carlos da Sa
O Pe Francisco Eduardo Paez de Melo.

Nesta cerimônia de esponsais, também ocorrida no Cariri, desta vez na Matriz de São José dos Cariris Novos, em Missão Velha/CE, vizinha à Barbalha, nota-se mais uma vez a presença do padre Miguel Carlos da Silva Saldanha. Como se percebe, por duas vezes, Dona Bárbara e o vigário Saldanha foram concunhados.
Isto não deve ser ignorado, pois, à época, os casamentos eram arranjados pelos pais dos noivos, expressando, além de intenções financeiras (somar ou manter o patrimônio dos clãs), uma afinidade preexistente entre as famílias, ou seja, uma interação estreita e, relativamente, antiga.
         Portanto, pode-se dizer que Bárbara já convivia em eventos familiares com o padre muitos anos antes de ele ter ido residir na então Vila do Crato na condição de vigário, em 1800, o que é corroborado por outros documentos paroquiais.
         Ademais, outro fator relevante reside no fato de o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha ter sido o padrinho de crisma do filho caçula de Bárbara de Alencar, José Martiniano de Alencar. Isto é o que revelam os livros paroquiais da freguesia do Crato, ao citar que, em 1801: “José, filho de José Gonçalves dos Santos e de Dona Bárbara Pereira, Padrinho o Reverendo Vigário Miguel Carlos Saldanha”.
         Nesse aspecto, merece ser destacado a prática comum entre os padres, naquelas eras, em apadrinhar seus filhos de sangue. Foi o que aconteceu com muitos sacerdotes contemporâneos e conterrâneos dos referidos personagens.
                       
A Data de Nascimento de José Martiniano de Alencar (o Senador)

            Na História há registros escritos que apontam o vigário do Crato, Miguel Carlos da Silva Saldanha, como o verdadeiro genitor de todos os filhos de Bárbara Pereira de Alencar. Porém, o mais comum é indicarem apenas o filho caçula desta matrona, José Martiniano de Alencar, como sendo filho de sangue do dito sacerdote. 
Em que pese ser, aparentemente, supérfluo, o exame da data de nascimento do senador José Martiniano de Alencar ajuda a desvendar alguns fatos, como o suposto romance, revelando as causas que desencadearam determinados comportamentos desses personagens históricos.
Um dos principais argumentos utilizados para negar o enlace entre Bárbara de Alencar e o padre Saldanha se estriba no ano da chegada deste sacerdote aos Cariris Novos para exercer sua função de padre, o que se deu, segundo alguns escritores, em 1800. Sabe-se que o filho mais moço de Bárbara nasceu antes disso, e, assim, presumem os especialistas que nenhum dos rebentos da heroína republicana pode ser filho do padre Saldanha, posto que ele morava no Riacho do Sangue, a 50 léguas de distância. É o que alega Pedro Jaime de Alencar, filho de Tristão de Alencar Araripe com uma escrava, e, portanto, neto de Bárbara Pereira:

O Padre Saldanha somente chegou ao Crato em 1800. Nessa época, José Martiniano, nascido em 16 de outubro de 1794, já estava na idade de crismar-se. O menino que, orientado por sua Mãe, almejava a careira (sic) eclesiástica, escolheu o novo pároco para ser seu padrinho de crisma. Portanto, o Padre Saldanha só veio a tornar-se compadre de Dona Bárbara e amigo da Família Alencar a partir de 1800.

            É um argumento que possui certa lógica, porém, é extremamente falho!
Atualmente, não existe unanimidade entre os historiadores ao indicar a data do natalício do derradeiro filho de Dona Bárbara. Pelo menos quatro datas diferentes são apontadas pelos que se dedicaram ao assunto, sendo elas: 1792, 1794 e 1797, 1798.
         Essa questão sempre esteve imersa em grandes dúvidas e, até agora, o único documento encontrado a este respeito cita o dia 02 de outubro de 1794 como sendo o ano de nascimento de José Martiniano de Alencar:

José, filho legítimo de José Gonçalves dos Santos e de D. Bárbara Pereira, neto paterno de João Gonçalves e Teodora Maria, nasceu a dois de outubro, e foi batizado nesta Matriz sem os Santos Óleos pelo Reverendo Padre André da Silva Brandão a vinte e dois de janeiro de mil e setecentos e noventa e cinco e foram seus padrinhos o Reverendo Antônio Leite de Oliveira e Dona Antônia Pereira, de que mandou o Reverendo Cura fazer este assento no qual se assinou. O Cura André da Silva Brandão.

Mutatis mutandis, existe um problema não resolvido, pois no ano de 1832 José Martiniano é escolhido como senador e toma posse no cargo. Saliente-se que a Constituição Brasileira de 1824 (no seu Capítulo III, artigo 45) impunha algumas condições para poder ser senador:

Art. 45. Para ser Senador requer-se
I. Que seja Cidadão Brazileiro, e que esteja no gozo dos seus Direitos Politicos.
II. Que tenha de idade quarenta annos para cima.
III. Que seja pessoa de saber, capacidade, e virtudes, com preferencia os que tivirem feito serviços á Patria.
IV. Que tenha de rendimento annual por bens, industria, commercio, ou Empregos, a somma de oitocentos mil réis.

            Assim, se for levado em conta que José Martiniano assumiu o cargo de Senador no ano de 1832, aos 40 anos de idade, logo, é porque nascera em 1792, o que contradita os registros paroquiais e toda a sua verossimilhança. Diante de tudo isso, a solução dada por alguns especialistas é a de que Alencar fraudou seus documentos pessoais, antecipando a data de nascimento, para poder se tornar senador. Isso não seria empecilho para Alencar, posto que foi um dos principais protagonistas do Golpe da Maioridade, o que possibilitou que D. Pedro II assumisse o trono aos 14 anos de idade.
         Em nossa opinião, o ano de nascimento do José Martiniano de Alencar é 1794, conclusão que segue um simples raciocínio matemático, pois, se ele foi crismado no ano de 1801, sendo este sacramento administrado às crianças a partir dos sete anos de idade, basta subtrair tais números para alcançar a data por nós apontada.
         Apesar das opiniões contrárias, mesmo que Alencar tenha vagido em qualquer das datas supramencionadas, nada impede que o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha tenha mantido contato com Bárbara de Alencar, posto que desde o ano de 1783 tem-se a prova cabal de que eles tiveram mais de um encontro. O primeiro destes é verificado através do assentamento de batismo do filho primogênito de Bárbara Pereira de Alencar, por nome, João Gonçalves de Alencar:

João filho legitimo do Capm. José Gonsalves dos Santos nal. da Frega. de S. Marinha de Topejo Cidade de Aroma Reino de Portugal Bispado de Lamego, e de D. Barbara Pera. d Alencar natural da freguezia de Cabrobó e oje moradora na Vila de N. Snra. da Real Vila do Crato neto paterno de João Gonsalves e de sua mulher Maria Manuela naturais de Fontelongo Cide. de Aroma Bispado de Lamego. Neto materno de Joaquim Pera. d Alencar nal. da mma. Frega. de Cabrobó e de sua mer. Teodora Roís da Conçam. nal. da mma. Frega. do Cabrobó. Nasceo a 27 de janro. de 1783 e foi batizado a 27 de fevero. Do mmo. ano pelo R. pároco do Inxú Carlos José de Mesquita, com imposisão dos Santos Oleos. Foram Padros. o Comte. Joaquim Pereira de Alencar e D. Teodora Roís da Conçam. seus Avós Maternos, do que para constar mandei fazer este asento em q me asinei. O cura Miguel Saldanha.

            O encontro entre os supostos amantes se repetiu no ano seguinte, em 1784, por ocasião do batizado do segundogênito de Bárbara de Alencar, Carlos José dos Santos (padre):

Carlos filho legítimo do Capm. José Gonsalves dos Santos nal. da Frega. de S. Marinha de Tropejo Cidade de Aroma Reino de Portugal Bispado de Lamego, e de D. Bárbara Pera. d Alencar nal da frega de Cabrobó e oje moradores os pais na Vila de N. Snra. da Penha da Real Vila do Crato. Neto paterno de João Gonsalves e de sua mer Maria Manuela naturais de Fontelongo Cide. de Aroma Bispado de Lamego. Neto materno de Joaquim Pera. d Alencar e de sua mer. Teodora Rodrigues da Conceição naturais da supradita Frega. do Cabrobó. Nasceu a 27 de agosto de 1784 e foi batisado pelo R. Vigário do Inxú Joaquim Tavares Benevides á 28 do mmo. mes.e ano com os Santos Oleos. Foram Padros. o R. P. Carlos José de Mesquita e sua tia materna D. Iria Franca d Alencar, de q pa. constar mandei fazer este asento  em que me asinei. O cura Miguel Carlos Saldanha.   

            Dessa forma, infere-se que o padre Miguel Carlos da Silva Saldanha já frequentava o Cariri desde longa data e muito antes do nascimento de alguns dos filhos de Dona Bárbara de Alencar.

CONTINUA!

NOTA: TODOS OS DADOS AQUI APRESENTADOS SÃO RESPALDADOS EM FONTES ESCRITAS, CONTUDO, ESTAS SÓ SERÃO REVELADAS QUANDO DA PUBLICAÇÃO EM LIVRO DE NOSSA AUTORIA.