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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

CARIRI CANGAÇO NO CARIRI CEARENSE: SETEMBRO DE 2015

 CARIRI CANGAÇO NO CARIRI CEARENSE: SETEMBRO DE 2015
                                                                                       
                                                                                    Heitor Feitosa Macêdo
Caricatura dos ex-cangaceiros Moreno e Durvinha.


1. PRÓLOGO  
Nos dias 23, 24, 25 e 26 de setembro de 2015, ocorreu mais um evento engendrado pela agremiação chamada Cariri Cangaço, reunindo historiadores e pesquisadores dos quatro cantos do Nordeste, sob a coordenação de Manoel Severo.
         Deve ser ressaltado que, apesar do título que batiza a confraria, Cariri Cangaço, o objetivo dos seus organizadores não é fazer apologia ao banditismo de outrora, muito menos heroicizar personagens ligados ao cangaceirismo, o qual não era formado apenas por cangaceiros, mas também por coronéis, políticos, magistrados, policiais, padres, campesinos e, inclusive, mulheres.
Grosso modo, pode-se dizer que toda a sociedade da época, estabelecida naqueles rincões, vivia a era do cangaço, à guisa de uma verdadeira instituição social, onde não havia margem para escolhas dentro daquele tempo e espaço.
Assim, apesar do preconceito e das agruras que ainda causam repulsa (tendo em vista o cometimento de furtos, roubos, estupros, assassinatos, mutilações, etc.) a imagem do cangaceiro que nos foi relegada coincide apenas com um de seus tipos, exatamente no que se enquadrava o famanaz Lampião (Virgulino Ferreira da Silva), caracterizado não só por crimes e pela estrambótica estética, mas, principalmente, pelo lado em que estava entrincheirado, oposto à oficialidade, isto é, contra o Estado. Fato que poderia ser facilmente modificado pela oportunidade e conveniência dos governos e de seus gestores, que não eram menos cangaceiros que os primeiros.
         Desprezar esses acontecimentos é a mesma coisa que renegar a própria história, seja ela política, social ou antropológica. Afinal, fomos agentes (ativos e/ou passivos) dessas práticas e não é exagero dizer que também somos, em parte, o resultado delas.

2. O EVENTO
         Durante os quatro dias de reuniões protagonizadas pelo Cariri Cangaço, muita coisa pôde ser discutida, apesar do tempo exíguo para as conversas de tantos espíritos apaixonados.
         Contudo, farei um resumo apenas de alguns dos encontros nos quais estive presente, destacando o que mais me chamou a atenção.

2.1. RELÍQUIA DO BANDO LAMPIÔNICO
         Na noite do dia 23, na cidade do Crato/CE, foi exibida a película do longa metragem que conta a redescoberta de um casal de cangaceiros do grupo de Lampião, Moreno e sua esposa Durvinha, os quais no começo do século XXI ainda eram vivos, residindo em Minas Gerais, décadas depois de terem abandonado a vida bandoleira. 
         A tez acobreada, os olhos amendoados e os cabelos linheiros como setas acusam a possível origem cromossômica do casal de cangaceiros, certamente, mamelucos e/ou cafuzos, como a maioria dos caboclos do interior do Nordeste.
         A saga de um indivíduo que entrou para a vida do crime depois de ter sido violentamente surrado pela polícia, sob a acusação der ser o autor do furto de um bode, e que durante o suplício, ao ser chamado de ladrão, retrucava, insistentemente, sou um cidadão, ajuda a reconstituir um quadro comum no passado do Nordeste, onde a falsa imputação de um crime e a arbitrariedade das autoridades tinham o condão de lançar indivíduos na vida do crime, sendo estes motivados, algumas vezes, pelo sentimento de justiça e vingança.
         O logística usada pelos cangaceiros e pela polícia-volante (não menos cangaceira) remontam ao tempo das expedições bandeirantes, quando as guerrilhas demandavam estratégias mistas, cooptadas nos embates indígenas e nas antigas técnicas militares portuguesas, como emboscadas; perseguição a partir de rastros; armas de fogo usadas por combatentes em constantes deslocamentos; etc.
          Porém, no vídeo, o ex-cangaceiro Moreno demonstra, com originalíssimos trejeitos, parte da movimentação rápida utilizada para se livrar dos projéteis, cabendo destacar a posição de tiro com fuzil, em pé, acomodando-se lateralmente, a fim de reduzir a superfície de contato do corpo, e, consequentemente, diminuir a probabilidade de ser alvejado na região ventral.
         É curioso ver que, mesmo tendo residido tantos anos em uma região cuja cultura é relativamente diversa, o casal manteve a tradição da sua terra natal, como, por exemplo, o sotaque carregado, pronunciando os fonemas ti e di linguodentais, falando com som arrastado, entre outras características do português arcaico que os habitantes do sertão do Nordeste ainda mantêm.
         No meio de tudo isso, a interessantíssima história desses dois ex-cangaceiros é regada por um romance mal sucedido, pois Durvinha, quando entrou para o dito bando, o fez apaixonada por um cangaceiro bem-apessoado, chamado Virgíneo, contudo, foi após a morte deste que se uniu a Moreno. Sem papas na língua e na presença do esposo, confessa, sem o menor receio, que o seu grande amor ainda era Virgíneo. Ademais, cabe salientar que ela nunca atirou em ninguém, pois tinha medo de pegar em armas, evidenciando comportamentos, admiravelmente, antagônicos dentro do cangaço.

2.2. O PACTO DOS CORONÉIS
         Na tarde do dia 24, na cidade de Lavras da Mangabeira/CE, houve uma conversa entre os pesquisadores/historiadores, sendo assistida por vários estudantes do distrito de Quitaiús, tendo como tema o Pacto dos Coronéis em Juazeiro do Norte, datado de 1911.       
         O assunto tratado girava em torno do uso do cangaço pra fazer política regional, isto porque no dia 04 de outubro de 1911, ano da inauguração da cidade de Juazeiro do Norte, alguns coronéis do sul cearense, intendentes municipais (espécie de prefeitos ‒ chefe do poder executivo), se reuniram nesta localidade para firmarem publicamente um acordo mútuo, sob a direção do padre Cícero Romão Bastista, comandante supremo do município recém-inaugurado.
         Neste dia, Juazeiro deixava de ser uma mera vila para passar à capital do cangaceirismo regional, e o padre Cícero o coronel dos coronéis.
         O encontro destes chefes políticos no Cariri cearense resultou numa espécie de tratado de paz, sendo batizado pelo padre Cícero de artigos de fé política. Porém, existem outras denominações para este mesmo fato, como pacto de paz, pacto de harmonia política, aliança política, conferência política, e, mais usualmente, pacto dos coronéis.
O fato é que o pacto pretendia por fim à série de deposições municipais (sendo o cargo de prefeito disputado à bala), bem como firmar o compromisso de apoio ao velho babaquara então presidente do Estado do Ceará, Antonio Pinto Nogueira Acióli. Porém, o artigo sétimo mencionava a condição de abrir mão dos cangaceiros, o que tornava tudo aquilo uma utopia, afinal, o coronel só existia em função destes bandidos e vice-versa.
Dos 19 líderes convocados para a sessão, apenas 17 deles ou seus representantes compareceram e assinaram a ata. Os pactuantes eram chefes das cidades de: Missão Velha, Crato, Juazeiro do Norte, Araripe, Jardim, Santana do Cariri, Assaré, Várzea Alegre, Campos Sales, São Pedro do Cariri, Aurora, Milagres, Porteiras, Lavras, Barbalha, Quixará (Farias Brito) e Brejo dos Santos.
         Por fim, das nove cláusulas estabelecidas, pouco foi cumprido, como, por exemplo, o apoio ao presidente estadual, que, inclusive, veio a ser reconduzido ao dito cargo, em 1914, pelas armas, principalmente, dos cangaceiros, chefiados por seus respectivos coronéis sul cearenses. Isto prova a existência da simbiose entre o coronelismo e o cangaço.
A medida tinha vários propósitos, dentre eles o fim das deposições municipais que estavam ocorrendo na região, pois os chefes políticos se aboletavam neste cargo usando da força. Para tanto, faziam uso de verdadeiros exércitos privados, compostos por capangas e cangaceiros.
Apesar da farta bibliografia que existe em torno do tema, alguns pontos permanecem sem solução, como afirmou Joaryvar Macedo, ao dizer que este: “tem sido um dos assuntos controvertidos da crônica política do Cariri, inclusive quanto a quem o concebeu. A sua ideação já foi atribuída por estudiosos ao Padre Cícero, ao doutor Floro, ao coronel Antônio Luís Alves Pequeno, ao presidente Nogueira Acióli, ao doutor Arnulfo Lins e Silva, então juiz de Barbalha” (Império do Bacamarte, p. 139).
Assim, já tendo sido o pacto em comento algo bastante explorado pelos estudiosos, coube aos painelistas fazerem digressões em outros aspectos, como apontar algumas origens remotas do coronelismo, do tempo da ocupação sesmarial, bem como abordar a influência psíquica da figura mística do padre Cícero sobre os coronéis, cangaceiros, jagunços, capangas e o povo.   
Ao final da tarde, o grupo fez excursão pela cidade de Lavras da Mangabeira, conhecendo os pontos principais que envolveram a invasão cangaceira da dita urbe no começo do século XX, isto por ensejo do resgate histórico feito por João Calixto e publicado em livro.
Heitor Feitosa Macêdo e o escritor Voldi Ribeiro, Lavras da Mangabeira, na tarde do dia 24 de setembro de 2015


2.3. O PADRE CÍCERO
         Em que pese ser a bibliografia sobre o padre Cícero bastante extensa, ainda restam pontos a serem revelados, e foi com esse mesmo mote que houve a reunião na noite do dia 25 de setembro de 2015, em Juazeiro do Norte.
         Os palestrantes discorreram sobre aspectos místicos e genealógicos do Santo Padre, enveredando tanto pela psique quanto pela árvore de costados de Cícero Romão Batista, apresentando uma ótica singular sobre o poder da crença no catolicismo popular e a possível influência que os ancestrais do dito sacerdote exerceram sobre o seu comportamento.

3. EPÍLOGO
         Este é apenas um breve resumo do que pude acompanhar nas poucas horas em que estive acompanhando o referido evento. Confesso que tive que provar uma moderada dose de convivência para afastar o preconceito que o título per si impõe, Cariri Cangaço, pois, como ficou dito, o compromisso deste sodalício não é enaltecer tal espécie de banditismo, mas poder compreender melhor os fatos que envolvem a sociedade nordestina, principalmente, a sertaneja.
         Futuramente, com expansão deste movimento para outros estados e regiões do País, ocorrendo a inserção de mais estudiosos sobre o cangaço e temas correlatos, estes encontros constituirão uma importante ferramenta para a elucidação histórica de uma sociedade encravada há séculos nos antigos sertões do Norte
         Talvez não seja exagero, mas acredito que esse sinergismo poderá oferecer algumas respostas ou orientações para aqueles que estudam a história, a sociologia, a antropologia e o direito (principalmente no ramo da criminologia) concernente à civilização do couro, sociedade esta formada por gente interiorana, do semiárido nordestino, que ainda existe e, por isso, precisa ser vista e escutada não como vítima, mas como sujeitos de sua própria história.

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