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Língua Sertaneja: quem diz dixe!
Heitor Feitosa Macêdo
Ainda hoje há quem se depare com gente
nos confins das cidades interioranas do Nordeste brasileiro utilizando antiquíssimas
expressões da língua portuguesa, consideradas pela maioria dos cidadãos
alfabetizados erros crassos de gramática. Porém, o problema é, no mínimo,
histórico e geográfico!
Os citadinos mais desavisados, quando
passeiam pelos sertões, o interior, costumam reparar, superficialmente, a
dessemelhança cultural que há entre eles e o povo desses lugares recônditos,
sendo a pronúncia das palavras o objeto preferido dessa observação, por sinal,
verticalizada e precedida de um preconceito indisfarçável.
No topo de sua jactância, esse
indivíduo gramaticalmente correto, ao escutar terminologias não ouvidas nas
grandes cidades, como alenvantar
(levantar), sobaco (sovaco), bassora (vassoura), entonce (então), etc., ri a valer dessas palavras que julga serem
incorretas do ponto de vista da atual regra gramatical da língua portuguesa. E,
ainda, quando retornam as suas casas, relembram diversas vezes, contando aos
seus conterrâneos o que ouvira, sendo comum narrar sua piada acerca de algum
erro gramatical com a seguinte frase: como
diz o matuto!
O grande erudito Câmara Cascudo admite
ter se colocado, involuntariamente, ao lado dos que se divertiam com a prosódia
e cacoepia dos sertanejos, contudo, confessa que, certa feita, ao rir de uma
velha negra quitandeira, pelo fato de esta ter usado o termo parança, consultou um antigo dicionário
do final do século XVIII, e constatou que a palavra existia e significava o ato de parar.
Este é só um exemplo das inúmeras
expressões do linguajar do interior do Nordeste que, hoje, desconhecemos e, por
isso, julgamos serem, gramaticalmente, erradas. Mas este julgamento é relativo,
pois deve ser levado em conta, além do fator geográfico, a história cultural
dessa gente, pois boa parte das terminologias presentes no vocabulário
sertanejo foi herdada do período colonial, embarcada nas caravelas de 1500
e trazida pela boca dos primeiros portugueses chegados ao País.
Isso
mesmo! É a linguagem do Brasil quinhentista, a língua do colonizador,
parcialmente mumificada, que não constitui apenas sinal de analfabetismo, mas
um verdadeiro laboratório da língua portuguesa, um retorno ao passado. E isto
será provado!
Quem,
conversando com um agricultor, nunca se deparou com a palavra dixe (do verbo dizer, no singular da
terceira pessoa do presente do indicativo: ele
disse)? Não precisa apurar os ouvidos para constatar a presença desta
expressão no meio rural! É algo bastante corriqueiro e, como em outros casos,
julgam os mais apressados ser isto um erro gramatical.
Achar
que o matuto deturpou tal vocábulo é inadmissível, pois a história comprova que
os intelectuais do período Colonial, chamados de doutores, letrados e licenciados,
incluindo os europeus diplomados nas universidades de Portugal, usavam
frequentemente dixe para dizer disse na redação dos documentos oficiais
da época.
Isto
é o que se lê nos autos do Santo Ofício na Bahia, de 1593 a 1595, onde o
inquisidor (Juiz do Tribunal da Inquisição), Heitor Furtado de Mendonça,
letrado formado na Universidade de Coimbra, ao proceder ao interrogatório dos
investigados, por diversas vezes, por meio de seus escrivães, registrou a
palavra dixe.
A palavra dixe registrada nos Autos do Santo Ofício da Bahia, entre 1593 e 1595.
E não parou por aí, pois, nos séculos
seguintes, em vários manuscritos redigidos por portugueses e brasileiros,
encontra-se o termo dixe em vez de disse.
Basta lançar mão desses antigos documentos para atestar o fato.
Portanto, quem diz dixe não deve ser
considerado, necessariamente, analfabeto nem ridicularizado pelos praticantes
da norma culta, mas, pelo contrário, deve ser visto como agente de
conservação da antiga língua portuguesa, coisa que, talvez, nem mais exista em
Portugal como aqui ocorre, no coração do Nordeste brasileiro.
FONTE BIBLIOGRÁFICA:
Primeira
Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil: Denunciações e
Confissões de Pernambuco (1593 - 1595), Recife, FUNDARPE, 1984.