O CRATO NÃO TEM
SOMENTE 250 ANOS
Heitor Feitosa Macêdo
Comarca do Crato/CE, séc. XIX (BNRJ) |
Sem dúvida, o ato oficial que criou a
Vila Real do Crato data de 21 de junho de 1764[1],
elevando-a e reconhecendo-a como uma unidade administrativa. Mas, antes disso, já não existia uma povoação administrada por gente "branca"? Com certeza, sim, o que
também é bastante conhecido pela história, porém, pouco divulgado.
Sobre a origem populacional do Crato, a
teoria mais aceita é a de que esta urbe teve início com a reunião de algumas
tribos indígenas, sob a responsabilidade de um religioso da Ordem dos
Capuchinhos italianos, o famoso Frei Carlos Maria de Ferrara.
O Frei Carlos, com os seus índios,
chamados genericamente de Cariús,[2]
estabeleceu-se primeiramente no brejo do Miranda, exatamente no encontro do Rio
Batateira com o Riacho do Miranda.[3]
Aí foi inaugurada a Missão do Miranda, que, posteriormente, foi transferida para
o outro lado do Rio da Ponte, no mesmo quadro que hoje se encontra instalada a
Igreja da Sé, na cidade do Crato.[4]
Então, quando teria sido a chegada de Frei
Carlos a estas paragens? Informa o grande pesquisador padre Antonio Gomes que
Frei Carlos, partindo de Bolonha/Itália, chegou ao Brasil no ano de 1736,[5]
e entre os anos de 1738 e 1739 teria o Frei, juntamente com o Frei Próspero de
Milão, reunido os índios na referida Missão, no Sul do Ceará. Portanto, o que
se pode afiançar é uma data aproximada para o estabelecimento do religioso na
dita área.
O certo é que o registro mais antigo
das atividades realizadas na Missão do Miranda possui a data de 30 de julho de
1741, tratando-se de um batizado.[6]
Complementarmente, é assegurado que na data de 1742 já existia um templo
dedicado a dois santos: Nossa Senhora da Penha e Frei Fidelis.[7]
Nesse comenos, é necessário perquirir
sobre a terra em que foi instalada a Missão do Miranda, pois a quem pertenceu?
É sabido que a área de uma légua quadrada, conforme determinava a lei, foi
doada, no dia três de dezembro de 1743, para a ereção da missão indígena do
Miranda, sendo seus doadores o Capitão-mor Domingos Alves de Matos e sua
esposa, Dona Maria Ferreira da Silva.[8]
É necessário destacar que Maria
Ferreira da Silva era filha do poderoso latifundiário Antonio Mendes Lobato
(Capitão), parente dos Montes e do Capitão João Ferreira da Fonseca, todos
senhores quase absolutos das terras entre os sertões do Icó e dos Cariris
Novos. Inclusive, aponta a tradição que foi o Padre José Mendes Lobato (irmão
de Maria Ferreira da Silva[9])
o responsável pela vinda do Frei Carlos Maria de Ferrara aos Cariris Novos.[10]
Segundo Antonio Bezerra, o território
da Missão do Miranda teria passado aos Mendes Lobato através de compra feita ao
Capitão Manoel Rodrigues Ariosa, supostamente o primeiro povoador do Cariri.[11]
Quando foi que Manoel Rodrigues Ariosa
se tornou dono das terras que compreendiam o Brejo do Miranda, onde se formou a
missão? Os velhos documentos sobre as doações de sesmarias registram que Manoel
Rodrigues Ariosa e o seu sócio (o Capitão-mor Manoel Carneiro da Cunha),
obtiveram as citadas terras no dia 10 de janeiro de 1703, num espaço medindo
três léguas de comprimento por duas léguas de largura, para cada um.[12]
Os
dois pediram as terras nas cabeceiras do Rio Salgado, onde habitava uma nação
de gentio (índios bravios) por nome de "Cariris". Mencionaram que a terra era
capaz para criar gados e que pretendiam povoá-la com tais bichos. Na carta de
sesmaria a dimensão da terra dava-se da seguinte forma:
...na
dita parte dos Cariris comesando da Caxoeira dos Cariris da parte dedentro pelo
Riacho asima athe entestar com ofim dalagoados Cairiris (...) tres legoas de
terra de Comprido pelo Riacho Salgado asima para hu delles suplicantes
comesando da Caxoeira dos Cariris daparte de dentro the comfinar com o fim da
lagôa dos Cariris com duas legoas delargo hua para cada banda dodito Riacho
tudo arumo direito para nelllas poderem criar seus gados emais criasois...[13]
A Lagoa dos Cariris, depois denominada de Lagoa do
Ariosa, citada no documento, localizava-se exatamente onde hoje está o Sítio
São José, na estrada entre o Crato e o Juazeiro do Norte.[14] Ao lado
disso, ressalta o douto Antonio Bezerra que as terras de Ariosa açambarcavam
Juazeiro do Norte e Crato.[15]
Hoje, é plenamente aceito pela história
oficial que o Capitão Manoel Rodrigues Ariosa foi o primeiro povoador do
Cariri, pelo que se pode deduzir que tenha habitado a região pessoalmente ou
por meio de prepostos, fato que comprova ser o ano de 1703 a origem do
povoamento do Crato, antecipando em seis décadas a criação da Vila Real do
Crato.
Desta forma, percebe-se que o núcleo
populacional do Crato não surgiu apenas a partir da missão indígena do Frei
Carlos, pois esta foi precedida pela antiga fazenda de criar gado, pertencente
a Manoel Rodrigues Ariosa. Assim, no próximo dia 21 de Junho de 2014 serão
comemorados os 250 anos do município do Crato, o que não passa da mera
formalidade da criação da Vila, cuja população “branca” já havia se
estabelecido há algumas décadas.
REFERÊNCIAS
BIBLIGRÁFICAS:
Araújo, Padre Antonio Gomes de, A Cidade de Frei Carlos, Crato/CE,
Faculdade de Filosofia do Crato, 1971.
Bezerra, Antonio, Algumas Origens do Ceará, Ed, fac-sim., Fortaleza/CE, Fundação
Waldemar Alcântara, 2009.
Brígido, João, Apontamentos para A História do Cariri, fac-símile da Edição de
1861 (Reproduzida do Diário de Pernambuco), Fortaleza, Expressão Gráfica e
Editora Ltda., 2007.
Pinheiro, Irineu, Efemérides do Cariri, Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará,
1963.
DOCUMENTOS:
Datas de
Sesmarias, 2º
VOLUME, nº 79, Fortaleza, Eugenio Gadelha & Filho, 1921.
[1] Bezerra, Antonio, Algumas Origens do Ceará, Ed. fac-sim., Fortaleza/CE, Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 183. Ver também: Pinheiro, Irineu, Efemérides do Cariri, Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará, 1963, p. 43.
[2] O Padre Antonio Gomes de Araújo
observou que, apesar de existirem diferentes tribos reunidas na Missão do
Miranda (Quixereréu, Curianense, Calabaça, Icó, Jucá e Cariú), todos esses
índios “receberam a denominação global de Cariú” (In Araújo, Padre Antonio
Gomes de, A Cidade de Frei Carlos, Crato/CE, Faculdade de Filosofia do Crato,
1971, p.125).
[3] A localização é descrita por
João Brígido, nos seguintes termos: “Alguns frades capuchos enviados de
Pernambuco, logo depois do descobrimento, foram servindo de chefes a estas
nascentes populações e catechisaram os índios, primeiro em Missão-Velha, depois
no Miranda, sitio, onde o riacho deste nome faz barra na corrente Batateira" (In
Brígido, João, Apontamentos para A História do Cariri, fac-símile da Edição de
1861 (Reproduzida do Diário de Pernambuco), Fortaleza, Expressão Gráfica e
Editora Ltda., 2007, p. 23).
[4] Essa informação, sobre a
transferência da Missão do Miranda, foi dada por João Brígido, ainda no século
XIX (In Brígido, João, Apontamentos para A História do Cariri, op. cit., p.
25).
[5] Araújo, op. cit., p. 80.
[6] Ibidem, op. cit., p. 69.
[7] Ibidem, op. cit., p. 41, 51 e
70. Sobre o padroeiro de Frei Fidelis no Crato ver Antonio Bezerra (op. cit.,
p. 116).
[8] O documento desta doação pode
ser visto na íntegra na obra de Antonio Bezerra (op. cit., p. 224, 225, 226,
227 e 228).
[9] Bezerra, op. cit., p. 120 e 121.
[10] Foi João Brígido que registrou
essa tradição, ainda não confirmada por documentos (op. cit., p. 10).
[11] Diz Antonio Bezerra: “Ariosa
foi, de facto, o primeiro povoador do Cariri, cujas terras por sua morte, que
se realizou no ano de 1716, como se vê da sesmaria do riacho dos Carás, obtida
em 30 de setembro do mesmo ano por José Gomes de Moura, e seus companheiros,
passáram aos seus herdeiros, e êsses dela fizeram venda ao capitão António
Mendes Lobato” (op. cit., p. 111).
[12] Datas de Sesmarias, 2º VOLUME,
nº 79, Fortaleza, Eugenio Gadelha & Filho, 1921, p. 13 e 14.
[13] Idem.
[14] Bezerra, op. cit., p. 109.
[15] Idem.