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quinta-feira, 19 de março de 2015

O REINO SANGRENTO DA PEDRA BONITA

O REINO SANGRENTO DA PEDRA BONITA
                                                                 
                                                                                        Heitor Feitosa Macêdo

            Uma das mais famosas obras de Ariano Suassuna traz o título de A Pedra do Reino, romance que teve como inspiração um fato verídico ocorrido no sertão pernambucano do Pajeú, o qual, apesar de ter virado folclore, constituiu uma verdadeira tragédia sertaneja.
         Contado em minúcias em 1875, por seu principal historiador, Antonio Ático de Sousa Leite, sob o título de Memória sobre o Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, o ocorrido nesta localidade ganhou exatidão e contornos verossímeis, consignando uma crueza que anda longe de ser mera literatura.
         Esta história sangrenta teve início entre os anos de 1836 e 1838, quando um grupo composto por, aproximadamente, trezentas pessoas reuniu-se no alto sertão do Pajeú, sob a liderança de um mameluco eloquente, João Antonio dos Santos, que pregava com singular ardor a volta do rei português D. Sebastião, desaparecido na África desde 1578.
         Nas fervorosas prédicas, João Antonio, na qualidade de rei dos fanáticos (o primeiro da tosca dinastia), garantia que D. Sebastião voltaria do lugar em que estava, isto é, no reino encantado, mas, antes, seria necessário que duas enormes pedras, uma delas impregnada de reluzente malacaxeta, fossem totalmente banhadas de sangue, pois, quando o reino fosse desencantado, o monarca desaparecido voltaria com seu exército e aquela gente gozaria de muitas benesses.
         Mas, para alcançar esta graça, o sangue deveria ser obtido com o sacrifício de pessoas e cães, porque, uma vez atingido o desencantamento, todos os mortos ressuscitariam, os pobres voltariam nobres, imortais, ricos e poderosos, amais, quem fosse preto tornaria à vida branco como a lua. Eram estas promessas irresistíveis, ao considerar a marginalização em que vivia aquela miserável gente, formada por pobres e não brancos.
         E qual a razão de também sacrificarem os cães? Os pregadores deblateravam que estes animais também ressuscitariam, contudo, em forma de dragões, com a finalidade de engolir os proprietários da época.
         Deturpando a religião católica, os sebastianistas acrescentaram características aparentemente índias ao culto romano, dando-lhe caráter sincrético, pois, para poder enxergar o reino, os seguidores sorviam uma beberagem feita de jurema e manacá, conhecida como vinho encantado, além de fumarem em cachimbos, havendo proibição de adquirir roupas e tecidos. Acrescente-se que os súditos da Pedra do Reino utilizavam cacetes como armas, também sendo usual o casamento de um só homem com mais de uma mulher.
         Acerca dos casamentos, existia uma peculiaridade digna de citação, pois, aos reis da Pedra Bonita, era reservado o direito da prima nocte, ou seja, os líderes deste movimento dormiam a primeira noite com as mulheres recém-casadas, ato que os sebastianistas denominavam de dispensa do rei.  
         O certo é que entre os dias 14 e 15 de maio de 1838 os sacrifícios tiveram início, matando-se mais de 50 pessoas, além de 14 cães. As crianças eram entregues ao algoz pelos próprios pais, isto quando estes não cuidavam de realizar pessoalmente o serviço, como ocorreu a um filho de José Vieira, que foi colocado sobre a pedra dos sacrifícios pelo próprio genitor, vindo este, com o primeiro golpe, a decepar o braço do inocente com um facão, não atendendo às súplicas da criança, ditas em vão: meu pai, você não dizia que me queria tanto bem?!.
         Ao tomar notícia deste acontecimento, através de um vaqueiro de sua fazenda que havia se evadido durante o início das matanças, o comissário major Manoel Pereira da Silva organizou uma tropa e tão logo rumou de sua fazenda Caiçara até à Serra Formosa, onde teve encontro com o grupo dos sebastianistas, homens, meninos e mulheres semi-nús, armados de facões e cacetes, tendo à frente o terceiro rei, Pedro Antonio, na ocasião, adornado com uma coroa de cipó, pois roubara o trono no dia 17, ao matar seu predecessor João Ferreira, o Jóca (o segundo rei de Pedra Bonita), a quem quebrou a cabeça e arrancou as vísceras.
         O morticínio só teve trégua no dia 18 de maio de 1838, quando alguns membros de uma família de proprietários da região, conhecida como os Pereira do Pajeú, puseram cobro a esta hecatombe, mas não sem sofrer danos, pois dos quatro irmãos que travaram intenso combate com o grupo sebastianista, dois foram mortos, Cipriano e Alexandre Pereira, um ficou ferido, o comissário major Manoel Pereira da Silva, e apenas o terceiro saiu ileso, o coronel Simplício Pereira da Silva, o qual, nobremente, evitou que os sobreviventes da Pedra Bonita fossem linchados por parte da população.
         Mais que folclore e mera literatura, a pedra do reino representa os efeitos de uma colonização excludente e do choque de culturas, reverberando em pobreza e fanatismo, matéria prima para a história dos sertões nordestinos.